8. DIREITOS DOS ANIMAIS NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO
Antes de analisar a questão da participação dos animais em sacrifícios religiosos afro-brasileiros, deve-se esclarecer o entendimento que a legislação pátria adota acerca dos direitos dos animais enquanto sujeitos ou não de direitos e a proteção jurídica a eles conferida.
8.1. Animal como sujeito de direito e direito animal
No ordenamento jurídico brasileiro, tradicionalmente, os animais são entendidos como coisas, o que quer dizer que “estão disciplinados como propriedade dos humanos e que estes podem usar, gozar e dispor, inclusive doá-los e vendê-los” (GOMES, p. 03).
Silva Júnior (2012, p. 31) esclarece que a Lei n° 5.197/67 (Lei de Proteção à Fauna, mais conhecida como Código de Caça), em seu artigo 1º, considera que os animais componentes da fauna silvestre são propriedade da União. Já os animais domésticos, ou domesticados, são de propriedade de particulares, classificados pela legislação como bens móveis, que se movem por sua própria natureza, chamados de semoventes (GOMES, 2010, p. 172).
Sendo entendidos como coisas, os animais não são considerados sujeitos de direito, mas objetos do direito pertencente à coletividade.
Essa é uma visão influenciada pela noção de superioridade dada ao homem pelo catolicismo com a disseminação da ideia de que o homem foi feito à “imagem e semelhança de Deus”, que teria lhe dado o domínio sobre os outros animais (GOMES, p. 04).
Medeiros (p. 01) aponta que as relações do homem para com os animais e a natureza sempre foram caracterizadas pelo domínio, pela exploração, arbitrariedade, irresponsabilidade e pela noção de superioridade, a quem ele atribui a legitimação de tais condutas primeiro a Sócrates e, posteriormente, pelo Direito. As ideias de Sócrates dão azo ao antropocentrismo, que surgiria posteriormente, com a máxima “conhece-te a ti mesmo”. Aristóteles, aperfeiçoando a ideia lançada pelos socráticos, acreditava na superioridade do homem em razão deste possuir o dom das palavras, e é quando os animais passam a ser vistos como escravos do homem.
Embora houvesse essas ideias, outros filósofos Greco-romanos, como Plutarco e Porfírio, defendiam que os animais tinham capacidade racional, e Ovídio e Sêneca defendiam que os animais podiam sentir dor. Desse modo, reconheciam aos animais a capacidade de sentir dor e sofrer, de se comunicar. (GOMES, p. 02)
Com o racionalismo, de Descartes, para quem o animal era como uma máquina, incapaz de falar, pensar e sentir, há uma segregação entre o homem e a natureza e demais seres vivos, dando ensejo à vivissecção, uma prática que se difundiu pela Europa rapidamente. Neste contexto, Thomas Hobbes, em sua obra “O Leviatã” (1651), lança as bases da teoria do contrato social, o que viria a influenciar o pensamento acerca dos animais:
Para Hobbes, a linguagem é o elemento que forma as relações políticas e sociais. Com isso, os animais, desprovidos de linguagem, ficam fora do contrato social, sendo reduzidos, posteriormente, a propriedade privada por Locke (1632–1704), que acreditava que tudo que não fosse natureza humana não tem vontades ou direitos, impingindo aos animais não-humanos a condição de recursos disponíveis para toda a humanidade. (MEDEIROS, p. 02)
Este entendimento é amparado por Kant, para quem os animais não são seres autoconscientes, e, por essa razão, existiriam apenas como instrumento destinado a um fim, que é satisfazer o homem. Deste modo, os humanos possuiriam apenas deveres indiretos para com eles, pois o seu verdadeiro fim é a humanidade (SILVA, p. 04), concepção.
Há ainda o especismo, que consiste em considerar que os fatores biológicos da espécie humana têm um valor moral maior do que das outras, razão pela qual a vida e os interesses do individuo pertencentes a ela teriam mais valor do que a vida e os interesses dos outros seres. O especismo reproduz um pensamento construído por uma ideologia, antropocêntrica, que se fundamenta na ideia de que o ser humano é superior, elegendo as características do uso da razão e da espiritualidade como critérios de exclusão dos animais não humanos da esfera moral (ARGOLO, p. 03-04).
Houve, porém, uma mudança na postura com relação aos animais, com o surgimento de algumas correntes. A primeira corrente a ser citada é a do “bem-estarismo”, defendida por Bentham, Linzey, entre outros teóricos. Os defensores dessa corrente tinham o objetivo de libertar os animais do tratamento desumano e cruel a que eram submetidos, lutando para que fossem criadas leis que coibissem sofrimento desnecessário e que promovessem um tratamento humanitário aos animais. Para esta teoria, os animais continuam a ser visto e tratados como coisas, propriedade dos humanos, permanecendo sujeitos ao entendimento que os humanos tem do que seja sofrimento desnecessário e tratamento humanitário. O bem-estarismo é uma teoria com ânimo jurídico, pois busca a promoção destas ideias à condição de leis, tendo se iniciado no século XIX, e continua influenciando os sistemas jurídicos, inclusive o brasileiro, como se demonstrará adiante (GOMES, p. 04).
Foi com o surgimento de correntes que defendiam que os animais seriam dignos de maior consideração que começou a batalha em prol da proteção ao animais. Humphry Primatt, em sua tese de doutorado “A dissertation on the duty of mercy and the sinn of cruelty against brute animals”, defendeu a igualdade de direitos entre os animais, argumentando que a igualdade não conseguiria ser alcançada enquanto o critério de configuração biológica continuasse a ser utilizado, pois agia mais como uma forma de discriminação do que de igualdade ao diferir os animais pela sua configuração física. Para Primatt, o homem é um animal igual a todos os demais animais, e devem-se levar em conta os interesses em comum, pois o animal humano e o animal não humano são capazes de sentir dor e de sofrer. Porém, para Primatt a superioridade conferida aos animais humanos desaparece quando estes utilizam suas habilidades para maltratar, humilhar, torturar e desprezar aqueles que não possuem esta superioridade, ou seja, os outros animais, de modo que não atribuía direitos aos animais não humanos, apenas entendia que os humanos deveriam ter compaixão pelos animais não humanos, em razão de seu maior grau de inteligência e de raciocínio, o que implicaria maior responsabilidade de suas ações sobre a vida, o bem-estar e a felicidade dos outros seres (GOMES, p. 02).
Jeremy Bentham, em 1789 e durante a revolução francesa, influenciado pelos textos do Primatt, em sua obra “uma introdução aos princípios morais e da legislação”, exige uma redefinição da comunidade moral, com a inclusão de todos os animais que tivessem a capacidade de sentir dor e de sofrer, com igualdade de tratamento para seres semelhantes independente da diferença biológica (GOMES, p. 03).
Destaque-se que Primatt lamentava não existir leis para impedir a crueldade contra os animais enquanto Bentham, ao contrário, não defendia a criação de leis, pois não conseguia perceber os animais como sujeitos de direitos. As ideias de ambos, contudo, foram de fundamental importância para a transformação do entendimento acerca dos animais não humanos como seres dotados de capacidades semelhantes ao dos animais humanos.
Além deles, Henry Salt, em 1892, ao publicar o livro Animal Rights, estabeleceu um marco, ao, pela primeira vez, relacionar direito e animais, por defender a inclusão de todos os animais no âmbito da comunidade moral, utilizando-se do argumento inaugurado por Primatt em defesa dos interesses sencientes, e estabelecer deveres positivos (de beneficência) e negativos (de não-maleficência) dos seres humanos em relação aos demais seres (SILVA, p. 08).
Outra importante corrente é a “abolicionista”, que defende que os animais devem ser deixados livres para que possam desfrutar de sua liberdade e natureza. Para esta corrente, os animais devem se liberar da condição de escravo, de propriedade, de objeto e de submissão ao desejo e vontade do homem.
É uma corrente ousada, pois para os seus seguidores não basta “minimizar o sofrimento”, é preciso “oferecer e assegurar justiça” para todos os animais, abolindo o poder do animal humano sobre os animais não humanos, acabar com o instituto da propriedade dada ao homem em virtude de uma superioridade baseada em fatores biológicos e por fim, garantir aos animais direitos de autonomia prática, direitos de não ser morto, aprisionado, expropriado e forçados a viver de forma não apropriada a sua espécie. (GOMES, p. 04-05)
Um de seus principais defensores é Tom Regan, para quem os animais têm direitos por que os humanos têm direitos. Ele assevera que uma teoria moral adequada para seres humanos deve incluir direitos morais, onde se incluiriam os animais, de sorte que não considerar estes direitos pode os indivíduos possuam valor apenas pelos benefícios que podem propiciar para outrem, ignorando-se o valor inerente de um indivíduo. Dessa forma, sua teoria tece objeção a teorias como o contratualismo e o utilitarismo, considerando que estas produzem resultados morais inaceitáveis não só para os animais, mas também para seres humanos (OLIVEIRA, 2004, p. 02).
Deve-se aqui fazer uma ressalva sobre o utilitarismo, que, para Ferry (2009, p. 76), é compreendido de forma equivocada, não devendo ser entendido como uma forma de egoísmo, mas como um universalismo/altruísmo, onde uma ação é considerada boa quando trouxer felicidade para o maior número possível de pessoas, e é má se for o contrário. O principal problema desta teoria seria, portanto, o fato de que há casos em que seria aceitável exigir o sacrifício pessoal em nome da felicidade da coletividade.
A perspectiva de Regan é influenciada por Kant, para quem apenas indivíduos racionais, autônomos, possuem valor inerente ou valor moral, mas com uma visão mais abrangente, diante do fato de que Kant parece não poder explicar por que crianças ou deficientes mentais, por exemplo, seguindo sua lógica, não devem ser explorados por seu valor instrumental – uma ideia que causaria repulsa nas pessoas. Regan alega, ainda, que alguns animais possuem uma complexidade psicológica que os torna sujeitos de uma vida, possuindo, desse modo, valor inerente e tendo, por isso, direito de serem tratados com respeito da mesma forma que humanos não paradigmáticos, que são os que não possuem autonomia/racionalidade.
Argolo (p. 05), afirma que vários são os fatores que determinam e dão a um ser vivo o status de sujeito de uma vida e irão diferenciar as plantas dos animais, que são o senso comum, a linguagem, o comportamento, corpos, sistemas e origens comuns, destacando que o critério da senciência, que seria a capacidade de sofrer ou sentir prazer ou felicidade e dor, não é suficiente para definir quem deve ou não entrar na esfera de consideração moral dos seres humanos.
Assim, critérios como inteligência, autonomia e racionalidade são critérios que excluem não só os animais como uma porção de seres humanos e, se os seres humanos não paradigmáticos fazem parte da comunidade moral, o mesmo deve ser atribuído aos animais com capacidades psicológicas similares, que passariam a estar envolvidos nas relações morais (OLIVEIRA, 2004, p. 02-03).
Considerando que nem todos os sujeitos de uma vida compartilham a habilidade de aplicar princípios morais, Regan faz uma diferenciação entre agentes, os capazes de deliberar sobre seus atos, e pacientes morais, que tem capacidade de sofrer dano. Assim, fundamenta a responsabilidade moral de, por exemplo, adultos em relação a crianças e adultos mentalmente enfermos, assim como em relação a animais. Para Regan, desse modo, tratar os animais com respeito passa a ser questão de justiça, não ato de mera benevolência (OLIVEIRA, 2004, p. 05).
Por outro lado, Silva Junior (2012, p. 28) aponta que há filósofos que se opõem à Libertação Animal (termo cunhado por Peter Singer, um abolicionista, em obra de mesmo nome), como Jan Naverson e Carl Cohen, para quem “direito é um conceito propriamente humano e, por isso, não deve ser aplicado aos animais que não compreendem esse conceito”. Aponta ainda que Ferry (2009, p. 96-97) apresenta duas críticas teóricas ao direito dos animais em oposição aos argumentos de Bentham, Singer e Regan, ao aduzir que, primeiramente, não é o sofrimento ou o prazer que concede ao ser humano o caráter de pessoa moral, capaz de direitos, mas a sua liberdade e indeterminação, possuindo a capacidade de se desfazer dos próprios interesses para considerar a coletividade, uma característica que não está presente nos animais, e, segundo, os animais não possuiriam capacidade evolutiva, ou seja, não tem cultura, somente modos de vida.
Argolo (p. 10) esclarece que ao se querer atribuir aos animais não humanos a qualidade de sujeito de direitos, não se pretende que eles tenham todos os direitos estabelecidos no ordenamento jurídico, apenas defender a sua titularidade de direitos fundamentais básicos. Destaca, ainda, que a dificuldade em se conseguir uma mudança de postura com relação aos animais como portadores de direitos se deve ao modelo econômico adotado pela sociedade:
É necessário que se considere que o problema envolvendo a exploração dos animais, na tradição da sociedade ocidental, está diretamente ligado ao uso e consumo, ou seja, a concretização da pseudo-viabilidade dos negócios humanos. O saber jurídico tende a excluir a possibilidade do animal ser considerado um sujeito dos direitos fundamentais à vida, à liberdade e à integridade física, pois seria essa inclusão responsável por mudar modelos enraizados e basilares do capitalismo, como é o caso do conceito de objeto de propriedade.
Defende-se que não há necessidade de mudança das leis já existentes no país para que os animais fossem incluídos na proteção jurídica de forma mais ampla, com seus direitos fundamentais resguardados, bastaria uma alteração no modo de interpretação do direito, desvinculado do atual viés dogmático (ARGOLO, p. 12). Como exemplo, cita-se o título I da Constituição Federal, que trata dos princípios fundamentais, ao estabelecer, em seu artigo 3º, inciso IV, a promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação, como um dos objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil, em que bastaria entender que a palavra “todos” pode ser estendida aos seres não humanos sem que, para isso, tenha sido demandado grande esforço interpretativo. Assim, a promoção do bem de seres de todas as espécies constituiria um dos objetivos da nação brasileira. Essa mudança, porém, só será possível se houver uma mudança também na mente de toda a sociedade (ARGOLO, p. 13).
Isso importaria, portanto, em uma acentuada virada paradigmática da percepção do Direito, no sentido de superar obstáculos e noções correntes e arraigadas, inclusive no âmbito do Direito Ambiental brasileiro, que, em relação à natureza jurídica dos animais não humanos, vive um dilema, pois se os animais não são considerados sujeitos de direitos, não podem ser considerados tampouco meros objetos.
Se a lei dispõe direitos aos animais, se objetos não possuem direitos, então os animais não são objetos e sim sujeitos de direitos. Caso se queira evitar esta conclusão, uma dogmática, a rigor, insustentável: os animais não-humanos são objetos que ostentam direitos. Nesta linha, a teoria jurídica se acha na complicada ou mesmo inviável tarefa de estabelecer um terceiro conjunto para, então, abarcar os animais. E, através deste modelo que exige reformulação a bem da lógica, os animais são postos como que em um limbo (OLIVEIRA, 2008, p. 02-03).
Prado (2005, p. 248) esclarece que, na verdade, os animais são, na verdade, objeto material das condutas típicas, cujos titulares do direito são a coletividade.
Como já dito, a nossa legislação tem bastante influência do bem-estarismo, concepção muito utilizada em termos de bioética, o que fez surgir o ramo do biodireito, a princípio discutido apenas no âmbito da saúde e medicina. A bioética fundamenta-se em alguns princípios, que são: a) não maleficência, que significa não fazer mal ou prejudicar; b) beneficência, em que se deve agir em benefício de outrem; c) autonomia, que se refere ao livre arbítrio das pessoas, cada uma possuindo soberania sobre seu corpo; d) justiça, em que todos devem ser tratados de forma equitativa, dando a cada um o que lhe corresponde. Estes princípios devem ser aplicados também aos animais, pois as novas teorias dos direitos dos animais recusam a ideia de que o animal só tem interesse em não sofrer, e reconhecem que eles têm o interesse também em continuar vivendo (DIAS, 2009, p. 04-05).
A bioética, como já dito, está ligada à noção de bem-estar animal, que é considerado quando garantidas liberdades como: liberdade nutricional, liberdade sanitária, liberdade comportamental, liberdade psicológica, liberdade ambiental (DIAS, 2009, p. 06). Dias cita ainda Peter Singer, ao afirmar que, por se tratarem de seres dotados de sensibilidade e consciência, os animais devem ser tratados com o mesmo respeito que os seres humanos. Deste modo, fica claro o entendimento mais moderno que direitos não devem ser conferidos com base na aparência do organismo, mas sim com base na necessidade do movimento e na semelhança da sensibilidade e da consciência (SILVA, p. 09). Ferry (2009, p. 77) entende que o único critério moral significativo para atribuição de direito é a capacidade de sentir prazer e sofrimento.
Este movimento resultou na promulgação da Declaração Universal dos Direitos do Animal (Anexo A), em 1978, que reconhece que o direito à vida é extensivo aos animais, quando afirma, constituindo uma tomada de posição filosófica no sentido de estabelecer diretrizes para o relacionamento do homem com o animal, buscando uma postura igualitária diante da vida. O reconhecimento, por parte da espécie humana, do direito à existência das outras espécies, constitui o fundamento para o reconhecimento, aos animais, do direito ao respeito, ao não sofrimento ou submissão a maus tratos, à liberdade em seu habitat, à proteção humana e legal. Isso implica no direito que tem todo ser de dispor dos meios e condições apropriados de subsistência e uma vida digna de acordo com sua espécie, sua natureza biológica e sua sensibilidade (DIAS, 2009, p. 02-03). Silva (2006, p. 396) reforça que, segundo o artigo 14 desta declaração, os direitos dos animais devem ser defendidos por leis, assim como o direito dos homens.
8.2. Proteção legal aos animais
Como visto, as concepções éticas que permeiam a legislação influenciaram na adoção de uma política de garantia ao bem-estar animal. Isso fica claro pela redação do artigo 225, parágrafo 1º, inciso VII, da Constituição Federal, que dispõe ser incumbência do Poder Público “proteger a fauna e a flora, vedadas, na forma da lei, as práticas que coloquem em risco sua função ecológica, provoquem a extinção de espécies ou submetam os animais a crueldade”.
Peter Singer, citado por Silva (p. 18), destaca que o fato dos animais não poderem, eles mesmos, protestar contra o tratamento que recebem, os deixa em desvantagem, necessitando de que outros defendam sua causa (SILVA, p. 18). Nesse contexto, para defesa do direito dos animais, o Ministério Público foi designado o seu representante, já que não podem se manifestar juridicamente. Há que se fazer uma observação: o legislador pátrio preocupou-se com a proteção contra a extinção da fauna e da flora, como também com a preservação de um sistema ecologicamente equilibrado, interesses do homem, não propriamente com os animais (GOMES, p. 05).
Milaré (2009, p. 174) acrescenta que, ao dar ao Poder Público a incumbência de proteger a fauna, a constituição ampara todos os animais, indistintamente, “vez que todos os seres vivos tem valor, função e importância ecológica, seja como indivíduo”, destacando que as leis existentes no país visam manter o equilíbrio ecológico em prol do homem.
Ora, pode-se dizer que a Constituição Brasileira de 1988 atribui aos animais um mínimo direito: o de não os submeter à crueldade, reconhecendo que os animais são dotados de sensibilidade, sendo a principal lei de proteção aos animais. Cada Estado brasileiro é livre para criar mecanismos de ajustes desta proteção, adequando a sua realidade social, e as constituições estaduais tem seguido o preceito federal (SILVA, p. 12-13).
No Brasil, o processo de constitucionalização dos direitos dos animais foi demorado, sendo que o primeiro registro de uma norma a proteger animais de quaisquer abusos ou crueldade foi o Código de Posturas do Município de São Paulo, de 1886, em que o artigo 220 dizia que os cocheiros, condutores de carroça estavam proibidos de maltratar animais com castigos bárbaros e imoderados, prevendo multa. No início do século XX, em 1924, foi elaborado o Decreto Federal 16.590 que regulamentava o funcionamento das casas de diversões públicas, que trazia como proibições uma série de maus tratos aos animais (SILVA, p. 13), como proibição às corridas de touros, garraios e novilhos, brigas de galos e canários, dentre outras (DIAS, 2000, p. 65).
A primeira lei federal com intuito de proteger os animais foi editada no Governo de Getulio Vargas, chefe do Governo Provisório, por inspiração do então ministro da Agricultura, Juarez Távora (DIAS, 2000, p. 66), o Decreto 24.645/34, que conferiu aos animais não humanos a garantia de serem protegidos pelo Estado Maior (GOMES, p. 07). Tinha força de lei, uma vez que o Governo Central avocou a si a atividade legiferante, por isso, embora conste como revogado no Serviço de Legislação Brasileira do Senado Federal, o Decreto-lei nº 24.645/34 continua em vigor, uma vez que sua expressa revogação foi estabelecida por instrumento que não era apto para tanto, já que, se surgiu com força de lei, não pode ser revogado por um decreto (MASCHIO, p. 14-15). Sua vigência, entretanto, está acobertada pela polêmica e nunca teve a força necessária para coibir os delitos (DIAS, 2000, p. 72).
Em 1941, foi editado o Decreto-lei nº 3.888 - a Lei das Contravenções Penais, em que foi inserido o artigo 64, com a finalidade de proteger os animais (MASCHIO, p. 14), com penas leves para o transgressor. Dias (2000, p. 72) afirma que pesquisas comprovadas mostravam que, na prática, não havia providências do Judiciário e nem da Polícia para a apuração das figuras típicas previstas na legislação contravencional.
O artigo 64 foi considerado revogado, todavia, com a edição de lei federal de grande importância para a defesa dos animais, na esteira do disposto pela constituição, que é a Lei 9605/98, a Lei dos Crimes Ambientais (GOMES, p. 07), que, em seu Capítulo V, dispõe de toda uma seção para tratar dos crimes contra a fauna, com destaque para o artigo 32:
Art. 32. Praticar ato de abuso, maus-tratos, ferir ou mutilar animais silvestres, domésticos ou domesticados, nativos ou exóticos:
Pena - detenção, de três meses a um ano, e multa.
§ 1º Incorre nas mesmas penas quem realiza experiência dolorosa ou cruel em animal vivo, ainda que para fins didáticos ou científicos, quando existirem recursos alternativos.
§ 2º A pena é aumentada de um sexto a um terço, se ocorre morte do animal.
Deve-se citar ainda a Lei 11.974/08, que estabelece procedimentos para o uso científico de animais, ou seja, em experimentos e pesquisa, criando órgãos destinados ao controle das pesquisas e estabelece alguns procedimentos e penalidades no caso de descumprimento.
Apesar de ainda ser considerado como bem, como se lê no artigo. 82, do Código Civil de 2002, ocorreram mudanças expressivas na situação do animal, haja vista o direito à propriedade dever ser exercido de modo que a fauna seja preservada e em consonância ao princípio da função socioambiental da propriedade (SILVA JÚNIOR, 2012, p. 30).
Estas transformações são fruto da Constituição de 1988 e não se restringem aos aspectos estritamente jurídicos, mas se entrelaçam com as dimensões ética, biológica e econômica dos problemas ambientais vividos. Nesse sentido, a vedação de práticas que submetam os animais a crueldade e maus-tratos, torna os animais não humanos titulares ou beneficiários do sistema constitucional, de modo que o Poder Público e a coletividade devem buscar a implementação de políticas públicas que visem à concretização deste preceito (SILVA, p. 14), com a prevenção à mortalidade das espécies e proteção aos animais contra o sofrimento e toda e qualquer agressão, que significa dar-lhes garantias de que possam viver em segurança, livre da violência humana, e de acordo com seus instintos básicos e interesses de sua espécie (DIAS, p. 03).
Conclui-se, desse modo, que resta ao legislador a obrigação de promover a proteção dos animais da maneira mais eficaz possível, se abstendo de suprimir ou reduzir padrões já comprovados de proteção aos animais, uma vez que há uma proibição do retrocesso ecológico, devendo o Estado buscar alcançar um patamar mínimo de proteção à dignidade animal (SILVA, p. 14).
Indaga-se, por outro lado, dadas as concepções que ainda permeiam o ordenamento jurídico acerca do status dos animais, e a existência, ainda, de uma visão utilitarista dos mesmos, quais os limites para essa proteção a que o Estado deve oferecer, diante de um conflito de interesses.