Multiplicam-se pelo Brasil casos de indeferimento de autorização de compra de arma de fogo por cidadãos civis. À exceção de uma ou outra eventual insuficiência documental, a quase totalidade dos casos tem a mesma justificativa: não ter a autoridade policial que representa o SINARM se convencido da necessidade da arma, de forma a excepcionar a diretriz de governo firmada no desarmamento. O despacho de indeferimento, não raro, é padronizado neste sentido, independentemente da situação concreta do requerente.
Ocorre que, na análise de pedidos de autorização para a aquisição de arma de fogo, não há, sob a estrita ótica legal, qualquer espaço para o exercício de juízo de discricionariedade pela autoridade policial. À luz da Lei nº 10.826/03, popularmente conhecida como “estatuto do desarmamento”, a autorização de compra é ato vinculado, exigindo apenas a satisfação de requisitos objetivos.
A matéria tem regulamentação específica no artigo 4° da referida Lei, de cujos termos se infere:
Art. 4º Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá, além de declarar a efetiva necessidade, atender aos seguintes requisitos:
I - comprovação de idoneidade, com a apresentação de certidões negativas de antecedentes criminais fornecidas pela Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral e de não estar respondendo a inquérito policial ou a processo criminal, que poderão ser fornecidas por meios eletrônicos;
II – apresentação de documento comprobatório de ocupação lícita e de residência certa;
III – comprovação de capacidade técnica e de aptidão psicológica para o manuseio de arma de fogo, atestadas na forma disposta no regulamento desta Lei.
§ 1° O Sinarm expedirá autorização de compra de arma de fogo após atendidos os requisitos anteriormente estabelecidos, em nome do requerente e para a arma indicada, sendo intransferível esta autorização.
De acordo com o texto legal, não desafia maiores digressões a objetividade dos requisitos listados nos incisos I a III, porquanto se mostrem, inquestionavelmente, de comprovação documental, seja por certidões negativas (I), contracheque, declaração de imposto de renda ou equivalente (II), ou através de laudos de capacitação próprios (III).
A controvérsia, assim, se estabelece quanto à declaração de necessidade, trazida no caput do artigo 4º, especificamente quanto à possibilidade de a autoridade policial a analisar, não sob o ponto de vista formal, isto é, de ter sido efetivamente apresentada, mas em relação ao seu conteúdo, para aferir se a declaração é suficiente a demonstrar a efetiva necessidade invocada pelo requerente.
Os despachos de indeferimento lastreados na análise de mérito da declaração invocam como fundamento as disposições do Decreto nº 5.123/04, que, regulamentando a Lei nº 10.826/03, autorizariam o procedimento em seu artigo 12, § 1º:
Art. 12. Para adquirir arma de fogo de uso permitido o interessado deverá:
I - declarar efetiva necessidade;
[...]
§ 1° A declaração de que trata o inciso I do caput deverá explicitar os fatos e circunstâncias justificadoras do pedido, que serão examinados pela Polícia Federal segundo as orientações a serem expedidas pelo Ministério da Justiça.
[original sem destaques]
No mesmo sentido, firma-se a Instrução Normativa nº 23/2005 – DG/DPF/MJ, editada pelo o Ministério da Justiça, através do Departamento de Polícia Federal, para exigir, não só a declaração, mas a comprovação da efetiva necessidade da arma de fogo:
Art. 6º. Para o requerimento e expedição da Autorização para Aquisição de Arma de Fogo de uso Permitido por Pessoa Física, deverão ocorrer os seguintes procedimentos:
[...]
§ 1º. A autoridade competente poderá exigir documentos que comprovem a efetiva necessidade de arma de fogo.
A exegese dos referidos dispositivos infralegais (Decreto 5123/04 e IN 23/05) deixa patente que a exigência trazida na Lei, de “declaração” de necessidade, foi regulamentada de modo restritivo, passando a corresponder, não mais a uma mera manifestação unilateral do requerente, mas à efetiva comprovação do quanto declarado.
Sucede que, ao assim disporem, os referidos dispositivos regulamentares culminam por malferir, flagrantemente, o Princípio da Legalidade, ao qual está submetida a Administração Pública, por força do quanto estatuem os artigos 5°, II, e 37 da Constituição Federal:
Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:
(...)
II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei;
[...]
Art. 37. A administração pública direta e indireta de qualquer dos Poderes da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiência e, também, ao seguinte:
[originais sem destaques]
Isso porque a própria Lei nº 10.826/03 traz distinção expressa entre a “declaração de efetiva necessidade” e sua “demonstração”, somente exigindo a segunda para procedimento específico, consubstanciado, não na aquisição de arma de fogo, mas na autorização para seu porte.
O entendimento deflui claramente do quanto dispõe o artigo 10 da aludida lei, no qual, ao contrário do disposto no artigo 4º (declaração), foi firmada a efetiva exigência de que o requerente demonstre a necessidade declarada:
Art. 10. A autorização para o porte de arma de fogo de uso permitido, em todo o território nacional, é de competência da Polícia Federal e somente será concedida após autorização do Sinarm.
§ 1º A autorização prevista neste artigo poderá ser concedida com eficácia temporária e territorial limitada, nos termos de atos regulamentares, e dependerá de o requerente:
I – demonstrar a sua efetiva necessidade por exercício de atividade profissional de risco ou de ameaça à sua integridade física;
[destaques acrescidos]
A sistemática legal, portanto, é clara ao estabelecer distinção entre os requisitos para a aquisição de arma de fogo e o seu porte, tendo o legislador, por óbvias razões, recrudescido as exigências para o segundo. Enquanto a aquisição é vinculada legalmente à declaração de necessidade (art. 4º), ou seja, mero termo formal firmado sob a responsabilidade do requerente, o porte exige a efetiva demonstração dessa necessidade (art. 10).
Desse modo, jamais poderiam os dispositivos regulamentares infralegais equiparar os dois institutos, para que se passe a exigir requisitos apenas aplicáveis à autorização para o porte de arma também à sua aquisição.
A vedação é corolário do regramento basilar de que, sob o prisma do Princípio da Legalidade, não cabe ao intérprete, ainda que regulamentador, estabelecer restrições adicionais àquilo a que a lei não fez - ubi lex non distinguit, nec nos distinguere debemus.
Sobre o tema, assim leciona, com a habitual precisão, CELSO ANTÔNIO BANDEIRA DE MELLO:
O Texto Constitucional brasileiro, em seu art. 5º, II, expressamente estatui que: ‘Ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei’.
Note-se que o preceptivo não diz ‘decreto’, ‘regulamento’, ‘portaria’, ‘resolução’ ou quejandos. Exige lei para que o Poder Público possa impor obrigações aos administrados. É que a Constituição brasileira, seguindo tradição já antiga, firmada por suas antecedentes republicanas, não quis tolerar que o Executivo, valendo-se de regulamento, pudesse, por si mesmo, interferir com a liberdade ou a propriedade das pessoas.
(...)
Em suma: consagra-se, em nosso Direito Constitucional, a aplicação plena, cabal, do chamado ‘princípio da legalidade’, tomado em sua verdadeira e completa extensão. Em consequência, pode-se, com Pontes de Miranda, afirmar: ‘Onde se estabelecem, alteram ou extinguem direitos, não há regulamentos – há abuso de poder regulamentar, invasão de competência legislativa. O regulamento não é mais do que auxiliar das leis, auxiliar que sói pretender, não raro, o lugar delas, mas sem que possa, com tal desenvoltura, justificar-se e lograr que o elevem à categoria de lei’. (in Curso de Direito Administrativo, 26ª ed. rev. e amp., p. 341)
Outra não é a linha intelectiva do Superior Tribunal de Justiça sobre a matéria:
“ADMINISTRATIVO. OPÇÃO PELA CARREIRA DO SEGURO SOCIAL CRIADA POR FORÇA DA LEI N.º 10.855/04. APRESENTAÇÃO DO PEDIDO FORA DO PRAZO INICIALMENTE PREVISTO. REGRA QUE CONCEDE CONTAGEM DE PRAZO EXCEPCIONAL AOS SERVIDORES QUE SE ENCONTRAVAM AFASTADOS NOS TERMOS DOS ARTS. 81 E 102 DA LEI N.º 8.112/90. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA. IMPOSSIBILIDADE. ADMINISTRAÇÃO. ADSTRITA AO PRINCÍPIO DA LEGALIDADE. 1. O art. 3.º, § 10, da Lei n.º 10.855/04 não possui comando no sentido de que a exceção trazida em seu bojo dirigir-se-ia apenas aos servidores que, na data de edição da Medida Provisória n.º 146/03, já estivessem afastados pelos motivos discriminados nos arts. 81 e 102 da Lei n.º 8.112/90. 2. Em atendimento ao princípio hermenêutico de que "não cabe ao intérprete limitar o alcance o comando normativo de lei, se essa não traz qualquer restrição expressa nesse sentido", a referida norma deve abranger todos os servidores que se encontravam afastados do serviço ativo pelas razões nela previstas e, por via de consequência, restaram impedidos de apresentar o "termo de opção irretratável", no final do prazo previsto no § 2.º do art. 2.º da Lei n.º 10.855/04 - com a redação dada pelo art. 2.º da Lei n.º 10.994/04. 3. A Administração, por ser submissa ao princípio da legalidade, não pode levar a termo interpretação extensiva ou restritiva de direitos, quando a lei assim não o dispuser de forma expressa. 4. Recurso especial conhecido e desprovido.” (REsp 1091561/PR, Rel. Ministra LAURITA VAZ, QUINTA TURMA, julgado em 06/03/2012, DJe 19/03/2012)
“RECURSO ESPECIAL. ADMINISTRATIVO. CONSELHO REGIONAL DE ENFERMAGEM. COMPETÊNCIA DE FISCALIZAÇÃO. ENFERMEIROS MILITARES. INTERPRETAÇÃO RESTRITIVA DAS REGRAS DE EXCEÇÃO. RECURSO DESPROVIDO. 1. A controvérsia inserta nos autos cinge-se à análise da possibilidade de o Conselho Regional de Enfermagem do Rio Grande do Sul fiscalizar os profissionais de enfermagem que atuam na Policlínica Militar de Porto Alegre. (...) 7. Se as Leis 5.905/73 e 7.498/86 não fizeram restrições, é vedado ao intérprete fazê-las, sob pena de violar o princípio da separação dos poderes. Aliás, é princípio basilar da hermenêutica que não pode o intérprete restringir onde a lei não restringe ou excepcionar onde a lei não excepciona. 8. A respeito do tema, Carlos Maximiliano, ao discorrer sobre o brocardo jurídico "ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus: onde a lei não distingue, não pode o intérprete distinguir", afirmou que, "quando o texto dispõe de modo amplo, sem limitações evidentes, é dever do intérprete aplicá-lo a todos os casos particulares que se possam enquadrar na hipótese geral prevista explicitamente; não tente distinguir entre as circunstâncias da questão e as outras; cumpra a norma tal qual é, sem acrescentar condições novas, nem dispensar nenhuma das expressas" (in "Hermenêutica e Aplicação do Direito", 17ª ed., Rio de Janeiro: Forense, 1998, p. 247). 9. Ademais, relativamente à Lei 6.681/79, a qual estabeleceu ressalva à fiscalização dos médicos, cirurgiões-dentistas e farmacêuticos militares pelas Forças Armadas, saliente-se que, em se tratando de regra de exceção, torna-se inviável a utilização de exegese ampliativa ou analógica. É inadequada a interpretação extensiva e a aplicação da analogia em relação a dispositivos infraconstitucionais que regulam situações excepcionais, porquanto enseja privilégio não previsto em lei. 10. "As disposições excepcionais são estabelecidas por motivos ou considerações particulares, contra outras normas jurídicas, ou contra o Direito comum; por isso não se estendem além dos casos e tempos que designam expressamente" (MAXIMILIANO, Carlos. ob. cit., pp. 225/227).11. Na hipótese dos autos, há previsão legal que autoriza a fiscalização pelos Conselhos Regionais de Enfermagem das atividades exercidas pelos enfermeiros em geral. Por outro lado, não há lei que excepcione essa aplicação aos enfermeiros militares. Assim, entender-se que a restrição de que trata a Lei 6.681/79 aplica-se, analogicamente, aos profissionais militares de enfermagem é violar a própria Constituição Federal e, consectariamente, o princípio da estrita legalidade. 12. Por fim, ressalte-se que a Administração Pública, direta ou indireta, somente pode atuar dentro dos limites da lei, de maneira que a ausência de previsão legal há de ser interpretada como ausência de liberação para o exercício de poder jurídico. Desse modo, "em atendimento ao princípio da legalidade estrita, o administrador público, na sua atuação, está limitado aos balizamentos contidos na lei, sendo descabido imprimir interpretação extensiva ou restritivamente à norma, quando esta assim não permitir" (AgRg no REsp 809.259/RJ, Rel. Min. Laurita Vaz, DJe de 13.10.2008). 13. Recurso especial desprovido”. (REsp 853.086/RS, Rel. Ministra DENISE ARRUDA, PRIMEIRA TURMA, julgado em 25/11/2008, DJe 12/02/2009)
[destaques adicionados]
Portanto, se a lei, em sentido formal, estabelece nítida distinção entre os requisitos para a aquisição de arma de fogo e o seu porte, a norma infralegal que os equipara caracteriza-se, inegavelmente, como violadora ao Princípio da Legalidade.
Consequentemente, não havendo na Lei nº 10.826/03 nenhuma previsão para que o interessado demonstre a efetiva necessidade de uma arma de fogo, mas que apenas a declare, tem-se viciado de ilegalidade o ato da autoridade policial que nega a autorização de compra daquela por falta da referida comprovação. Nos efetivos termos legais, a expedição da autorização de compra é ato vinculado, para o qual são exigidos requisitos objetivos, sistemática cuja inobservância deve ser reparada através de submissão do fato concreto ao Poder Judiciário.