Meus alunos, com frequência, questionam-me se o Direito Administrativo é efetivamente uma solução para as crises da sociedade. Costumo afirmar que o Direito Administrativo, por regular a atuação dos órgãos públicos entre si, entre o poder público e as empresas e entre o poder público e o cidadão, expressa, de forma prática, a aplicação de princípios constitucionais e garantias individuais.
Desse modo, a minha resposta, como professor de Direito Administrativo, é que, efetivamente, esse ramo do direito pode contribuir para evitar gravíssimos problemas sociais.
Tomemos como exemplo o episódio de junho do ano passado, que, teoricamente, nasceu de anseio de parcela da sociedade na busca de melhor transporte coletivo e redução de preços públicos. Esse anseio, quando vislumbrado pelo Direito Administrativo, encontra respostas diferentes para as quais os governantes e os agentes públicos não parecem ter se preparado ou, mesmo detendo elevada capacidade de gestão, não utilizaram ferramentas que o Direito Administrativo disponibiliza aos operadores do direito.
Vamos à teoria e, depois, à prática, lembrando que a boa teoria, na prática, deve ser ainda melhor. Os contratos de transporte coletivo se inserem com frequência na modalidade de serviços públicos concedidos. A concessão é tratada na Lei 8.987/1995[1], posterior à lei geral de licitações e contratos, mas nem por isso afasta integralmente suas disposições. Entre os princípios da referida Lei, expressamente dispostos no art. 6º, está a modicidade das tarifas.
Tarifas módicas são aquelas que representam dois grandes vetores. O primeiro é o da justa remuneração pelo prestador do serviço. Esse atributo da tarifa visa assegurar o primado da Constituição Federal, expresso em seu art. 37, inciso XXI[2], segundo o qual os contratos administrativos devem ter como fundamento o equilíbrio econômico-financeiro da proposta. Portanto, é correto afirmar que o prestador do serviço, durante toda a sua execução, tem uma garantia fundamental, que deve ser intangível aos interesses políticos, muitas vezes disfarçados de um populismo extremamente danoso à sociedade, ao direito e, por consequência, ao estado democrático de direito. Quando um governante sinaliza que a passagem de ônibus não deve subir ou que vai fazer favores a determinados segmentos, por mais necessitados que sejam, após a concessão, está violando a garantia constitucional, erigida em favor do particular, do equilíbrio econômico-financeiro do contrato.
O segundo atributo que diz respeito à tarifa módica se refere ao preço da tarifa para o usuário. Como visto, essa não pode ir além do dever de remunerar, com justiça, o prestador de serviço. Ocorre que entre o preço justo para aquele que investe para formar a estrutura básica do serviço, adquirindo os ônibus e outros veículos para a prestação do serviço adequado, e o que o usuário pode pagar – esse componente político também é reconhecido pelo direito como legítimo – pode estar uma diferença. Tomemos em consideração uma situação hipotética em que o preço da tarifa justa para o prestador de serviço é de R$ 4,00, e para a sociedade o preço seja de R$ 1,00. A diferença pode legitimamente ser transferida a toda a sociedade pelo instituto do subsídio da tarifa. Esse aspecto político, e somente político, compete aos governantes, eleitos pelo povo, decidirem. Assim, quando um prefeito decide onerar toda a sociedade para favorecer os usuários do transporte coletivo, arcando com a diferença entre o preço adequado para o usuário e a justa remuneração para o prestador de serviço, levará em conta o que considera socialmente justo. O socialmente justo dificilmente se insere no balizamento estrito de uma norma, ficando como um elemento além do jurídico.
Outra questão importante e também objeto de frequentes reclamações é a qualidade do serviço público, que, pela Lei de Concessões, tem a denominação de “serviço adequado”. Este está conceituado na Lei nº 8.987/1995, que dispõe do seguinte modo:
Art. 6º. [...]
§ 1º Serviço adequado é o que satisfaz as condições de regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas.[3]
Verifica-se que o poder público, não se sabe de onde, retirou do usuário do serviço público o direito de decidir se o serviço é adequado ou não. Isso ocorreu de vários modos e talvez até pela aplicação direta da lei geral de licitações, que, em um passado recente, foi considerado procedimento adequado para a verificação do serviço correto ou a qualidade que o usuário pretende do prestador de serviço.
Eis o texto legal:
Art. 67. A execução do contrato deverá ser acompanhada e fiscalizada por um representante da Administração especialmente designado, permitida a contratação de terceiros para assisti-lo e subsidiá-lo de informações pertinentes a essa atribuição.
§ 1º O representante da Administração anotará em registro próprio todas as ocorrências relacionadas com a execução do contrato, determinando o que for necessário à regularização das faltas ou defeitos observados.
§ 2º As decisões e providências que ultrapassarem a competência do representante deverão ser solicitadas a seus superiores em tempo hábil para a adoção das medidas convenientes.[4]
Verifica-se que, de certo modo, o legislador personalizou em um só agente o oneroso dever de definir a regularidade ou não da prestação do serviço. Ocorre que essa norma legal pode ser ampliada por outros instrumentos jurídicos. Aliás, é frequente que o executor do serviço venha a utilizar-se de sistemas de pesquisa de opinião entre usuários para definir, com maior legitimidade, se o serviço está ou não sendo prestado adequadamente.
Uma das ideias que tenho apresentado é o uso das urnas eletrônicas como o instrumento mais adequado para impor e harmonizar a mais ampla manifestação sobre a qualidade dos serviços. A ideia é simples e já foi considerada possível por juízes eleitorais, faltando, portanto, apenas coragem para implantá-la. O procedimento seria o seguinte: o prefeito toma emprestadas as urnas eletrônicas com um software de cada um dos atributos – regularidade, continuidade, eficiência, segurança, atualidade, generalidade, cortesia na sua prestação e modicidade das tarifas – tal como se fossem candidatos. Para cada atributo, o usuário daria uma nota de zero a nove.
Ao encerrar “a votação” da qualidade do serviço, o usuário estaria expressando, de forma mais democrática, a sua opinião. De maneira simples, o sistema poderia ser implantado e sucessivamente expandido a outros serviços. Percebe-se que, embora seja uma ideia simples, os interesses econômicos, políticos e outros podem não levar adiante uma das formas aqui expostas de prestar serviço público adequado e poder comprová-lo.
Quando o direito não responde à justiça social e à paz social, é frequente que o povo se expresse diretamente por modos menos ortodoxos, tal como ocorreu em junho do ano passado.
Notas
[1]BRASIL. Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências. Diário Oficial da União [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 14 fev. 1995.
[2]BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 05 out. 1988. Art. 37, inciso XXI.
[3]BRASIL. Lei nº 8.987, de 13 de fevereiro de 1995. Dispõe sobre o regime de concessão e permissão da prestação de serviços públicos previsto no art. 175 da Constituição Federal, e dá outras providências. Diário Oficial da União [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 14 fev. 1995. Art. 6º.
[4]BRASIL. Lei nº 8.666, de 21 de junho de 1993. Regulamenta o art. 37, inciso XXI, da Constituição Federal, institui normas para licitações e contratos da Administração Pública e dá outras providências. Diário Oficial [da] República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 22 jun. 1993. Art. 67.