5 PRIMEIRO OLHAR CRÍTICO SOBRE O SISTEMA DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILEIRO
No Brasil convive-se desde o final do Século XIX com o sistema de controle difuso de constitucionalidade.
A experiência com o modelo de fiscalização abstrata, por sua vez, é deveras recente (especialmente se levada em conta a afirmação, já aduzida, de que este apenas teve repercussão significativa após a entrada em vigor da Constituição de 1988).
Comparando-se a estruturação dos dois modelos, é possível constatar, conforme já delineado, uma clara dicotomia: supremacia da Constituição e sistema de freios e contrapesos (modelo difuso, americano) contra supremacia da lei e nítida divisão de poderes (modelo concentrado, europeu).
Além da incorporação primeira do modelo difuso no Brasil (o que dá claro indício de que se tenha optado pela solução americana, e não pela europeia), seria absurdo supor que nossa ordem constitucional não abarque as ideias da supremacia da Constituição e do sistema de freios e contrapesos.
A supremacia da Constituição, como se sabe, é a ancora teórica do controle de constitucionalidade.[43]
Já a simples análise do "direito constitucional positivo" permite verificar a adoção do sistema de freios e contrapesos, inclusive em alguns pontos bastante similar àquele proposto pelos Federalistas e resumido linhas atrás. Basta que se considerem, de par com o modelo de controle difuso adotado desde o final do Século XIX, os seguintes artigos da Constituição: 2º (independência e harmonia dos poderes);[44] 22, 23, 24 e 30 (repartição de competências legislativas – com influência também do modelo germânico, como se sabe, e da municipalidade como ente federativo, mais uma típica criação brasileira); 44 (bicameralismo legislativo); 52, III (aprovação, pelo Senado, de autoridades nomeadas pelo Presidente da República); 61, § 1º (iniciativa legislativa privativa do Presidente da República); 70 (controle externo, pelo Congresso Nacional); 84, V (veto presidencial); 102, parágrafo único, 104, parágrafo único, 114-A (escolha dos Ministros do STF, do STJ e do TST pelo Presidente da República, ainda que, quanto às duas últimas Cortes, haja parametrização constitucional um pouco mais acentuada).
Assim, uma vez que o mecanismo dos freios e contrapesos e a supremacia da Constituição são facilmente identificáveis no direito constitucional brasileiro, não estaria o inciso X do artigo 52 da atual Constituição fora do próprio contexto do sistema de controle difuso originalmente desenhado no País? A resposta, inegavelmente, é positiva (basta que se lembre a lição de Rui Barbosa, já citada).
Em outras palavras, a suspensão, pelo Senado, da execução da lei declarada inconstitucional pelo STF não é uma estrita necessidade técnica que decorra do princípio da separação de poderes, especialmente se considerada a doutrina da supremacia da Constituição (a que nenhum jurista brasileiro parece se opor) e a tradição norte-americana de controle de constitucionalidade, manifestamente a primeira influência incorporada no Brasil sobre o tema.
6 CONSIDERAÇÕES SOBRE O PROCESSO CONSTITUINTE DE 1933-4
Importa, então, considerar a gênese da regra hoje contida no artigo 52, X, da CRFB. Introduz-se o assunto por meio de duas perguntas que objetivam instigar a reflexão: a atribuição, conferida ao Senado, de suspensão da execução de lei declarada inconstitucional de forma incidental pelo STF, é, efetivamente, exercício de prerrogativa inerente ao Poder Legislativo? se é, por que então foi conferida apenas àquela casa, e não ao Congresso Nacional?
As respostas são extraídas diretamente da análise do desenvolvimento do processo constituinte de 1933-4 e, em especial, com a consideração de que o anteprojeto apresentado pelo governo de Getúlio Vargas objetivava acabar com o bicameralismo federativo: extinguia-se o Senado e propunha-se, singelamente, que o Poder Legislativo fosse "exercido pela Assembleia Nacional, com a sanção do Presidente da República" (texto original do artigo 20 do anteprojeto).[45]
No decorrer da tramitação, a Emenda 1.949 propôs, em lugar do "Conselho Supremo" que constava do anteprojeto original,[46] a criação de um órgão chamado de "Conselho Federal", cujo objetivo seria o de promover a "coordenação" entre os poderes. Paulo Bonavides e Paes de Andrade afirmam que esta função de coordenação dos poderes tem seus antecedentes doutrinários no poder moderador do Império.[47]
Em paralelo, o artigo 57, § 3º, da redação original do anteprojeto, consagrava uma espécie de eficácia erga omnes para as decisões de inconstitucionalidade do Supremo: uma vez reconhecida, por 2/3 dos integrantes daquela corte (redação do § 1º), a inconstitucionalidade, caberia "a todas as pessoas, que se acharem nas mesmas condições do litigante vitorioso, o remédio judiciário instituído para garantia de todo direito certo e incontestável".[48] Essa questão suscitou diversos debates entre os constituintes, nos quais se tentou equacionar a necessidade de conferir-se força obrigatória aos julgados do Supremo com a compreensão que se tinha acerca da separação dos poderes.[49] Ao final, venceu a ideia que atribuiu ao Conselho Federal (imaginado, não é demais reiterar, para exercer a função de "coordenação de poderes", tanto que chamado por Ana Valderez Ayres Neves de Alencar de "superorgão")[50] a competência para suspender a execução da lei declarada inconstitucional pela mais alta Corte da nação.[51]
No decorrer do processo constituinte a corrente unicameralista perdeu força, sendo suplantada pela bicameralista.[52] O resultado prático disso, no entanto, foi a simples substituição do "Conselho Federal", como até então delineado, pelo Senado. Nas palavras do constituinte Raul Fernandes, o que houve foi apenas uma mudança de nome.[53] Paulo Bonavides e Paes de Andrade sublinham que Senado Federal foi um "nome de última hora", restabelecido por "emenda final de redação"[54] (a de número 711,[55] acrescenta-se).
Manteve o Senado, assim, a ressaltada feição de "superórgão" inicialmente conferida ao Conselho Federal, tanto que, a par de suas atribuições legislativas, conferiram-se lhe outras "de caráter administrativo e coordenador", incialmente projetadas para aquele.[56]
Em conclusão (e respondendo aos dois questionamentos que abrem o presente tópico): a regra hoje encontrada no art. 52, X, da CRFB tem sua gênese em ideia que nada tem a ver com exercício de função legislativa: antes, estava deslocada da construção teórica da separação de poderes (acima desta, em verdade, no patamar da "coordenação"). Seu ancestral histórico é o poder moderador do Império, e não o arranjo institucional da separação de poderes enquanto elemento teórico (nem mesmo enquanto consideração teórica em voga quando da Constituinte de 1933-4, acrescenta-se). Por isso mesmo é uma competência conferida apenas ao Senado (como sucessor do malfadado "Conselho Federal", sombra antirrepublicana àquele processo constituinte), não sendo compartilhada com a Câmara dos Deputados.[57]
Trata-se, portanto, de solução tipicamente brasileira, sem qualquer antecedente teórico ou político (senão, reitera-se, o poder moderador imperial). Em arremate à conclusão apresentada no parágrafo anterior, cita-se o pensamento de Luiz Guilherme Marinoni:
É indispensável perceber, assim, que o Senado assumiu a função de suspender a execução da lei apenas em razão de que, no contexto histórico, foi necessário conferir tal poder ao "Conselho" que possuía a função de "coordenação dos Poderes". Em outras palavras, isso ocorreu em virtude de má compreensão da função do Judiciário e de disputa entre os Poderes – baseados em distorcida e superada concepção de "separação dos poderes" –, que dificultaram a percepção de que a eficácia vinculante é uma decorrência absolutamente natural dos precedentes da Suprema Corte.[58]
7 SEGUNDO OLHAR CRÍTICO SOBRE O SISTEMA DE CONTROLE DE CONSTITUCIONALIDADE BRASILIEIRO. EFICÁCIA ERGA OMNES E EFICÁCIA VINCULANTE (EXPLÍCITA E IMPLÍCITA)
Ao olhar crítico sobre a gênese e o desenvolvimento histórico do controle de constitucionalidade brasileiro apresentado até aqui se deve, portanto, agregar a análise da jurisprudência recente do STF. Por meio da consideração das diferentes cargas de eficácia das decisões do Supremo em controle de constitucionalidade e do atual delineamento jurisprudencial do instituto da reclamação constitucional (especialmente a de competência do STF: artigo 102, I, l, da CRFB)[59] tem o presente estudo a pretensão de propor solução ao impasse teórico (e, por que não, até mesmo pragmático) que está, como demonstrado, no centro da regra contida no artigo 52, X, da CRFB.
Registra-se, desde já, que não se objetiva simplesmente desconsiderar a regra do artigo 52, X, da CRFB mas divisar, a partir da forma de análise proposta, o seu âmbito exato de aplicação.
A temática eficácia erga omnes e eficácia vinculante é tormentosa na doutrina e na própria jurisprudência do STF (tanto que sua orientação jurisprudencial recente acaba praticamente por diluir, como se verá, a segunda na primeira). Além de serem assuntos não assimiláveis à nossa tradição jurídica anterior à Carta de 1988, a produção científica a respeito dos temas é escassa (assim como o é a relativa à reclamação constitucional, instrumento que se viu, recentemente, atrelado à ideia de efeito vinculante – inicialmente no controle abstrato[60] e, após, por força de expressa previsão inserida por Emenda Constitucional, no que concerne às súmulas vinculantes).
Para diferenciar eficácia erga omnes de efeito vinculante, convém tentar conceituá-los.
Definição que oferece menor dificuldade é a da eficácia erga omnes. Assimila-se à ideia de "força de lei" do direito alemão. Em poucas palavras, trata-se da própria extirpação, da ordem jurídica, da norma declarada inconstitucional.[61]
Menos simples é a tarefa de encontrar uma definição para o que seja efeito vinculante. Embora, de maneira bastante autorizada, Gilmar Ferreira Mendes defenda, com base na doutrina germânica, que o efeito vinculante tem por objetivo outorgar à decisão do STF "amplitude transcendente ao caso concreto",[62] tendo a tese sido inicialmente aceita pela Corte na Reclamação (Rcl) 1987,[63] este entendimento acabou por ser superado em feito posterior, a Rcl 3014.[64]
Consagrou-se, então, na jurisprudência do Supremo, a ideia de que, na Rcl 3014, a Corte "rejeitou a aplicação da chamada 'teoria da transcendência dos motivos determinantes'", o que, no entanto, deve ser considerado de forma crítica.
A análise dos debates levados a efeito na Rcl 3014 (o acórdão tem 95 páginas) permite claramente verificar que a preocupação dos Ministros do Supremo era menos teórica e mais de política judiciária: ao admitir que o efeito vinculante levasse à transcendência dos motivos determinantes (e, portanto, à possibilidade de ajuizamento de reclamação por pessoas não abrangidas pelo dispositivo da decisão prévia em controle abstrato), o receio dizia respeito exatamente à possível enxurrada de reclamações perante a Corte. Relembre-se que o problema enfrentado nas Rcls 1987, 3014, e em tantas outras em que a temática foi suscitada, dizia respeito à possibilidade de sequestro judicial de verbas públicas no contexto do pagamento de precatórios ou requisições de pequeno valor, situação que tem a potencialidade de se repetir não apenas em relação aos Estados da Federação mas, igualmente, por todos os Municípios do País (a Rcl 3014 fora ajuizada pelo Município de São Paulo).
Assim, após a apresentação do voto do Relator, Ministro Ayres Britto, afirmando que na Rcl 4219 o Tribunal retomou a discussão da teoria da transcendência dos motivos determinantes, tendo, até aquele momento, quatro Ministros votado de forma contrária à sua adoção, seguiu-se algum debate a respeito do conhecimento ou não da reclamação (uma vez que o Relator afirmou, ainda, que a tese acolhida no acórdão reclamado não estaria em desacordo com a daquele tido por afrontado), o que motivou pedido de vista do Ministro Gilmar Ferreira Mendes.
Em seu voto-vista, o Ministro Gilmar Mendes desviou o debate da aplicação da teoria da transcendência (ciente do início de sua rejeição pela Corte), afirmando que
a controvérsia reside não na concessão de efeito vinculante aos motivos determinantes das decisões em controle abstrato de constitucionalidade, mas na possibilidade de se analisar, em sede de reclamação, a constitucionalidade de lei de teor idêntico ou semelhante à lei que já foi objeto de fiscalização abstrata de constitucionalidade perante o Supremo Tribunal Federal.
Colocado o feito novamente em julgamento, acenderam-se os debates, oportunidade na qual o Ministro Gilmar Mendes explicitou motivos que permitem claramente relacionar sua posição (agora, reforça-se, no sentido de realizar controle incidental de constitucionalidade na reclamação) aos direitos fundamentais à tutela jurisdicional efetiva e à razoável duração do processo:
Estou propondo que o Tribunal examine para conhecer ou não da reclamação e, neste caso, emita incidentalmente um juízo sobre a constitucionalidade ou a inconstitucionalidade na reclamação; do contrário, nós permitiremos que essas questões cheguem ao Tribunal pela via do sistema difuso, com um ônus do ponto-de-vista até de economia processual, enorme para a Corte.
E, após intervenção do Ministro Cezar Peluso, arrematou: "Pior para as partes, porque o Tribunal só vai se pronunciar depois de muitos anos."
Seguiu-se intervenção da Ministra Cármen Lúcia, ressaltando, com base em dados apresentados pelo próprio Gilmar Mendes que "o número de reclamações vem crescendo assustadoramente." Segundo afirmou, portanto, era necessário que a Corte estabelecesse de forma bastante clara o rumo que iria tomar a partir dali. Imediatamente, o Ministro Sepúlveda Pertence invocou uma previsão do Ministro Moreira Alves em "encontro casual": "ele ainda vai viver para assistir o número das reclamações ultrapassar os agravos de instrumento" (hoje, apenas agravos, de acordo com a redação ao artigo 544 do Código de Processo Civil – CPC – dada pela Lei 12.322/2010).
A isso os Ministros Cezar Peluso e Gilmar Mendes opuseram que, pela via do controle difuso, o potencial de litigiosidade era enorme, sendo que seriam interpostos milhares de recursos extraordinários sobre o assunto e que um pronunciamento do Tribunal em reclamação como aquela então apreciada "certamente teria caráter pacificador".
Logo em seguida, a Ministra Cármen Lúcia concluiu que o Supremo, que não pode proceder ao controle abstrato de constitucionalidade de leis municipais, estaria concentrando esta atividade, pela via concreta, por meio da reclamação, com o que concordou o Ministro Gilmar Mendes.
Embora afirmando "certa simpatia" pela tese do Ministro Gilmar Mendes, a Ministra Cármen Lúcia afirmou acompanhar o Relator em razão da ausência de efetivo confronto com o paradigma.
Seguiram-se novas considerações a respeito das "escolhas" a serem feitas pelo Tribunal, de parte dos Ministros Gilmar Mendes e Cármen Lúcia, referendadas por posicionamento do Ministro Cezar Peluso, em que afirmou a necessidade de considerar-se o "efeito pedagógico" das decisões do Supremo, com o acesso direto à Corte via reclamação.
Neste ponto, o Ministro Joaquim Barbosa afirmou que se estaria "criando um atalho", uma "simplificação". Mas "atalho extremamente eficaz", redarguiu Cezar Peluso.
Em seguida, o Ministro Ricardo Lewandowski interviu para afirmar que seguia o Ministro Gilmar Mendes e julgava procedente a reclamação, por entender que havia, sim, similitude entre a decisão reclamada e a ADI julgada pelo Supremo, o que mudou o enfoque do debate.
Retomando o enfoque da questão estritamente na perspectiva da política judiciária, o Ministro Sepúlveda Pertence afirmou: "Estamos à beira de acabar com as outras instâncias", ao que o Ministro Ayres Britto acrescentou que se estava discutindo uma tese "concentracionária", que permitiria o acesso à Corte per saltum.
O julgamento foi interrompido por pedido de vista do Ministro Ricardo Lewandowski. Em seu voto, reafirmou sua adesão à tese do Ministro Gilmar Mendes, julgando procedente a reclamação.
O Ministro Marco Aurélio, então, voltou à questão do confronto entre a decisão recorrida e a tida como paradigma, para afirmar que julgava improcedente a reclamação.
Retomados os debates, a Ministra Ellen Gracie, novamente na perspectiva da política judiciária, relembrou à Corte que a repercussão geral foi criada exatamente para tratar de "questões multitudinárias". Afirmou-se que se trata de "remédios concorrentes" (Cezar Peluso) e contrapôs-se que "cada um deve ser utilizado na sua exata medida" (Ellen Gracie) e que a reclamação "não é o meio próprio" (Marco Aurélio). O Ministro Ayres Britto reiterou distinção, já apresentada ao longo dos debates, de que "A reclamação não se destina a guardar a Constituição" (ou seja, não seria instrumento de controle de constitucionalidade), mas a "guardar o guardião da Constituição".
Àquele ponto bem delimitadas as posições (Gilmar Mendes, Cezar Peluso e Ricardo Lewandowski de um lado e, do outro, Sepúlveda Pertence, Ayres Britto, Joaquim Barbosa, Ellen Gracie e Marco Aurélio), o Ministro Marco Aurélio exclamou: "daqui a pouco só teremos processos de capa rosa! Isso assusta."
O Ministro Cezar Peluso tentou, em perspectiva mais acadêmica, traçar um paralelo com a Suprema Corte americana, porém a Ministra Ellen Gracie o interrompeu afirmando que esta "tem um número bem menor de processos para julgar".
O Ministro Ayres Britto afirmou, em seguida, que se a tese for "levada às últimas consequências, ressuscita até a avocatória", ao que a Ministra Ellen Gracie acrescentou que o Supremo teria que "revisar todas as decisões judiciais do país."
Ressurgiram os debates acerca de ter havido, ou não, descumprimento à decisão do Supremo pela decisão reclamada, discorrendo os integrantes da Corte longamente acerca da interpretação do julgamento da ADI 2868, até o momento em que a Ministra Ellen Gracie instou fosse retomada a questão do cabimento da reclamação. Interveio pela primeira vez o Ministro Eros Grau, afirmando filiar-se à tese defendida pelos Ministros Ricardo Lewandowski e Gilmar Mendes.
Prosseguiram os debates, colocando-se novamente o problema de política judiciária em perspectiva, e encerrou-se o julgamento. O resultado final proclamado foi o seguinte:
o Tribunal, por maioria de votos, julgou improcedente a reclamação, vencidos os Senhores Ministros Gilmar Mendes (Presidente), Ricardo Lewandowski, Eros Grau, Cezar Peluso e Celso de Mello.
Em resumo, a tese da transcendência dos motivos determinantes foi deixada de lado em razão da proposta, apresentada pelo próprio Ministro Gilmar Mendes, de que se fizesse controle incidental de constitucionalidade na reclamação. E, a despeito da insistência da Ministra Ellen Gracie para que o Tribunal apreciasse a questão do cabimento, o fundamento que prevaleceu, para a maioria, foi o de que não seria possível contrastar, no caso concreto, a decisão reclamada com o julgamento da ADI, não tendo havido específico desrespeito à decisão do Supremo.
De todo modo, como o debate sobre o cabimento se deu a propósito do controle incidental na reclamação, este julgamento representa o precedente no qual o STF afastou a tese da teoria da transcendência dos motivos determinantes – muito embora, formalmente, tenha até conhecido da reclamação, uma vez que esta foi julgada improcedente!
Assim, embora a maioria não tenha deixado claro se admitia o exercício de controle incidental de constitucionalidade em reclamação, a prática posterior do Supremo, de simplesmente negar conhecimento a uma série de reclamações afirmando que a Corte rejeitou, na Rcl 3.014, a teoria da transcendência dos motivos determinantes, acaba por demonstrar que não se emprestou maior efetividade à nova tese formulada pelo Ministro Gilmar Mendes. O motivo, reitera-se, é claramente de política judiciária.
Convém aqui reforçar por que o STF houve por limitar o efeito vinculante apenas à parte dispositiva. Uma vez que o dispositivo da decisão na ação direta enunciará, por exemplo, que o pedido é julgado procedente para declarar inconstitucional a Lei X, do Estado A, apenas as pessoas atingidas pela Lei X é que poderão impugnar, perante o Supremo, decisões judiciais ou administrativas que apliquem aquela lei. Pessoas atingidas pela Lei Y, do Estado B, ou pela Lei Z, da União, ainda que a situação de inconstitucionalidade seja a mesma, não terão, a partir do que decidiu o Supremo na Rcl 3014, acesso direto à Corte por meio da ação de competência originária prevista no artigo 102, I, l, da Constituição. A motivação subjacente, não é demais reforçar, foi estancar um possível aumento vertiginoso de reclamações perante o Tribunal.
Em suma, a anunciada rejeição à tese da "transcendência dos motivos determinantes" no controle abstrato foi uma decisão de política judiciária.
Diga-se, a respeito, que a identificação dos motivos determinantes (ou, simplesmente, da ratio decidendi)[65] nada mais é do que técnica de aplicação de precedentes, seja de força obrigatória, seja de força persuasiva.[66] No cotidiano do próprio controle difuso, ao negar seguimento a miríades de recursos extraordinários e agravos, por contrariedade a entendimento jurisprudencial dominante (Súmula 286 do STF),[67] o Excelso Pretório e as presidências das cortes locais outra coisa não fazem senão identificar ratio decidendi ou motivos determinantes (para confirmar que o acórdão recorrido está de acordo com o entendimento da Corte). No contexto do artigo 557, § 1º-A, do CPC, acontece a mesma coisa, apenas que em sentido contrário: o relator identifica que a decisão recorrida contrariou entendimento dominante do STF e, por isso, dá provimento de plano ao recurso.[68]
O único problema, portanto (e, bem vistas as coisas, foi isso o que o STF rejeitou na Rcl 3014), está em possibilitar o ajuizamento da reclamação por pessoas não abarcadas pela coisa julgada erga omnes (em outras palavras, pelo dispositivo da decisão), ainda que da eficácia erga omnes propriamente dita o STF, como ainda se demonstrará, jamais tenha deduzido possibilidade de ajuizamento de reclamação...
Por isso é que se afirma que o atual entendimento do STF (ao limitar o efeito vinculante à parte dispositiva) acaba por diluir o efeito vinculante na coisa julgada erga omnes.[69]
Isso não quer dizer, contudo, como ainda se explicitará de forma mais clara adiante, que os tribunais e juízos inferiores não sejam vinculados ao que decide o Supremo em matéria constitucional, seja em controle concreto, seja em controle abstrato.
Um exemplo serve bem para ilustrar a afirmação.
Na ADI 3106,[70] o STF declarou inconstitucional a cobrança compulsória de contribuição para custeio de serviços de assistência à saúde de servidores do Estado de Minas Gerais. Segundo o entendimento sufragado pela Corte na Rcl 3014, apenas a lei mineira, portanto, é objeto do efeito vinculante previsto no artigo 102, § 2º, da CRFB. Isso não impediu, todavia, que diversos recursos extraordinários interpostos por outras Unidades da Federação contra decisões de seus tribunais locais que, em controle concreto, reconheceram inconstitucionalidade similar (inclusive mencionando o entendimento esposado pelo Supremo na ADI em questão) tivessem – ou ainda tenham – seguimento negado.
Ora, se os tribunais estaduais reconhecem a autoridade do julgamento do Supremo na ADI 3106 e se os recursos extraordinários interpostos deste tipo de decisão têm transito obstado (por exemplo, relativamente a leis de Goiás[71] e do Rio Grande do Sul),[72] é pouco mais do que evidente que o que determina esta possibilidade é a consideração dos "motivos determinantes" do julgamento da ação direta e não, obviamente, o seu dispositivo (que, reitera-se, declarou inconstitucional lei do Estado de Minas Gerais). Qualquer análise casuística da jurisprudência do Supremo a respeito de diversos outros temas permitiria uma demonstração do argumento ad nauseam, mas tem-se por suficiente o exemplo aqui utilizado.
Retomando a análise, convém agora trazer à memória a questão enfrentada na Rcl 4335. a discussão travada na Rcl 4335. Nesta, o Ministro Gilmar Mendes apresentou a tese da transcendência dos motivos determinantes da decisão do Supremo em controle incidental. Para tanto, fez menção a lições doutrinárias suas acerca da “mutação constitucional” operada em torno do artigo 52, X, da Constituição.[73] Segundo este seu entendimento, o dispositivo em comento, dado o atual estágio de evolução do controle de constitucionalidade, determinaria ao Senado a mera “publicidade” da decisão do STF, nenhum juízo político de conveniência e oportunidade devendo aquela casa legislativa fazer. Até que pedisse vista dos autos o Ministro Teori Zavascki, a Corte estava dividida entre o conhecimento da reclamação (o Ministro Eros Grau havia acompanhado o Relator) e o seu não conhecimento (voto dos Ministros Sepúlveda Pertence, Joaquim Barbosa e Ricardo Lewandowski).
Em seu voto, o Ministro Teori Zavascki salientou “a evolução do direito brasileiro em direção a um sistema de valorizações dos precedentes judiciais”, destacando diversos aspectos em que percebido um “movimento em direção à força subordinante dos precedentes”, em previsões normativas que lhes conferem “eficácia ampliada para além das fronteiras da causa concreta em julgamento”,[74] o que chamou de “força expansiva ultra partes”. No entanto, no que diz respeito ao manejo de reclamação, afirmou textualmente:
[...] sem negar a força expansiva de uma significativa gama de decisões do Supremo Tribunal Federal, é de ser mantida a sua jurisprudência, segundo a qual, em princípio, a reclamação somente é admitida quando ajuizada por quem tenha sido parte na relação processual em que foi proferida a decisão cuja eficácia se busca preservar. A legitimação ativa mais ampla somente será cabível nas hipóteses expressamente previstas na Constituição ou em lei ou de atribuição de efeitos vinculantes erga omnes - notadamente contra atos ofensivos a decisões tomadas em ações de controle concentrado de constitucionalidade e a súmulas vinculantes, em que se admite legitimação ativa mais ampla (CF, art. 102, § 2º, e art. 103-A, caput e § 3º; Lei 9.882/99, art. 13, e Lei 11.419/06, art. 7º). Por imposição do sistema e para dar sentido prático ao caráter expansivo das decisões sobre a constitucionalidade das normas tomadas pelo STF no âmbito do controle incidental, há de se considerar também essas decisões suscetíveis de controle por reclamação, quando ajuizada por entidade ou autoridade legitimada para a propositura de ação de controle concentrado (CF, art. 103).
Assim, analisando o caso concreto, o Ministro Teori Zavascki considerou que, embora, na origem,[75] o que se tinha fosse uma simples decisão do Pleno do Supremo desrespeitada em caso concreto diverso, a aprovação superveniente da Súmula Vinculante 26 seria um fato novo (a teor do artigo 462 do CPC) que permitira o conhecimento da reclamação e o seu julgamento de procedência. Ou seja, rejeitou o fundamento proposto pelo Ministro Gilmar Mendes (mutação constitucional do artigo 52, X), mas conheceu a reclamação e julgou procedente o pedido nela deduzido com base em outro fundamento.[76] O fundamento apresentado pelo Ministro Teori foi acompanhado, na sequência, pelos Ministros Luís Roberto Barroso, Rosa Weber, Celso de Mello.
Com isso, a reclamação foi conhecida e recebeu julgamento de procedência por maioria (6 x 4).[77] Contudo, dentre os seis Ministros que compuseram a maioria, quatro aderiram ao fundamento de conhecimento da reclamação por contrariedade à Súmula Vinculante 26, capitaneado pelo Ministro Teori Zavascki. Assim, em termos de formação de precedente (ratio decidendi, motivos determinantes),[78] foi rejeitada pelo STF a possibilidade de ajuizamento de reclamação para afirmar decisão do Pleno da Corte adotada no âmbito do controle concreto de constitucionalidade.
Ainda nesse sentido, tem-se precedente anterior à conclusão do julgamento da Rcl 4335, a saber, a Rcl 10793,[79] na qual, embora se tenha afirmado que as decisões proferidas pelo Plenário do Supremo Tribunal Federal quando do julgamento de recursos extraordinários com repercussão geral vinculam os demais órgãos do Poder Judiciário na solução, por estes, de outros feitos sobre idêntica controvérsia (o que apenas corrobora a proposta deste trabalho, no sentido da identificação de uma eficácia vinculante implícita diferenciada da explícita), não se conheceu da reclamação, sob o argumento de que não cabe o acesso à Corte per saltum.
Feita essa breve incursão à jurisprudência do Supremo acerca da reclamação e das cargas eficaciais no controle de constitucionalidade, o efeito vinculante pode ser adjetivado como aquele predicado da decisão em controle abstrato que permite que as pessoas abrangidas pela eficácia erga omnes (ou seja, pelo dispositivo da decisão)[80] acessem, de forma direta, o STF, mediante reclamação, impugnando decisão judicial ou administrativa.
O mesmo vale, mudando o que deve ser mudado (uma vez que aqui não se tem mais decisão em controle abstrato), para as súmulas vinculantes (artigo 103-A, caput e § 3º, da CRFB). A diferença é que não se vai valer em efeito vinculante do dispositivo ou da fundamentação, mas da regra enunciada na súmula.
Do conceito (que, logo adiante, será qualificado), é importante extrair as ideias de vinculação à Administração Pública e a possibilidade de ajuizamento de reclamação. Estes são, salvo melhor juízo, os dados que permitem extremar o efeito vinculante da eficácia erga omnes. A propósito, anota-se que, historicamente, o Supremo jamais admitiu reclamação calcada apenas em eficácia erga omnes (a afirmação diz respeito ao período histórico em que esta era única carga eficacial da ação direta de inconstitucionalidade – ADI – expressamente positivada). Isto a Corte afirmou, por exemplo, por ocasião da Rcl 447,[81] entendimento que somente veio a ser revisto após a positivação infraconstitucional do efeito vinculante para a ação direta de inconstitucionalidade,[82] no artigo 28, parágrafo único, da Lei 9.868/1998.[83]
Esses dados (vinculação à Administração Pública e cabimento de reclamação) é que são, ainda, reputados como tecnicamente fundamentais para a diferenciação que se pretende fazer. Trata-se de predicados da eficácia vinculante explícita. Esta (a eficácia vinculante explícita) está positivada de forma expressa na Constituição (arts. 102, § 2º,[84] na redação dada pela EC 45/2004, e 103-A, caput e § 3º).[85] Seu diferencial em relação à eficácia erga omnes, não é demais reiterar, é a possibilidade de ajuizamento direto, pelo prejudicado, de reclamação ao STF (com a ressalva de que, no contexto do controle abstrato, apenas têm legitimidade para a reclamação as pessoas também abrangidas pelo dispositivo da decisão e, portanto, pela eficácia erga omnes).
Contudo, as decisões do Pleno do Supremo em controle concreto (e aquelas adotadas em controle abstrato, para a consideração da constitucionalidade de diplomas normativos não abrangidos pelo dispositivo da decisão) têm, inegavelmente, eficácia vinculante implícita. Por esta, entende-se a vinculação dos demais órgãos do Poder Judiciário às decisões do Supremo.[86]
Aqui é posta em evidência a extensão subjetiva da diferenciação:[87] a eficácia vinculante explícita atinge os integrantes do Poder Judiciário e a Administração Pública; a eficácia vinculante implícita, apenas o Judiciário.
Embora a eficácia vinculante implícita não esteja expressa na Constituição, ela é (com o perdão da redundância) uma decorrência implícita da ordem constitucional, além de estar, inegavelmente, positivada no plano infraconstitucional.
Com efeito, seria absolutamente carente de amparo lógico um sistema que admitisse que juízos ou tribunais inferiores contrariassem aquilo que foi decidido pela Corte com competência para dar a última palavra em matéria constitucional.[88] Daí afirmar-se a previsão implícita de eficácia vinculante interna às decisões do Pleno do Supremo.
No plano infraconstitucional, a eficácia vinculante está expressamente positivada no artigo 481, parágrafo único, do CPC,[89] sendo ainda decorrência de interpretação lógica dos artigos 518, § 1º,[90] 557, caput e § 1º-A,[91] e 543-B, §§ 2º e 3º,[92] do mesmo Código.
Convém, aqui, que a análise se detenha um pouco sobre o primeiro dos dispositivos mencionados (o artigo 481, parágrafo único, do CPC, que é, como se sabe, incorporação legislativa de entendimento jurisprudencial do STF cujo objetivo inicial foi o de racionalizar a aplicação da cláusula de reserva de plenário contida no artigo 97 da Constituição).[93] Seria de pouca significação lógica que a regra em questão consagrasse apenas uma faculdade dos órgãos fracionários integrantes dos tribunais, da seguinte forma: se estes quisessem reconhecer inconstitucionalidade já pronunciada pelo Pleno do Supremo em controle concreto, não necessitariam instaurar incidente de declaração de inconstitucionalidade; se, contudo, quisessem reconhecer que a norma já pronunciada inconstitucional pelo Supremo fosse compatível com a Constituição, assim poderiam fazer.
A falta de coerência da proposição apresentada no parágrafo anterior é gritante. Dessa forma, a única interpretação constitucionalmente viável ao dispositivo em questão é aquela que indica que, uma vez afirmada, incidentalmente, pelo Pleno do Supremo, a inconstitucionalidade de determinada lei, a esta decisão estão vinculados os demais tribunais. O mesmo vale, por simples questão de coerência lógica, se a decisão da maioria absoluta do Pleno do STF for pelo reconhecimento da constitucionalidade de determinada previsão legal.[94]
Acrescenta-se que não somente os tribunais, mas, igualmente, os juízes de 1º grau devem obediência ao entendimento do Pleno do STF.[95] Ou que coerência haveria em supor que o juiz de 1º grau poderia contrariar a decisão do guardião da Constituição para que o órgão fracionário do tribunal local, mediante recurso da parte prejudicada, fosse obrigado a reformar a decisão? Logo, por mera implicação lógica, fica claro que também o juiz de 1º grau deve obediência à decisão do Pleno do Supremo adotada em controle concreto.
A eficácia vinculante implícita, portanto, volta-se, diretamente, apenas aos demais integrantes do Poder Judiciário,[96] que devem obediência ao quanto decidido pelo Pleno do Supremo em matéria constitucional (e, portanto, apenas indiretamente à Administração Pública). Sua diferença em relação à eficácia vinculante explícita (ou efeito vinculante), esta expressamente positivado no texto constitucional, está em que aquela (a implícita) não permite o acesso direto ao Supremo mediante reclamação. Por isso, não sujeita de forma direta a Administração Pública. Mas, obviamente, a Administração Pública está indiretamente submetida às decisões do Supremo não dotadas de eficácia vinculante explícita, uma vez que, senão em reclamação, em qualquer ação outro órgão do Poder Judiciário está obrigado, pela própria ordem constitucional, a afirmar o mesmo que o Supremo. Por isso, é totalmente conveniente que a Administração, independentemente do grau da eficácia vinculante da decisão do Supremo (se explícita ou implícita), tome todas as providências necessárias para ajustar sua conduta à moldura constitucionalmente definida pela Corte.
Essa linha de argumentação está amparada nos ensinamentos de Luiz Guilherme Marinoni acerca da eficácia vinculante:
A extensão da eficácia vinculante aos fundamentos, e não ao dispositivo, revela claramente a intenção de dar eficácia obrigatória aos precedentes. De outra parte, não há por que falar em precedente quando não se outorga valor aos seus fundamentos. Assim, a importância da eficácia obrigatória dos precedentes, no direito contemporâneo, sustenta a eficácia vinculante dos fundamentos.
Daí a proximidade entre os institutos da eficácia vinculante dos fundamentos e do stare decisis. Em verdade, o que afasta o instituto da eficácia vinculante dos fundamentos – como posto na Alemanha – do stare decisis não é propriamente sua razão de ser, mas a sua extensão subjetiva.
O stare decisis se refere ao poder dos juízes, ao passo que a eficácia vinculante dos fundamentos atinge, na Alemanha, todos os órgãos do Poder Público. Note-se, entretanto, que a extensão subjetiva da eficácia vinculante constitui opção técnica, ainda que baseada em valores de Estado. Nada impede que esta eficácia seja estendida ou limitada. Lembre-se que na Alemanha e na Espanha a eficácia vinculante atinge todos os poderes públicos, mas no Brasil apenas os órgãos judiciários e as autoridades administrativas. Ademais, embora no Brasil a eficácia vinculante não atinja o Supremo Tribunal Federal em virtude de norma constitucional, na Espanha há norma expressa – art. 13 da Lei Orgânica do Tribunal Constitucional – que diz que, quando uma sala do tribunal constitucional considerar necessário se afastar, "em qualquer ponto, da doutrina constitucional precedente firmada pelo tribunal, a questão será submetida à decisão do Pleno."
Também nada obsta que se restrinja a eficácia vinculante apenas ao Poder Judiciário, quando este instituto assume fisionomia praticamente igual à do stare decisis. Aliás, nesta dimensão é possível pensar, por exemplo, na eficácia vinculante dos fundamentos das decisões do Superior Tribunal de Justiça em relação aos órgãos judiciários das justiças federal e estadual.[97]
Em outras palavras, trata-se da necessidade, implícita na ordem constitucional, de considerar-se a regra do stare decisis no âmbito do controle difuso de constitucionalidade. Assim, à ideia de eficácia vinculante dos fundamentos, limitada ao Poder Judiciário, tratada por Luiz Guilherme Marinoni no trecho transcrito, este trabalho deu o adjetivo de interna.
À tradicional objeção de que, em processos individuais, os fundamentos da decisão não transitam em julgado, facilmente contrapõe-se o argumento de que stare decisis e coisa julgada são institutos distintos, e que servem a finalidades diferentes.[98] Aliás, perceba-se que a chamada coisa julgada erga omnes (cuja finalidade é exatamente extirpar a norma declarada inconstitucional da ordem jurídica) continua sendo característica exclusiva do controle abstrato.
Em conclusão, reconhecendo o STF determinada inconstitucionalidade no controle concreto, a lei não será retirada da ordem jurídica (não há, portanto, eficácia erga omnes) e não haverá possibilidade de que os prejudicados por decisões judiciais ou administrativas em sentido contrário ajuízem reclamação (efeito vinculante ou eficácia vinculante explícita); contudo, todos os demais juízos e tribunais são obrigados a observar o que decidiu o guardião da Constituição (eficácia vinculante implícita), seja por uma questão de coerência do sistema, seja, quando menos, em razão do que determina o artigo 481, parágrafo único, do CPC. O mesmo vale para leis diferentes daquela que tenha sua inconstitucionalidade reconhecida em controle abstrato, mas que apresentem a igual situação de inconstitucionalidade.
Utilizando-se de ideias desenvolvidas no âmbito dos Estados Unidos, a eficácia vinculante implícita determina, nas hipóteses consideradas no parágrafo anterior, que se tenha uma dead law, que, contudo, permanece on the books.[99]
E onde entraria o artigo 52, X, da Constituição? A atuação do Senado (ainda que mediante função legislativa atípica, como já visto, uma vez que exercida de forma exclusiva por aquela casa, sem o concurso da Câmara dos Deputados) serve exatamente para extirpar a norma da ordem jurídica. Ou seja, quando a decisão do STF é adotada no controle concreto, a suspensão, pelo Senado, faz as vezes da eficácia erga omnes do controle abstrato: retira a lei – que já estava "morta" para o Poder Judiciário, em razão do entendimento externado pelo guardião da Constituição – "dos livros"; retira-a da ordem jurídica.
Reitera-se: o artigo 52, X, continua tendo aplicação: diz respeito exclusivamente à extirpação da norma da ordem jurídica. Contudo, mesmo que a providência não seja adotada pelo Senado, ficará o Poder Judiciário vinculado à decisão do Pleno do Supremo, ainda que esta seja adotada em controle concreto.
O controle da obediência dos tribunais e juízos inferiores à orientação do Supremo, contudo, será feito pela via recursal própria, ascendendo-se à corte, em regra, mediante o recurso extraordinário (e não mediante o ajuizamento direto de reclamação).
Esse é o delineamento do que se procurou chamar, neste trabalho, de eficácia vinculante implícita.
Assim, não se faz necessário defender que tenha havido "mutação constitucional" em torno do artigo 52, X, da Constituição. Basta que se leve em conta que ele tem uma função que vai além da "mera publicidade" da decisão do Supremo (como já mencionado, a definitiva extirpação da norma da ordem jurídica). Contudo, enquanto não adotada a providência pelo Senado, fica o Poder Judiciário, ainda assim, diretamente vinculado (e a Administração Pública, indiretamente) ao que decidiu o Supremo no controle concreto. A única ressalva, reitera-se, é que o acesso ao STF não será possível mediante reclamação (Rcl 3014 e Rcl 10793).
Reconhece-se que a supressão da possibilidade de reclamação, na espécie (assim como a restrição operada em relação à parte dispositiva da decisão no controle abstrato), compromete a efetividade do instituto e da própria garantia da autoridade das decisões do Supremo.
Contudo, trata-se de mera consequência do atual delineamento jurisprudencial que o STF deu à reclamação e ao efeito vinculante (aqui designado eficácia vinculante explícita), atrelando estas à possibilidade de afirmação da autoridade da decisão apenas àquelas pessoas abrangidas pelo dispositivo da decisão em ação direta.
O que se procurou demonstrar é que, a despeito desse entendimento (que aqui foi, reforça-se, adotado como premissa teórica, muito embora tenha sido criticado também em teoria), a Constituição – implicitamente – e a legislação infraconstitucional (notadamente o artigo 481, parágrafo único, do CPC), por uma questão de coerência, consagram outra espécie de eficácia vinculante, a implícita.
Em suma, a Constituição reclama o cultivo de verdadeira cultura judicial de respeito aos precedentes do STF, ainda que, especialmente no que concerne a suas decisões em controle concreto, a reclamação não figure, segundo o mesmo Tribunal, como instrumento de sujeição direta dos magistrados e da Administração Pública.