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A reforma política do Supremo Tribunal Federal

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Agenda 28/04/2015 às 14:28

Os limites à reforma política impostos pelo STF

Na seção anterior repassamos decisões do Supremo Tribunal Federal que configuraram um novo regime jurídico para três institutos fundamentais do sistema político: a cláusula de barreira, a fidelidade partidária e as coligações eleitorais.

Com essas decisões, o tribunal delimitou o alcance da reforma política na vigência da atual ordem constitucional. Qualquer proposta de aperfeiçoamento do sistema político deverá observar essas três restrições:

- é inviável, a princípio, o estabelecimento de cláusula de barreira;

- o mandatário que se eleger por um partido, em geral, a ele fica vinculado;

- as coligações partidárias não se sobrepõem, do ponto de vista da representação, aos partidos que as integram, exceto relativamente ao preenchimento de vagas que se abrirem no curso da legislatura.

A proibição da cláusula de barreira retira do legislador uma ferramenta bastante eficiente contra a fragmentação partidária, a instabilidade política do governo e deterioração do processo decisório.

Como já indicamos, jurisprudência do Supremo nessa seara aparentemente promove a proliferação de partidos, o que tende a aumentar com o financiamento público que já está virtualmente em vigência com o aumento exponencial das dotações orçamentárias para o Fundo Partidário no Orçamento de 2015. Fenômeno semelhante existe com relação aos sindicatos. O acesso ao chamado “imposto sindical”, por si só, é uma grande incentivador da criação de novos sindicatos. O problema é que, provavelmente, não existe correlação perfeita entre número de sindicatos e qualidade da representação. Ao contrário, a fragmentação da representação é combatida em países como Suécia e Alemanha como grandes ameaças à classe trabalhadora.

A criação de sindicatos só não é maior por causa do obstáculo da unicidade: a Constituição só admite um sindicato de cada categoria profissional ou econômica, por município. No caso dos partidos, porém, não existe trava.

O regime jurídico da fidelidade partidária consolidado na jurisprudência do STF, por outro lado, reforça a posição do partido. Apesar disso, ela não se coaduna, do ponto de vista lógico, com o regime jurídico que a corte estabeleceu para as coligações.

Essa incongruência agrava o déficit representatividade ou da accountability dos mandatários, que, como já referimos, é o principal problema que as propostas de reforma política procuram solucionar.

É, de certa forma, exdrúxula, a punição ao mandatário que trocar de partido, ainda que dentro da mesma coligação em que se elegeu, e não punir o partido que, no curso da legislatura, passa a atuar contra as bases programáticas da coligação.


Quem deve fazer a reforma política?

É paradoxal que se admita que a reforma do sistema político com o objetivo de aperfeiçoar sua representatividade seja protagonizada por um órgão não representativo, como é o caso do Poder Judiciário.

Ainda que o Poder Legislativo da União seja o mais evidente output do censurado sistema político brasileiro, por ser o órgão mais democrático do país, é dele que deve emanar a reforma política.

A objeção de que os beneficiários da representação distorcida não atentarão contra o sistema político em que se elegeram é elidida por diversas alterações legislativas promovidas pelo Legislador na última década e que configuram autêntica reforma política.

Uma legislação que exemplifica o comprometimento do legislador com o aperfeiçoamento da reforma política foi a aprovação da Lei da Ficha Limpa (Lei Complementar nº 135, de 2010), provavelmente a mudança mais substancial no sistema político desde 1988.

A proposta de uma constituinte exclusiva para a reforma política, para contornar o Congresso Nacional, a meu ver, é inviável, porque distorce o instituto da constituinte:

A teoria constitucional não conseguiria explicar uma constituinte parcial. A ideia de poder constituinte é a de um poder soberano, um poder que não deve seu fundamento de legitimidade a nenhuma outra força que não a si própria e  a soberania popular que o impulsionou. De modo que ninguém pode convocar um poder constituinte e estabelecer previamente qual é a agenda desse poder constituinte. Poder constituinte não tem agenda prefixada (ESTADO DE S. PAULO, 2013).

Parece ser um pressuposto básico da reforma política que ela deve ser conduzida pelo Poder Legislativo, que é o órgão constitucional, dentre todos, o que mais legitimamente representa o povo, o autêntico titular do poder de realizar a reforma política.

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É melhor uma reforma política radical ou gradual?

Estudos consistentes apontam para vantagens de “aperfeiçoamentos incrementais” no sistema político em relação a “reviravoltas revolucionárias”[12].

A opção de reforma política incremental, que aperfeiçoa em vez de desmantelar o sistema vigente, além de ser logicamente a via mais segura, afasta o paradoxo de se confiar ao Poder Legislativo, arregimentado por regras que não asseguram uma taxa satisfatória de representatividade, revisar essas regras.

Em vez de se submeter, de uma só vez, todo o sistema a um legislador pouco confiável, a reforma política seria realizada de forma gradual, por um Poder Legislativo, cada vez mais representativo.

A solução gradual foi adotada pela Grã-Bretanha, que desde 1832, não alterou drasticamente seu sistema distrital (first past the post - FPP), que impõe o critério majoritário para eleição de deputados.

Em 1867, adotou-se o chamado voto limitado (limited vote) para 13 distritos de três cadeiras, em que cada eleitor tinha direito a dois votos, e um de quatro cadeiras, em que cada eleitor tinha direito a três votos. A meta dessa reforma era permitir que minorias pudessem, com um terço dos votos, conquistar uma cadeira para o parlamento.

Contudo, em outra reforma, em 1884-5, o voto limitado foi abolido. Com isso, a regra, que dura até os dias de hoje, é uma cadeira por distrito, que é o sistema distrital em sua forma mais pura[13]. (FARREL, 2011, p. 27 e ss.).

Diversas tentativas de reforma para alteração do sistema distrital fracassaram (e.g., em 1910, 1916-17, 1931). Em 2001, o eleitorado decidiu em referendo, por 67.9% a 32.1%, manter o first past the post.

Mesmo assim, a Grã-Bretanha vem implantando – com o objetivo de testá-los e de quebrar o monopólio da representação majoritária – sistemas proporcionais para eleições para o Parlamento Europeu e para assembleias na Escócia, no País de Gales e na Irlanda do Norte[14].

Um caso exemplar de reforma política mais acentuada foi observado na Alemanha, no pós-Segunda Guerra. O sistema proporcional implantado pela Constituição de Weimar, de 1919, foi combinado com sistema majoritário, para formar o chamado voto distrital misto.

Com as alterações na legislação em 1953 e em 1957 configuraram o sistema eleitoral que vigora desde então, em que metade dos deputados se elege em distritos uninominais, por critério majoritário (maioria simples) e voto noto nominal, e metade mediante listas partidárias fechadas e preordenadas, uma para cada estado.

O compromisso entre o sistema proporcional, que já havia sido experimentado, ainda que no ambiente tumultuado do entreguerras, e o sistema majoritário, que configurou a reforma política alemã, não pode ser classificado como “reviravolta revolucionária”.

Em primeiro lugar, porque o sistema proporcional então vigente não foi completamente sobreposto e, em segundo lugar, porque desde aquela reforma o sistema político alemão tem-se mantido sem sobressaltos.

Situação diferente se observa na Rússia. O sistema político russo tem sido reformado de forma não incremental, desde a derrocada da antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas (URSS).

Em 2005 A Rússia substituiu um sistema misto, por um sistema de representação proporcional de listas fechadas, com cláusula de barreira para acesso à Duma, a Câmara baixa russa, de 7%.

Ano passado, o país voltou atrás, e reintroduziu o sistema misto: metade das 450 cadeiras da Duma serão preenchidas pelo sistema majoritário, em distritos uninominais (одномандатные выборы).

Essa reviravolta, de modo geral, foi interpretada como sinal de fragilidade do sistema político russo. Acusa-se o Presidente Vladimir Putin de manipular as instituições eleitorais para reforçar sua influência política[15].

A manutenção do sistema proporcional de lista aberta no Brasil, justifica-se por sua longa duração. Sua base normativa original foi o Código Eleitoral, que introduziu o sufrágio universal (adiante de diversas democracias do mundo), o voto obrigatório, um sistema de apuração rigoroso, representação proporcional e a administração do processo eleitoral por um órgão Judiciário[16].

Os adeptos de uma reforma radical do sistema político brasileiro muitas vezes não tomam em consideração o grande esforço e a luta histórica para sua implantação. O substrato desse sistema talvez tenha sido o maior legado da Revolução de 30.

Os únicos casos recentes de reforma política drástica em um país do porte do Brasil talvez sejam os implementados na Rússia, que, por seus resultados, talvez não sejam uma boa referência.

A solidez da democracia brasileira deve muito à longevidade de seu sistema eleitoral, que sobreviveu, praticamente intacto, a dois longos períodos ditatoriais (1937-1945 e 1964-1985).

Aparentemente, o grande desafio do legislador é produzir uma reforma política que resguarde as bases desse sistema: a representação proporcional, ainda que flexibilizada e a administração judicial do processo eleitoral.

Na próxima seção, rascunho as linhas gerais de uma reforma política que pode aperfeiçoar, de forma segura, a democracia brasileira.


 Esboço de reforma eleitoral

A reforma política de que o Brasil precisa deve seguir a lógica incremental, se tomarmos como pressuposto que a longevidade do sistema político é um bem em si mesmo, especialmente porque garante segurança jurídica no aspecto mais fundamental de uma democracia, que é a mediação institucional entre os titulares do poder e os detentores do poder.

Dentro da lógica incremental, em vez de se sobrepor completamente o sistema proporcional pelo sistema distrital, a reforma política poderia simplesmente reduzir o tamanho dos distritos eleitorais (constituencies).

Atualmente, no caso das eleições para a Câmara dos Deputados, os distritos eleitorais (27 ao todo) coincidem com os Estados e o Distrito Federal. A magnitude dos distritos, apesar de favorecer a representação de minorias, geralmente dispersas no território, realmente dificulta a vinculação entre representantes e representados. Em geral, os deputados que se elegem recebem votos em diversas cidades e dificilmente representarão, adequadamente, todas elas. Não fosse isso, o alto custo das campanhas, que devem ser projetadas para todo o Estado ou para todo o Distrito Federal para maximização das chances, é um mal em si mesmo.

A solução radical que se aponta para o problema é, em geral, a sobreposição pura e simples do sistema proporcional pelo distrital, com a distribuição de uma cadeira por distrito.

A quantidade de partidos existente no Brasil, porém, é um obstáculo para essa proposta. Nos países que operam com o sistema distrital há, tipicamente, poucos partidos que, de fato, participam do jogo político. No Grã-Bretanha e nos Estados Unidos, há três e dois partidos efetivos, respectivamente.

A redução do tamanho dos distritos eleitorais, sem redução da quantidade de partidos efetivos, em vez de simplificar, pode tornar o sistema político brasileiro ainda mais complexo.

A solução intermediária e incremental seria dividir os Estados e o Distrito Federal em um número limitado de distritos (12 parece ser um teto adequado e compatível com a representação proporcional), que coincidissem, o máximo possível, com as regionalizações já existentes.

De acordo com classificação do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), o Estado de Minas Gerais, por exemplo, é dividido em doze mesorregiões[17]. Cada uma delas poderia corresponder a um distrito.

Em vez de representação majoritária nesses distritos, poder-se-ia manter a representação proporcional com lista aberta, com o coeficiente eleitoral e a distribuição de cadeiras restrita a cada distrito. A adoção de cláusula de barreira poderia reduzir o problema de emaranhado de partidos.

E a regulamentação mais racional das coligações, que lhes impusesse coerência vertical de representação e vigência coincidente com os mandatos conquistados, poderia compensar as restrições aos partidos menores.

A racionalização das coligações poderia sanar as contradições do regime jurídico da fidelidade partidária estabelecido pelo Supremo Tribunal Federal, indicadas acima.

Diga-se de passagem que as três objeções que o STF prevê em sua jurisprudência, sem nenhum respaldo legal e que acabam por esvaziar o princípio da fidelidade partidária, têm que ser revogadas pela Reforma Política.

Dessa forma, independentemente do motivo, o agente político que se desfiliar do partido em que se elegeu, perde o mandato e ponto. Com isso, evitam-se morosas disputas judiciais que podem durar mais que o mandato em questão.

Outra medida que poderia aperfeiçoar o sistema político brasileiro, em seu aspecto eleitoral, seria o aprofundamento da institucionalização da Justiça Eleitoral, que hoje funciona com juízes ad hoc.

Nesse sentido, poder-se-ia criar carreiras específicas de juízes eleitorais, que exerceriam o controle administrativo e jurisdicional do processo eleitoral com exclusividade, ressalvada a competência constitucional do Supremo Tribunal Federal.

Em suma, nossa proposta de reforma política, incluiria os seguintes pontos:

- manutenção do sistema de representação proporcional;

- divisão dos Estados e do Distrito Federal em até 12 distritos, que poderiam, por exemplo, coincidir com as mesorregiões utilizadas pelo IBGE;

- verticalização e perenização (em relação aos mandatos conquistados) das coligações;

- revogação das exceções admitidas pelo STF à regra da perda de mandato por desfiliação partidária;

- especialização da Justiça Eleitoral, no sentido de que seja integrada, exclusivamente, por juízes eleitorais, aprovados em concursos específicos.


Conclusão

Procuramos demonstrar, na primeira parte desse artigo, que a interferência do STF no sistema político, especialmente em seu aspecto eleitoral, mostrou-se, em geral, contraproducente.

Na segunda parte, procuramos apresentar um esboço de reforma política que possa aprimorar a taxa de representatividade do Poder Legislativo no Brasil e defendemos que esse aperfeiçoamento siga à lógica incremental, em vez de “reviravolta revolucionária”.

Para concluir a linha de raciocínio, gostaria de salientar que a não realização de uma reforma política drástica pelo Legislador é uma opção legitimamente democrática, que, de forma alguma, autoriza a que essa reforma seja judicializada.

Impor a democratização do sistema político pela via autoritária é o projeto comum – declarado – de inúmeras ditaduras ao longo do tempo e ao redor do mundo, inclusive invocado para justificar as experiências brasileiras do gênero.

O Poder Judiciário não pode ser arvorar da missão de democratizar o sistema político e ainda mais às custas dos órgãos democráticos estabelecidos – mal ou bem – pela Constituição.

O expansionismo da jurisprudência do STF em matéria eleitoral, em vez de configurar uma reforma política adequada, deve ser um dos problemas a serem solucionados por uma reforma política adequada.

Assim, temas que parecem típicos de uma reforma judicial, hoje são afetos  à reforma política, como a proibição de liminares monocráticas em controle de constitucionalidade e em outros processos de índole política, a intensificação da força vinculante de precedentes eleitorais e a consolidação do Tribunal Superior Eleitoral, com juízes de carreira, como corte suprema em matéria eleitoral[18].

Sobre o autor
Edvaldo Fernandes da Silva

Doutor em Sociologia pela Universidade de Brasília (UnB), mestre em Ciência Política pelo Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, da Universidade Cândido Mendes (IUPERJ-UCAM), especialista em Direito Tributário pela Universidade Católica de Brasília (UCB), bacharel em Direito e em Comunicação Social-Jornalismo, pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG), professor de Direito Tributário em nível de graduação e pós-graduação no Centro Universitário de Brasília (UniCeub); e de Pós-Graduação em Ciência Política no Instituto Legislativo Brasileiro (ILB) e advogado do Senado Federal (de carreira).

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Edvaldo Fernandes. A reforma política do Supremo Tribunal Federal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 20, n. 4318, 28 abr. 2015. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/38518. Acesso em: 22 nov. 2024.

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