1 CONSIDERAÇÕES INICIAIS
As correntes do positivismo jurídico tiveram e ainda possuem grande influência no pensamento jurídico contemporâneo. Entretanto, desde muitos anos já existem críticas ao seu excesso formalismo, em especial porque historicamente o fracasso de sistemas garantistas extremamente formais provaram que a consagração positiva de direitos fundamentais não é suficiente para evitar sua violação (Cf. Bobbio, 2004). Apesar disso, podemos perceber que ainda vigora em grande parte na doutrina e jurisprudência, grande influência do positivismo. Entretanto, existem movimentos teóricos prontos para atualizar e formular críticas a esta postura formal, sugerindo teorias que buscam resolver problemas práticos e teóricos dentro desta concepção.
Assim, uma conhecida disputa intelectual se desenvolveu entre o jusfilósofo inglês Herbert L. Hart e o estadunidense Ronald Dworkin, em que este último elabora uma crítica feroz contra o positivismo, tomando como parâmetro a teoria daquele apresentada em O Conceito de Direito (2001). Segundo Magalhães (2009, p. 72), este embate foi um dos mais acirrados no mundo jurídico no século XX, havendo, pois, muitos escritos descrevendo e analisando a discussão travada entre eles.
Não obstante, entendemos que este debate e sua análise ainda pode fornecer importantes reflexões a respeito do atual quadro teórico do direito, especificamente no Brasil, já que algumas questões ainda não estão completamente consolidadas e, outras, muito pouco debatidas. Em primeiro, a própria diferenciação entre regras e princípios jurídicos, partindo da colocação de Dworkin de que os positivistas concebem um modelo de sistema de regras e para regras, em que os princípios não podem ser validados como pertencentes a este sistema. Em segundo, a teoria das lacunas do ordenamento jurídico, e em especial a consideração da existência de lacunas ideológicas, e se é, de fato, possível haver lacunas no sistema jurídico, de acordo com uma concepção positiva do direito; em terceiro e último, o movimento do ativismo judicial, que em muitos aspectos revela um estreitamento com as posições concertadas pelo filósofo estadunidense, em especial as colocações sobre a importâncias de outros “padrões”, não necessariamente jurídicos, para a decisão judicial de determinados casos.
Cabe observar que o objetivo deste artigo não é uma análise detalhada de tais movimentos, bem como suas críticas, defeitos e avanços, mas sim expor suas principais características, descrevendo seus principais aspectos de forma didática, para expor a ligação destas e a crítica ao positivismo, considerando o pensamento de Ronald Dworkin a partir de sua crítica à teoria de Hebert L. Hart.
O método utilizado é o lógico dedutivo, buscando contextualizar e relacionar as ideias principais de cada tópico para demonstrar a hipótese avençada no objetivo proposto; isto é, ao final do artigo, almeja-se ter demonstrado as relações dos movimentos críticos teóricos do positivismo jurídico em relação à doutrina de Ronald Dworkin, ainda que de forma indireta.
2 O JUSPOSITIVISMO DE H. L. HART
H. L. Hart foi um importante jusfilósofo inglês, cuja teoria dominou e influenciou os sistemas de direito dos países anglo-saxão. É um precursor do estudo analítico do positivismo, e sua obra mais conhecida é O Conceito de Direito, onde elabora uma teoria do direito a partir da crítica do positivismo de John Austin. A análise do pensamento de Hart fornece importantes diretrizes para uma teoria crítica do direito positivo, já que ele dispensa alguns elementos formalistas desta corrente, sem, entretanto, recusar suas principais bases.
Assim, Hart, na obra citada acima, inicia sua análise do conceito de direito a partir de três questões: a primeira, como é possível diferenciar o direito e a obrigação jurídica de ordens baseadas em ameaças, como no caso de um assaltante; a segunda, como diferenciar o direito de outros tipos de obrigações, derivadas de outros tipos de regras, como as regras morais; e a terceira, partindo da premissa de que o sistema jurídico consiste em regras, o que são regras, e o que significa dizer que elas existem, e em que medida o direito é uma questão de regras (HART, 2001, p. 11-13). É a partir destes questionamentos que Hart afirma ser possível responder à pergunta “o que é direito?”.
Para Hart, podemos constatar a existência de dois tipos de regras: aquelas que impõem deveres ou obrigações, chamadas regras primárias; e aquelas que outorgam poderes, denominadas secundárias. As regras do tipo primário são aquelas que exigem que se faça ou deixe de fazer determinadas ações, enquanto as do secundo tipo são as que asseguram a criação de novas regras primárias, extinção ou modificação de regras antigas, ou determinar de diferentes modos a sua incidência ou fiscalizar a sua aplicação. Dessa maneira, o Direito seria como que uma união desses dois tipos de regras, primárias e secundárias (HART, 2001, p. 91-92).
Se para o autor o conceito de regra depende da coexistência de uma conduta regular, e somente através delas que se pode afirmar que alguém possui uma obrigação, isto significa que é somente a partir da subsunção da conduta atualizada pelo sujeito à previsão daquela regra constante que este agente pode ser obrigado. O que se verifica, portanto, é que somente se pode exigir que alguém aja ou deixe de agir mediante à aplicação de uma regra que o impele a fazer ou não fazer. Entretanto, Hart observa que o contrário não é verdadeiro, ou seja, que existem regras que não impõem nenhum tipo de obrigação. Entretanto, isso não significa que estar submetido a uma regra é o mesmo que estar submetido a uma sanção ou mal proveniente de seu descumprimento. A regra estabelece um padrão de comportamento que vai além da ameaça que pode garantir sua aplicação (cf. DWORKIN, 2002, p. 32).
Por isso a ideia de que o direito é formado por regras primárias e secundárias facilita a compreensão do funcionamento das regras. Um sistema formado apenas por regras primárias implicaria numa estrutura social muito simples, que, invariavelmente, teria problemas em diversos aspectos de seu funcionamento. A introdução de regras secundárias relativas às primárias corrigiria uma série de defeitos, entre os quais a incerteza – já que não haveria regras para esclarecer o âmbito de aplicação das regras primárias – papel exercido pelas regras secundárias. A introdução de uma “regra de reconhecimento” poderia resolver este problema, indicando se determinada regra de um grupo social deve ser apoiada pela pressão social que ele exerce – ou seja, que deve ser reconhecida como uma regra jurídica. A regra de reconhecimento confere uma marca dotada de autoridade, introduzindo a ideia de sistema jurídico: as regras não são agora apenas um conjunto discreto e desconexo, mas estão, de um modo simples, unificadas - germe da ideia de validade jurídica (cf. HART, op. cit., p. 105).
Além disso, um sistema jurídico formado unicamente por regras primárias seria um sistema estático. Não haveria um meio de adaptação das regras às circunstancias em mutação, pela eliminação das regras antigas ou pela introdução de regras novas, a evolução histórica cultural ou as mudanças sociais revolucionárias, seja por atos políticos ou mudanças decorrentes do avanço da técnica. Isso pressupõe a existência de regras de um tipo diferente das regras primárias de obrigação pelas quais a sociedade exclusivamente vive. A introdução de “regras de alteração” no sistema (jurídico) corrigiria este defeito, já que possibilitaria sua transformação, com a introdução de novas regras e modificação e exclusão das regras já “incorporadas”. As regras de alteração possuem uma conexão estreita com as regras de reconhecimento, pois “quando as primeiras existirem, as últimas terão necessariamente de incorporar uma referência à legislação como um aspecto identificador das regras, embora não necessitem de referir todos os detalhes processuais envolvidos na legislação” (HART, op. cit., p. 105).
Por fim, o terceiro defeito de um tal sistema jurídico, seria a ineficácia da pressão social, ou seja, a falta de tais determinações de forma definitiva e dotadas de autoridade. Além disso, os castigos pela violação das regras e outras formas de pressão social implicando esforço físico ou o uso da força não são aplicados por uma instância especial, mas são deixados aos indivíduos ofendidos ou ao grupo em geral, significando mais uma forma de vingança que Direito. As regras secundárias que dão poderes aos indivíduos para solucionar estes conflitos podem solucionar o problema, sempre que uma regra primária for violada. São as “regras de julgamento”, que, além disso, definem importantes conceitos jurídicos, tais como juiz, tribunal, jurisdição (HART, op. cit., p. 107).
Assim, Hart acredita descrever o funcionamento de um sistema jurídico, pela introdução instrumentos que dão certeza, dinamicidade e legitimidade na aplicação das próprias regras do sistema. As regras primárias devem ser complementadas pelas regras secundárias, instituindo a ideia de validade das regras; além disso, permite a continuidade do sistema, acompanhando as mudanças sociais; e, por fim, atribui às regras primárias maior eficácia, por meio da introdução de regras de julgamento.
Se voltarmos atrás e considerarmos a estrutura que resultou da combinação das regras primárias de obrigação com as regras secundárias de reconhecimento, alteração e julgamento, é evidente que temos aqui não só o coração de um sistema jurídico, mas um instrumento poderosíssimo para a análise de muito daquilo que tem intrigado, quer o jurista, quer o teórico político. (Hart, op. cit., p. 107).
Hart parte da distinção entre uma afirmação interna e uma afirmação externa de que uma regra pertence a este sistema, para explicar o quesito da validade das normas jurídicas; isto é, Hart defende a ideia de que a aplicação de reconhecimento depende de um observador externo, um sujeito que não está histórica e culturalmente inserido em determinado sistema jurídico. Assim, segundo ele, afirmação interna é aquela manifesta do ponto de vista interno, e usada naturalmente por quem aplica a regra de reconhecimento, aceitando-a, mas sem declarar este fato, reconhecendo a validade de qualquer regra concreta do sistema. A afirmação externa, por sua vez, se verifica “na linguagem natural de um observador externo ao sistema, que, sem aceitar ele próprio a regra de reconhecimento deste sistema, enuncia o facto de que outros a aceitam” (HART, op. cit., p. 114).
O autor destaca as ideias de validade e eficácia de uma regra do sistema. Assevera, pois, que não há qualquer relação entre uma e outra qualidade: uma regra pode ser válida, sem, no entanto, ser eficaz – salvo na hipótese em que, no próprio sistema, há uma regra que disponha que as regras que não possuem eficácia deixam de ter validade neste sistema.
A regra de reconhecimento de um sistema é dotada de um caráter último e critério supremo. A ideia de critério supremo significa que, se duas normas identificadas como pertencentes ao sistema estiverem conflito entre si, a regra que estiver assim identificada com base no critério da regra de reconhecimento prevalecerá em relação à outra. Por sua vez, o seu caráter último significa que não há regra que faculte critérios para apreciação de sua própria validade jurídica (HART, op. cit., p. 118).
Hart admite também que estas características da regra de reconhecimento podem levar a alguns problemas. Lembra, assim, que para alguns autores, “enquanto a validade jurídica das outras regras do sistema pode ser demonstrada por referência àquela, a sua própria validade não pode ser demonstrada, antes é ‘assumida’ ou ‘postulada’, ou constitui uma ‘hipótese’”. É o caso de Kelsen. Kelsen explica que o sistema jurídico é estruturado a partir de uma hierarquia entre as normas, de forma escalonada. Na base desta estrutura, estariam as normas de hierarquia inferior, que, necessariamente, devem estar de acordo com as normas de hierarquia superior, ou de forma alguma seriam admitidas dentro daquele sistema. E no topo, estaria o que o autor alemão denomina “norma hipotética fundamental”. Esta norma seria, em última análise, o fundamento de todo o sistema jurídico.
Para Hart, a regra de reconhecimento de um sistema não pode ser simplesmente “pressuposta”, tal como Kelsen afirma. Sugere, diversamente, que uma regra de reconhecimento não pode ser afirmada internamente, sendo aceita e reconhecida, tal como acontece com as outras regras. A regra de reconhecimento só pode ser afirmada do ponto de vista externo, reconhecendo-se que as pessoas daquela comunidade aceitam e fazem uso daquela regra. Além disso, anota que a validade de uma regra só pode ser considerada quando a questão se coloca dentro de um sistema de regras, em que o reconhecimento da validade de uma regra pode ser verificado pela satisfação dos critérios dados pela regra de reconhecimento. Diversamente, a própria regra de reconhecimento não pode ser válida ou inválida, “mas é simplesmente aceita como apropriada para tal utilização” (HART, op. cit., p. 120).
Em relação a esta suposição de validade da regra de reconhecimento, Hart argumenta, em resumo, o seguinte:
(...) enquanto uma regra subordinada de um sistema pode ser válida e, nesse sentido, “existir”, mesmo se for geralmente ignorada, a regra de reconhecimento apenas existe como uma prática complexa, mas normalmente concordante, dos tribunais, dos funcionários e dos particulares, ao identificarem o direito por referência a certos critérios. A sua existência é uma questão de facto. (HART, op. cit., p. 121).
Logo, a regra de reconhecimento possui, segundo Hart, um caráter distinto das demais regras, inclusive no tocante à sua existência. Enquanto sua validade não pode ser demonstrada, mas somente suposta, sua existência é verificada pela prática dos membros, particulares e funcionários, de um dado sistema. E, dessa forma, por não ter como se verificar a sua validade, já que ela é mesmo o critério supremo e último para tal, a afirmação de que ela existe é uma questão de fato, somente podendo ser feita de um ponto de vista externo.
Outro importante ponto a se observar em sua teoria diz respeito ao que ele denomina de “textura aberta” das normas jurídicas. O Direito, segundo Hart, é um instrumento de controle social, e por isso deve se basear em regras gerais, e não diretivas particulares. O sistema jurídico deve ser formado por regras que possam ser aplicadas a uma variedade de situações que não foram previamente consideradas, dado um certo grau de imprevisibilidade das inúmeras condutas possíveis, bem como situações que emergem com o surgimento de novas tecnologias.
Hart pontua que as duas principais formas de comunicação do direito são os precedentes e a legislação. No primeiro caso, a comunicação é feita através do exemplo, ou seja, o uso jurídico do precedente é implementado pelo exemplo. O problema de tal prática é que este tipo de comunicação pode deixar em aberto uma série de possibilidades, ou seja, padecem de indeterminação. No segundo caso, por sua vez, o uso de formas gerais de linguagem gera a certeza da subsunção de determinado fato a uma regra formada naqueles termos gerais, que, em alguns casos, porém, “pode surgir incertezas quanto à forma de comportamento exigido por elas” (HART, op. cit, p. 139).
Isso significa que há uma zona de imprecisão, ou incerteza, ao redor de determinadas regras, termos gerais. Por exemplo, uma regra de proibição segundo a qual nenhum veículo pode ser levado a um parque. Apesar de ser um enunciado suficientemente claro para que todos entendam que não é permitido levar um automóvel ao parque, isso não fica suficientemente claro no caso de, por exemplo, um automóvel elétrico, de brinquedo. São “situações de facto, continuamente lançadas pela natureza ou pela invenção humana, que possuem apenas alguns dos aspectos dos casos simples, mas a que lhes faltam outros” (HART, op. cit., 1. 139).
Para que haja utilidade, portanto, na aplicação destes termos gerais, é preciso que existam aqueles casos familiares e incontestáveis. Tal como no uso dos precedentes, é preciso considerar se o caso em questão se assemelha suficientemente ao caso simples em aspectos relevantes. Nesse contexto, é de se falar em um poder discricionário deixado pela linguagem. “No caso das regras jurídicas, os critérios de relevância e de proximidade da semelhança dependem de factores muito complexos que atravessam o sistema jurídico e das finalidades ou intenção que possam ser atribuídos à regra” (HART, op. cit., p. 140).
Neste sentido, segundo o autor, todos os sistemas jurídicos devem admitir um compromisso de que certas regras podem ser aplicadas pelos indivíduos privados a eles próprios, e a necessidade de deixar em aberto questões que só podem ser adequadamente apreciadas e resolvidas quando surgem num caso concreto (HART, op. cit., p. 143). Assim, para controlar os extremos deste dilema – regras com termos muito gerais e abertos, ou, ao contrário, regras que somente exemplificam uma situação, como no caso dos precedentes –, os sistemas jurídicos providenciam uma variedade de técnicas, tais como a delegação do poder regulamentar aos órgãos executivos, ou a elaboração doutrinária de juízos comuns sobre razoabilidade.
A textura aberta do direito significa que há, na verdade, áreas de conduta em que muitas coisas devem ser deixadas para serem desenvolvidas pelos tribunais ou pelos funcionários, os quais determinam o equilíbrio, à luz das circunstâncias, entre interesses conflituantes que variam em peso, de caso para caso. Seja como for, a vida do direito traduz-se em larga medida na orientação, quer das autoridades, quer dos indivíduos privados, através de regras determinadas que, diferentemente das aplicações de padrões variáveis, não exigem deles uma apreciação nova de caso para caso. (HART, op. cit., p. 148)
Por último, Hart tece severos argumentos contra a teoria do ceticismo, segundo a qual não existem regras no sistema jurídico, senão aquelas decorrentes das decisões dos juízes. Ora, em última análise, isso implica dizer que os juízes não estão vinculados a nenhum tipo de padrão, e, assim, eles exercem um poder discricionário nos casos que lhe são submetidos. Esta problemática será um dos principais pontos da crítica formulada por Ronald Dworkin, como veremos.
Dessa forma, Hart rejeita a posição cética, afirmando que em qualquer sistema jurídico os juízes estão sujeitos a determinados padrões estabelecidos, e que não é possível negar a existência dos mesmos. Afinal, na medida em que é possível afirmar que geralmente os juízes obedecem um determinado padrão, é igualmente permitido falar que eles reconhecem a sua existência e os aceitam:
(...) os juízes, mesmo os do supremo tribunal, são parte de um sistema cujas regras são suficientemente determinadas na parte central para fornecer padrões de decisão judicial correcta. Estes padrões são considerados pelos tribunais como algo que não pode ser desrespeitado livremente por eles no exercício da autoridade para proferir essas decisões, que não podem ser contestadas dentro do sistema. (HART, op. cit., p. 159)
Portanto, conclui o autor, quando há clareza no que é exigido pelas regras, é possível predizer as decisões de um tribunal, pois se sabe que os tribunais consideram as regras jurídicas “como padrões a seguir na decisão, suficientemente determinados, apesar da sua textura aberta, para limitar o seu carácter discricionário, embora sem o excluir” (HART, op. cit., p. 161).