1. CONSIDERAÇÕES INICIAIS
As mudanças sociais ocorridas nas últimas décadas foram inúmeras. O Direito Civil, enquanto ramo do ordenamento jurídico incumbido de regulamentar as relações entre as pessoas e destas com seus negócios e bens, também foi sensivelmente afetado. Isso porque as relações familiares tuteladas pelo Direito ganharam, hodiernamente, novas feições, novos atores e novas finalidades. Merecem relevo as inovações ocorridas no Direito das Famílias e, em particular, aquelas que se perpetraram quanto ao tema filiação e parentesco.
Com efeito, muitas problemáticas nessa seara se apresentam ao Direito de Família atual, ainda sem solução expressa por parte do legislativo, impondo-se, assim o recurso a fontes outras aptas a elucidá-las.
Nessa toada, traz-se a lume a intrincada questão que envolve a coexistência das paternidades biológica e afetiva / registral.
O caso, cada vez mais recorrente, pode estar presente na configuração das famílias recompostas[1] ou, ainda, quando se estiver diante de paternidade reconhecida por erro supervenientemente descoberto e questionado pelo pai biológico.
O presente artigo versará sobre esta última hipótese, sem descurar, contudo, de abordar alguns aspectos da multiparentalidade que se mostrem pressupostos a este estudo.
De fato, um homem pode se ver envolvido em situação que o induza a reconhecer filho como seu, pensando, efetivamente, que biologicamente fosse seu descendente. Passados os anos e vindo à tona o erro que ensejou o reconhecimento, pode, esse mesmo homem, portar-se de duas formas: ou rebela-se contra o ato errôneo do reconhecimento ou decide manter-se comportando como pai do reconhecido, a pretexto da construção de vínculo de paternidade socioafetiva.
A primeira das hipóteses comportamentais acima descrita não enseja maiores discussões e tem sua solução facilitada pelo que, expressamente, estatui o nosso Código Civil: “Art. 1.604 – Ninguém pode vindicar estado contrário ao que resulta do registro de nascimento, salvo provando-se erro ou falsidade do registro.” Neste caso, faculta-se-lhe manejar ação anulatória de reconhecimento de paternidade ou ação negatória de paternidade[2], se presente vínculo matrimonial com a mãe do filho registral. Nesta última hipótese, a ação intenta afastar, elidir, a presunção de paternidade estabelecida em relação ao marido como decorrência do matrimônio em face dos filhos da mulher casada[3], consoante leciona CARLOS ROBERTO GONÇALVES[4]: “Conhecida também como ação de contestação de paternidade, a ação negatória destina-se a excluir a presunção legal de paternidade. A legitimidade ativa é privativa do marido (CC, art. 1601).”
Todavia, maior complexidade envolve a manutenção do vínculo paternal reconhecido por erro, quando, paralelamente a este, sobrevém a intenção de o pai biológico também reconhecer o mesmo filho como seu. Afinal, de todo legítima se apresenta a possibilidade de se cogitar reconhecer filho sabido seu, descobrindo-se supervenientemente este fato até então oculto.
Independentemente da responsabilidade da genitora por eventual omissão dolosa da paternidade em relação ao genitor biológico, a problemática que justifica o presente estudo debruça-se sobre o seguinte questionamento: prestigia-se o vínculo pretérito, originalmente reconhecido, conquanto fundado em erro a pretexto da construção de uma paternidade afetiva? Ou se dá relevo ao liame biológico, impossibilitado de se constituir até então por desconhecimento da relação filial?
O presente artigo desenvolverá uma solução conciliatória, intermediária às duas proposições antes expostas, calcada na adoção excepcional da tese da multiparentalidade e, sobretudo, tendo em mira o melhor interesse de crianças e de adolescentes.
Isso porque se reputa que o sacrifício de qualquer dos liames (afetivo ou biológico) acarretaria prejuízo aos pais e, especialmente, ao filho. E por que privá-lo da possibilidade de ter dois pais no seu assento de nascimento? Vejamos as razões.
2. A CONSTRUÇÃO DA PATERNIDADE SOCIOAFETIVA
Inicialmente, traz-se à tona que, ao se excluir juridicamente aquele que, durante anos, foi a única referência paterna na vida de uma criança, está-se, inquestionavelmente, privando, ambos (pai e filho registrais) de toda uma história afetiva construída. E o Direito atual não mais pode “fechar os olhos” à questão do afeto.
Com efeito, trata-se de elemento, ao mesmo tempo, fundante e justificador de todas as entidades familiares, na forma em que estas são percebidas pelo Direito de Família contemporâneo. Tudo em consonância com a filosofia eudemonista, como sintetizam PABLO STOLZE e RODOLFO PAMPLONA[5]: “Enquanto base da sociedade, a família, hoje, tem a função de permitir, em uma visão filosófica-eudemonista, a cada um dos seus membros, a realização dos seus projetos de vida.” Nesse mesmo sentido, leciona MARIA BERENICE DIAS[6]:
A família e o casamento adquiriram um novo perfil, voltados muito mais a realizar os interesses afetivos e existenciais de seus integrantes. Essa é concepção eudemonista da família, que progride à medida que regride o seu aspecto instrumental.
De fato, não resta mais dúvida que o afeto foi resgatado do ostracismo em que se encontrava, para, hodiernamente, ocupar lugar de inconteste destaque no Direito de Família atual[7].
Entendendo a afetividade como postulado deste ramo do conhecimento jurídico, CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e por NELSON ROSENVALD[8] explicam a sua relevância nos termos seguintes: “É que, compreendida como entidade tendente a promover o desenvolvimento da personalidade de seus membros, traz a família consigo uma nova feição, agora fundada no afeto e na solidariedade.”
É que, como leciona ROLF MADALENO[9], “O afeto é a mola propulsora dos laços familiares e das relações interpessoais movidas pelo sentimento e pelo amor, para ao fim e ao cabo dar sentido e dignidade à existência humana.”
Desta forma, o elemento afetivo fomentou verdadeira revolução na maneira como se estuda e aplica o Direito de Família. Isso posto, passou a ser absolutamente inconcebível que a filiação e o parentesco se furtassem ao reconhecimento dos vínculos que tivessem nesse elemento sua origem.
E o ingresso do afeto, em especial, na seara do parentesco civil foi permitido pelo conceito jurídico indeterminado inserto na parte final da redação do art. 1593 do Código Civil, que assim estabelece: “Art. 1593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem” (realce nosso).
Ora, como vaticina PAULO LUIZ NETTO LOBO[10], “O afeto não é fruto da biologia. Os laços de afeto e de solidariedade derivam da convivência familiar e não do sangue.”
De maneira que, a par do natural, hoje já há outros protagonistas apontados como espécies de parentesco[11], dos quais se destaca o parentesco socioafetivo, senão vejamos o enunciado abaixo da III Jornada de Direito Civil do Conselho da Justiça Federal: “Enunciado 256 – Art. 1.593: A posse do estado de filho (parentalidade socioafetiva) constitui modalidade de parentesco civil.”
O parentesco socioafetivo “revela a constância social da relação entre pais e filhos, caracterizando uma paternidade que existe não pelo simples fato biológico ou por força de presunção legal, mais em decorrência de uma convivência afetiva[12]”
No caso em estudo, o primeiro reconhecimento de paternidade efetivamente realizado fundou-se em um “erro” e, assim sendo, a literalidade do Código Civil comina a possibilidade de sua anulação, segundo a inteligência do já citado art. 1604. Esta postura prestigiaria o genitor biológico, mas desconsideraria toda uma história de vida e de afeto constituída com o pai afetivo.
Atento a isso, o STJ tem perfilhado posição contraposta à do nosso código, ao analisar esse conflito entre paternidade biológica versus paternidade registral, quando a prática intitulada de “adoção à brasileira” é posta em xeque pelo pai socioafetivo / registral, senão vejamos:
RECONHECIMENTO DE FILIAÇÃO. AÇÃO DECLARATÓRIA DE NULIDADE. INEXISTÊNCIA DE RELAÇÃO SANGÜÍNEA ENTRE AS PARTES. IRRELEVÂNCIA DIANTE DO VÍNCULO SÓCIO-AFETIVO.
- Merece reforma o acórdão que, ao julgar embargos de declaração, impõe multa com amparo no art. 538, par. único, CPC se o recurso não apresenta caráter modificativo e se foi interposto com expressa finalidade de prequestionar. Inteligência da Súmula 98, STJ.
- O reconhecimento de paternidade é válido se reflete a existência duradoura do vínculo sócio-afetivo entre pais e filhos. A ausência de vínculo biológico é fato que por si só não revela a falsidade da declaração de vontade consubstanciada no ato do reconhecimento. A relação sócio-afetiva é fato que não pode ser, e não é, desconhecido pelo Direito. Inexistência de nulidade do assento lançado em registro civil.
- O STJ vem dando prioridade ao critério biológico para o reconhecimento da filiação naquelas circunstâncias em que há dissenso familiar, onde a relação sócio-afetiva desapareceu ou nunca existiu. Não se pode impor os deveres de cuidado, de carinho e de sustento a alguém que, não sendo o pai biológico, também não deseja ser pai sócio-afetivo. A contrario sensu, se o afeto persiste de forma que pais e filhos constroem uma relação de mútuo auxílio, respeito e amparo, é acertado desconsiderar o vínculo meramente sanguíneo, para reconhecer a existência de filiação jurídica.
Recurso conhecido e provido[13].
Também a esse respeito ensinam NELSON NERY JUNIOR e ROSA MARIA DE ANDRADE NERY[14]:
O melhor interesse da criança não é a manipulação, pela mãe, por exemplo de dados sobre a verdade biológica do filho para afastar da criança o pai que a criou e que com ela mantém vínculo de afetividade, apenas porque a mãe da criança já não tem para com o homem que registrou seu filho o mesmo relacionamento de marido e mulher que com ele mantinha, ao tempo da formalização, por reconhecimento regular da paternidade da criança.
Para o mesmo norte convergem os ensinamentos compilados no enunciado abaixo transcrito da V Jornada de Direito Civil: “Enunciado 520 – Art. 1.601: O conhecimento da ausência de vínculo biológico e a posse de estado de filho obstam a contestação da paternidade presumida.”
Pertinente a menção, aqui, à posse do estado de filho, pressuposto para o reconhecimento de efeitos pessoais e patrimoniais à filiação socioafetiva, como destaca o Conselho da Justiça Federal na edição do seguinte enunciado, quando da V Jornada de Direito Civil:
519 – Art. 1.593: O reconhecimento judicial do vínculo de parentesco em virtude de socioafetividade deve ocorrer a partir da relação entre pai(s) e filho(s), com base na posse do estado de filho, para que produza efeitos pessoais e patrimoniais.
A caracterização da posse desse estado passa pela demonstração da presença dos elementos nome, trato e fama, conforme esclarece a doutrina de MARIA BERENICE DIAS[15]: “(a) tractus – quando o filho é tratado como tal, criado, educado e apresentado como filho pelo pai e pela mãe; (b) nominatio – usa o nome da família e assim se apresenta e (c) reputatio – é conhecido pela opinião pública como pertencente à família de seus pais.”
Ressalta-se que, uma vez reconhecida a boa-fé na conduta do pai socioafetivo (o qual antes houvera reconhecido a paternidade de filho que creditava ser seu), não se afigura, sequer, lícita a punição criminal desta pessoa. Afastam-se os efeitos penalizadores decorrentes do reconhecimento de prática conhecida como “adoção à brasileira[16]”. Nesse sentido, mister esclarecer que o próprio Código Penal, para a punição pelos delitos de falsidade ideológica (art. 299) ou crime de parto suposto (art. 242), exige a presença do elemento subjetivo dolo para que seja imputada ao agente as penas previstos nos tipos da mesma legislação. Outrossim, em prestígio à boa-fé, antevê-se hipótese de exclusão da pena por perdão judicial (parágrafo único, art. 242, Código Penal).
É assim que a nossa mais alta corte infraconstitucional tem prestigiado o vínculo socioafetivo, decidindo pela impossibilidade de sua desconstituição, não obstante fundado em adoção à brasileira[17].
Isso porque “A filiação socioafetiva (...) ainda que despida de ascendência genética, constitui uma relação de fato que deve ser reconhecida e amparada juridicamente. Isso porque a parentalidade que nasce de uma decisão espontânea, frise-se, arrimada em boa-fé, deve ter guarida no Direito de Família[18]”. Tudo em prestígio ao afeto, à boa-fé e à teoria da aparência, em primeira análise e, em último plano, em respeito à dignidade da pessoa humana daquele registrado.
Destarte, diante da configuração da posse do estado de filho socioafetivo, impossível se faz a desconstituição da paternidade mesmo não existindo vínculo biológico subjacente, de maneira que, é certa a proteção conferida pelo Direito pátrio a esse vínculo construído ao longo do tempo e que tem como elemento fundante o afeto.
A questão problematiza-se quando, paralelamente a esta paternidade fundada no afeto, sobrevém a descoberta de uma paternidade biológica.
3. O DIREITO À VERDADE BIOLÓGICA E O DIREITO DE ASSUMIR A CONDIÇÃO DE PAI
Preliminarmente, impõe-se proceder a um distinguishing. É que o entendimento firmado no STJ – no sentido de fazer prevalecer a verdade socioafetiva, ainda quando não encontre respaldo biológico –, tem sua ratio na proteção da criança / do adolescente registrado, evitando-se que o vínculo da sua paternidade fique à mercê da vontade dos seus pais, conforme se depreende da análise de elucidativo julgado abaixo transcrito:
FAMÍLIA. FILIAÇÃO. CIVIL E PROCESSO CIVIL. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE. VÍNCULO BIOLÓGICO. PATERNIDADE SOCIOAFETIVA. IDENTIDADE GENÉTICA. ANCESTRALIDADE. ARTIGOS ANALISADOS: ARTS. 326 DO CPC E ART. 1.593 DO CÓDIGO CIVIL.
1. Ação de investigação de paternidade ajuizada em 25.04.2002.
Recurso especial concluso ao Gabinete em 16/03/2012.
2. Discussão relativa à possibilidade do vínculo socioafetivo com o pai registrário impedir o reconhecimento da paternidade biológica.
3. Inexiste ofensa ao art. 535 do CPC, quando o tribunal de origem pronuncia-se de forma clara e precisa sobre a questão posta nos autos.
4. A maternidade/paternidade socioafetiva tem seu reconhecimento jurídico decorrente da relação jurídica de afeto, marcadamente nos casos em que, sem nenhum vínculo biológico, os pais criam uma criança por escolha própria, destinando-lhe todo o amor, ternura e cuidados inerentes à relação pai-filho.
5. A prevalência da paternidade/maternidade socioafetiva frente à biológica tem como principal fundamento o interesse do próprio menor, ou seja, visa garantir direitos aos filhos face às pretensões negatórias de paternidade, quando é inequívoco (i) o conhecimento da verdade biológica pelos pais que assim o declararam no registro de nascimento e (ii) a existência de uma relação de afeto, cuidado, assistência moral, patrimonial e respeito, construída ao longo dos anos.
6. Se é o próprio filho quem busca o reconhecimento do vínculo biológico com outrem, porque durante toda a sua vida foi induzido a acreditar em uma verdade que lhe foi imposta por aqueles que o registraram, não é razoável que se lhe imponha a prevalência da paternidade socioafetiva, a fim de impedir sua pretensão.
7. O reconhecimento do estado de filiação constitui direito personalíssimo, indisponível e imprescritível, que pode ser exercitado, portanto, sem qualquer restrição, em face dos pais ou seus herdeiros.
8. Ainda que haja a consequência patrimonial advinda do reconhecimento do vínculo jurídico de parentesco, ela não pode ser invocada como argumento para negar o direito do recorrido à sua ancestralidade. Afinal, todo o embasamento relativo à possibilidade de investigação da paternidade, na hipótese, está no valor supremo da dignidade da pessoa humana e no direito do recorrido à sua identidade genética.
9. Recurso especial desprovido.
(REsp 1401719/MG, Rel. Ministra NANCY ANDRIGHI, TERCEIRA TURMA, julgado em 08/10/2013, DJe 15/10/2013)
(realce nosso)
Com efeito, se é o próprio filho quem busca questionar o reconhecimento da sua paternidade biológica não há de lhe ser negada essa pretensão, sobretudo quando se destaca que, segundo o Estatuto da Criança e do Adolescente: “Art. 27 – O reconhecimento do estado de filiação é personalíssimo, indisponível e imprescritível...”.
A outro giro, impedindo-se que aquele homem que soube tardiamente que era pai biológico de alguém possa reconhecer esta pessoa como filha, está-se, da mesma forma, cometendo injustiça em igual medida, tanto para o pai quanto para o filho, sobretudo porque os priva do direito à identidade, quando abordado na perspectiva genética. E o direito à identidade, inquestionavelmente, é um direito da personalidade assegurado na Parte Geral do nosso Código Civil (arts. 11 a 21). Nesse norte, entende o STJ que: “O conhecimento da filiação biológica é direito da personalidade, indisponível, imprescritível e afeto ao princípio constitucional da dignidade da pessoa humana[19].”
A partir do exposto, numa tentativa de elucidar a questão posta, poder-se-ia muito bem defender que a solução para o caso residiria em se facultar ao interessado (pai ou filho biológico) o manejo da ação investigatória de ascendência genética. Registra-se, no entanto, que esta ação não repercute no âmbito dos direitos de família e de sucessão do investigante e do investigado, não estabelecendo direitos, verbi gratia, a alimentos, à herança entre as partes dessa espécie de processo. Nesse norte, esclarece ROLF MADALENO[20]:
Existem, portanto, duas espécies de demandas de investigação de paternidade ou de maternidade; onde uma objetiva a instituição do vínculo jurídico da paternidade ou da maternidade com a filiação, cujo provimento jurídico acarreta todos os efeitos legais, com o deferimento de direitos sucessórios, alimentos, se for o caso, e outras implicações pertinentes à personalidade, como o direito ao uso do nome da família de origem e o estabelecimento de novos vínculos parentais, ou seja, o direito à vida familiar; e existe o direito ao reconhecimento da ascendência genética com matiz constitucional. Esse é o direito à vida íntima, que não se confunde com o direito à vida familiar, porque esse filho socioafetivo já tem família, nome, vínculos, alimentos e herança dos seus pais que sabe serem socioafetivos. Entretanto, pode querer conhecer seus ascendentes genéticos, apenas reconhecer sua ascendência familiar.
Pertinente que se esclareça que a mesma ação não estabelece parentesco entre as partes e, assim sendo, pode não se mostrar bastante à intenção (legítima, registre-se de passagem) do pai biológico em ocupar, efetivamente, a posição de pai na vida de um filho supervenientemente descoberto, com todas as implicações jurídicas, psicológicas, morais e pessoais dela decorrentes. Nesse sentido, lúcidas se apresentam as palavras de LUIZ EDSON FACHIN[21] para quem “a paternidade não é apenas um dado, tem a natureza de se deixar construir.”
Merece registro a elucidação da doutrina de MARIA BERENICE DIAS[22] quanto aos efeitos da supracitada ação, in verbis: “A declaração do vínculo biológico não surte efeitos no registro civil e, em consequência, não ocorrem sequelas de ordem matrimonial ou sucessória.”
Impedir o genitor biológico de receber a tutela jurisdicional para o reconhecimento do vínculo jurídico de paternidade ceifa-lhe, também, a chance de construir uma família, um vínculo filial. Tamanha a relevância dessa relação pais-filhos que o direito à convivência familiar foi erigido à condição de direito fundamental, assim previsto no Estatuto da Criança e do Adolescente[23] e na Convenção da ONU dos Direitos da Criança[24]. Esta mesma convenção também estatui como direito de toda criança o de conhecer seus pais e ser cuidada por eles[25].
Sob a ótica do filho biológico, lúcidas se mostram as lições de ROLF MADALENO[26], no sentido de que “todo mundo quer saber ou conhecer a sua origem, ter a exata informação da sua cadeia ancestral que projeto a pessoa para o passado e traça o caminho da sua história familiar, além de informar sua rede de relações parentais, que foi se formando ao longo dos tempos.”
Inclusive diante dessa importância, é oportunizado ao genitor biológico invocar a ideia da perda de uma chance, desenvolvida, a princípio, no âmbito da responsabilidade civil. Especialmente quanto à inserção dessa teoria no ramo do Direito de Família, explicam CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD[27]:
Outro palco iluminado, dentro das relações familiares, para a perda de uma chance, seria o direito filiatório, admitindo-se a hipótese de um dano injusto causado pela não informação por parte da genitora ao pai acerca da gravidez e do posterior nascimento de um filho, frustrando a convivência entre paterno-filial e todos os efeitos (inclusive psicológicos) dela decorrentes.
4. A MULTIPARENTALIDADE A SERVIÇO DO MELHOR INTERESSE DE CRIANÇAS E DE ADOLESCENTES
Decerto, a solução desse (aparente) embate entre as paternidades biológica e afetiva poderá ser auxiliada quando do julgamento pelo STF[28] do leading case estabelecido inicialmente no Recurso Extraordinário nº 841528 e posteriormente substituído pelo paradigma Agravo em Recurso Extraordinário nº 692186 cuja repercussão geral fora reconhecida por acórdão publicado em 21 de fevereiro de 2013.
Enquanto isso, adotando-se uma ou outra preferência (seja a biológica, seja a afetiva), reputa-se não se estará zelando pelo melhor interesse da criança/do adolescente. E não se perca de mente ser este o princípio maior, aquele que deve reger todas as discussões a respeito da infância e da juventude.
Não se olvide que, na aplicação da norma, o juiz deverá, por força de lei, atentar aos fins sociais a que ela se destina (art. 5º, Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro). E, em se tratando de norma que envolva direito de crianças e de adolescentes, o fim precípuo a ser perseguido deve ser a proteção máxima destas pessoas.
Legado do direito anglo-saxão, o primado do “the best interest” orienta-nos a despojarmo-nos de critérios outros em causas que envolvam a infância e a juventude, numa busca (que deve ser obstinada) da realização, com a maior efetividade possível, dos interesses superiores de crianças e de adolescentes.
Conquanto topograficamente previsto como princípio orientador da aplicação das medidas de proteção[29], a norma do superior interesse vem sendo apontada pela doutrina como verdadeiro princípio geral de todo esse microssistema jurídico, irradiando efeitos por todo ele, metaprincípio que é nesta seara do conhecimento jurídico. Nesse norte, invocamos os ensinamentos da doutrina especializada de ANTONIO CEZAR LIMA FONSECA[30]:
A rigor, não se trata apenas de um princípio que rege a aplicação das medidas, como dispõe o parágrafo único, mas um norteamento que deve gerenciar e orientar todas as atitudes concretas da sociedade e do Estado em prol de crianças e adolescentes.
Também a corroborar esse entendimento, destaca VALTER KENJI ISHIDA[31]: “Esses princípios estabelecidos no ECA na verdade, não se limitam à aplicação da medida de proteção, mas se estendem à interpretação de todo ordenamento jurídico menorista.”
Segundo a nossa jurisprudência, ademais, o interesse da criança deve prevalecer sobre qualquer outro, quando seu destino estiver em discussão (RT 420/139, 123/115, 425/92, 430/84).
Ora, a nossa Constituição Federal preconiza:
Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança e ao adolescente, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Em âmbito legal, por seu turno, verifica-se previsão no sentido de que é direito fundamental das crianças e dos adolescentes terem sua vida e saúde resguardadas para se desenvolverem de forma sadia e harmoniosa[32].
Não bastasse a previsão interna, não olvidemos que, por força do §2º do art. 5º da Constituição Federal, “os direitos e garantias expressos na Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte.” É nesse contexto que se traz à baila a Convenção da ONU Sobre os Direitos da Criança (1989), ratificada pela República Federativa Brasileira através da aprovação, pelo Congresso Nacional, do Decreto Legislativo nº 28/1990 e promulgada, internamente, através do Decreto nº 99710/1990 – que, expressamente, acolheu o princípio do melhor interesse, estatuindo que:
art. 3º, 1 – Todas as ações relativas às crianças, levadas a efeito por instituições públicas ou privadas de bem-estar social, tribunais, autoridades administrativas ou órgãos legislativos, devem considerar, primordialmente, o melhor interesse da criança.
(realce nosso)
A par disso, estabelece a mesma convenção que: “Os Estados Partes asseguram na máxima medida possível a sobrevivência e o desenvolvimento da criança.” (art. 6º, 2).
Nesse norte, não é impertinente relembrar, sobretudo aos legalistas de plantão, que se trata de tratado internacional que versa sobre direitos humanos, que, conquanto não tenha sido aprovado com observância do rito do §3º do art. 5º da nossa Constituição Federal, tem, sim, status supralegal, sobrepondo-se à legislação ordinária que com ele colida, porquanto capaz de “paralisar-lhe a sua eficácia". E esta nossa defesa embasa-se na aplicação do entendimento do STF estabelecido no paradigmático julgamento do Recurso Extraordinário nº 466.343 de relatoria do Min. Gilmar Mendes acerca da prisão civil do depositário infiel[33]. Pedimos vênia para transcrever parte do brilhante voto:
Portanto, diante do inequívoco caráter especial dos tratados internacionais que cuidam da proteção dos direitos humanos, não é difícil entender que a sua internalização no ordenamento jurídico, por meio do procedimento de ratificação previsto na Constituição, tem o condão de paralisar a eficácia jurídica de toda e qualquer disciplina normativa infraconstitucional com ela conflitante.
É assim que o reconhecimento da multiparentalidade, in casu, parece indicar a solução mais adequada para o resguardo da dignidade da pessoa humana apregoado em uma moderna e eudemonista concepção de família.
Compartilhamos, à partida, e como pressuposto da defesa ora deduzida, dos ensinamentos de ROLF MADALENO[34], para quem: “A filiação consanguínea deve coexistir com o vínculo afetivo, pois com ele se completa a relação parental.”
Não obstante comumente invocada no contexto das famílias recompostas[35], a teoria da multiparentalidade apresenta-se também em defesa da tese da coexistência jurídica das duas paternidades em tablado.
No que atine a essa ideia, leciona a doutrina de BELMIRO PEDRO WELTER[36] que o ser humano é, a um só tempo, biológico, afetivo e ontológico, em razão do que, possível se faz o estabelecimento de verdadeira trilogia familiar a suscitar a coexistência de três vínculos paternos simultâneos da mesma pessoa.
Conquanto não prevista expressamente na nossa legislação, essa tese não deve causar estranheza ao operador do direito. Nesse sentido, inclusive, mister aduzir que o STJ, incidenter tantum, já admitiu a possibilidade jurídica de sua discussão judicial, conforme se vê abaixo:
Em atenção às novas estruturas familiares, baseadas no princípio da afetividade jurídica (a permitir, em última análise, a realização do indivíduo como consectário da dignidade da pessoa humana), a coexistência de relações filiais ou a denominada multiplicidade parental, compreendida como expressão da realidade social, não pode passar despercebida pelo direito. Desse modo, há que se conferir à parte o direito de produzir as provas destinadas a comprovar o estabelecimento das alegadas relações socioafetivas, que pressupõem, como assinalado, a observância dos requisitos acima referidos[37].
Apesar de inexistir óbice expresso no nosso ordenamento jurídico à aposição de dois ou mais genitores no registro de nascimento de uma criança, a doutrina clássica sempre defendeu que o reconhecimento dos vínculos de parentesco deveria se orientar pela ideia da uniparentalidade. A razão dessa defesa pauta-se nas implicações que podem advir do eventual reconhecimento de plúrimas e simultâneas linhas de parentesco paterno e/ou materno, implicações essas capazes de gerar confusão, verbi gratia, na questão da vocação hereditária, como admoestam CRISTIANO CHAVES DE FARIAS e NELSON ROSENVALD[38]:
A decorrência da admissibilidade desta tese seria a multi-hereditariedade, na medida em que seria possível reclamar herança de todos os seus pais e de todas as suas mães. Isto sem esquecer a possibilidade de pleitear alimentos, acréscimo de sobrenome, vínculos de parentesco...
A complexidade que decorre da aceitação desse fenômeno, contudo, não se afigura, a nosso sentir, óbice legítimo ao seu reconhecimento excepcional, quando este se postar como a solução mais justa no caso concreto.
O próprio STJ pondera acerca de demandas que envolvam o estado de filiação no sentido de que:
Nas demandas sobre filiação, não se pode estabelecer regra absoluta que recomende, invariavelmente, a prevalência da paternidade socioafetiva sobre a biológica. É preciso levar em consideração quem postula o reconhecimento ou a negativa da paternidade, bem como as circunstâncias fáticas de cada caso.[39]
Ressalta-se, contudo, que o presente artigo não se propõe a defender a aplicação simplista e irrestrita da citada teoria a todo e qualquer novo arranjo de família hodiernamente estabelecido. Isto porque não se olvida dos complicadores decorrentes da adoção dessa tese no mundo jurídico, como se aduziu acima.
Por essa razão, registra-se a necessidade de moderação na aplicação da mesma teoria pluriparental, sem que, contudo, flexione-se quanto a ser esta a melhor (e única) opção in casu a resguardar o interesse da criança / do adolescente.
É que, como lucidamente adverte PAULO LUIZ NETTO LOBO[40]: “A verdade real da filiação surge na dimensão cultural, social e afetiva, donde emerge o estado de filiação efetivamente constituído”.
5. CONCLUSÕES
Com base nas razões que foram deduzidas, forçosa a conclusão pela conveniência da coexistência entre as paternidades, impedindo-se que seja excluído o nome do pai não biológico (mas afetivo) do registro de nascimento da criança/do adolescente e incluindo-se neste o nome do genitor consanguíneo.
É que restou demonstrada a importância do afeto na construção da personalidade de crianças e de adolescentes, de maneira que a ruptura jurídica do laço de parentesco construído com base nesse sentimento não se afigura aconselhável, inclusive à luz do que entende o STJ.
A outro giro, como visto acima, mostra-se perfeitamente legítima a pretensão do reconhecimento da paternidade biológica por parte daquele que teve ocultada a condição de pai por conduta dolosa ou culposa materna. Isso como corolário do entendimento do direito à identidade em uma perspectiva genética.
Não se descurou, ademais, de explicitar que, em casos como o que fora posto em talado nesta pesquisa, a busca pelo mero reconhecimento judicial da ascendência genética não se mostraria bastante, uma vez caracterizada a limitação de alcance desta demanda em relação ao Direito Civil, em especial ao Direito de Família e das Sucessões.
Com efeito, não obstante reconhecidas as problemáticas decorrentes do reconhecimento da tese da multiparentalidade, sobretudo a questão da multihereditariedade, outra solução não se afigura legítima e justa em relação ao caso, sobretudo quando este é analisado a partir da ótica do melhor interesse de crianças e de adolescentes, princípio maior de todo o microssistema que envolve a infância e a juventude.