RESUMO:O estudo destina-se ao exame do significado conferido ao princípio do não confisco segundo a doutrina jurídica nacional e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Realizou-se pesquisa bibliográfica considerando, dentre outros, as contribuições de Amaro (2010), Alexandre (2009), Beltrão (2014), Duarte (2013) e decisões judiciais da suprema corte brasileira. Inicialmente, a pesquisa revela tratar-se o confisco de conceito jurídico aberto e indeterminado, sujeito ao influxo de perspectivas políticas e ideológicas, e cujo conteúdo, por razões de estratégia legislativa, somente é elucidado na prática, à luz das circunstâncias do caso concreto, na criativa atividade dialética dos tribunais. Discorre sobre a concepção dos tributaristas que entendem haver na proibição do confisco uma especialização dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade em matéria tributária e apresenta o conceito prevalecente no âmbito do Supremo Tribunal Federal, segundo o qual há efeito confiscatório quando ocorra a injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, ou o comprometimento, pela insuportabilidade da carga tributária, do exercício do direito a uma existência digna ou da prática de atividade profissional lícita. Ao final, apresentam-se julgados do tribunal constitucional brasileiro que revelam, segundo a interpretação da corte, as dimensões da noção de razoabilidade em matéria tributária, de sorte a definir os contornos do princípio da vedação ao confisco.
Palavras-chave: Confisco. Tributação. Razoabilidade. Supremo Tribunal Federal.[1]
ABSTRACT:The study is intended to examine the meaning given to the principle of non-confiscation in national legal doctrine and in the jurisprudence of the Supreme Court. It was made a literature review considering, among others, the contributions of Amaro (2010), Alexandre (2009), Beltrão (2014), Duarte (2013) and judicial decisions of the Supreme Brazilian court. Initially, the research reveals that the confiscation is an open and undefined legal concept, subject to the influx of political and ideological perspectives, and whose content, for reasons of legislative strategy, is only elucidated in practice in the light of the specific circumstances of the concrete case, in the creative and dialectic activity of the courts. Discusses about the concept of tax law experts who understand the prohibition of confiscation be a specialization of the principles of reasonableness and proportionality in tax matters and presents the prevailing concept in the Supreme Court, according to which the confiscatory effect occurs when there is the unjust appropriation by the State, in whole or in part, of the assets or income of taxpayers, or the commitment, by the intolerability of the tax burden, the exercise of the right to a dignified existence or the practice of lawful professional activity. Finally, it is presented precedents of the Brazilian Constitutional Court that reveal, according to the interpretation of the court, the dimensions of the notion of reasonableness in tax matters, so as to define the contours of the principle of sealing the confiscation.
Keywords: Confiscation. Taxation. Reasonableness. Brazilian Federal Supreme Court.
1. INTRODUÇÃO
O princípio do não confisco figura no direito tributário brasileiro a partir da previsão constante do art. 150, IV, da Constituição Federal, segundo o qual, dentre outros limites impostos ao poder de tributar do Estado, consta a vedação a “utilizar tributo com efeito de confisco”. (BRASIL, 1988, p. 1) A repercussão prática dessa normativa, porém, é tema sobre o qual se debruça, de há muito, doutrina e jurisprudência no Brasil e no exterior, sendo diversas as perspectivas acerca do que, em termos de ato jurídico do Estado, é apto a caracterizar o proibido “confisco”, havendo teses encapadas pelo Judiciário sob a forma de comandos prescritivos que inibem o poder estatal de tributar e estabelecer obrigações acessórias aos jurisdicionados.
Neste estudo, examina-se o conteúdo jurídico do princípio da vedação ao confisco segundo a doutrina jurídica brasileira e a jurisprudência do Supremo Tribunal Federal. Para alcançar os objetivos propostos, utilizou-se como recurso metodológico a pesquisa bibliográfica, realizada a partir da análise pormenorizada de materiais já publicados e de artigos científicos divulgados em meio eletrônico.
O texto final foi fundamentado nas ideias e concepções de autores como Amaro (2010), Alexandre (2009), Beltrão (2014), Duarte (2013) e decisões judiciais da suprema corte brasileira, obtidas no endereço eletrônico do Supremo Tribunal Federal na Internet. A par das perspectivas doutrinárias sobre a matéria, apresentam-se julgados que favorecem a compreensão dos contornos do princípio do não confisco segundo a ótica do tribunal constitucional pátrio.
2. CONCEITO DE CONFISCO: PERSPECTIVA LEXICOGRÁFICA E SENTIDO TÉCNICO-JURÍDICO
O termo “confisco” designa, literalmente, segundo os léxicos da língua portuguesa, o resultado da conduta descrita como “apreender em proveito do Fisco”, o qual, por sua vez, corresponde ao erário ou tesouro público ou, ainda, é sinônimo do conjunto de órgãos da Administração Pública incumbidos da arrecadação ou fiscalização de tributos. (FERREIRA, 2013, p. 187) A definição é acolhida pela doutrina jurídico-tributária, conforme ilustra a perspectiva de Luciano Amaro, para quem confiscar “é tomar para o Fisco, desapossar alguém de seus bens em proveito do Estado.” (AMARO, 2010, p. 167).
A vedação ao confisco imposta pelo texto constitucional ao Estado brasileiro, contudo, não corresponde, por óbvio, à absoluta negação a qualquer expropriação para a satisfação do crédito tributário. O inadimplemento de tributos devidos pode dar ensejo à aplicação de multa, juros e correção monetária, cujo montante legalmente alcançado exija, por exemplo, para a quitação da dívida, a alienação de bens de propriedade do devedor em hasta pública, no âmbito de regular processo judicial de execução fiscal. Se assim não fosse, na prática, restaria negado ao Estado o poder de tributar, na medida em que bastaria ao responsável deixar de pagar o tributo, já que, ao final, a soma dos valores atrasados, ainda que abstraídos a multa e os juros de mora, importariam em valor que acabaria por exigir a perda patrimonial, causadora, nessa perspectiva, de suposto “confisco”. É evidente que uma tal interpretação sequer admite ser seriamente cogitada, na medida em que situação do tipo não se sustentaria, por estimular o inadimplemento generalizado da obrigação tributária, cuja satisfação é indispensável à execução das atividades do Estado, dentre outros, nos campos da infraestrutura, fomento, educação, saúde e segurança públicas, necessárias, por sua vez, à manutenção da vida em sociedade.[2]
Logo, parece claro, sem que necessário seja sequer recorrer a prospecções de maior vulto, que a vedação ao confisco não impede a materialização do sentido literal dessa expressão, a saber, a apreensão de bens em favor do Estado para a satisfação dos interesses da administração tributária, desde que a cobrança se funde em tributo instituído de forma regular e legítima. Qual é o sentido, então, da normativa que veda a tributação confiscatória?
Irapuã Beltrão (2014, p. 106) entende que o princípio da vedação ao confisco tem duas finalidades primordiais, sendo a primeira reforçar a regra segundo a qual o tributo não pode ser utilizado como sanção por ato ilícito, prevista, dentre outros dispositivos, no art. 3º do CTN, e a segunda, evitar que sejam estabelecidos tributos em demasia, impedindo a onerosidade não razoável ou a tributação excessiva, pelo que constituiria um limite ao volume da exação. No dizer do autor, enquanto a anterioridade é um princípio de “não surpresa”, “o não confisco é um princípio de ‘não excesso’ e de proteção a esse contribuinte, especialmente na sua renda e no seu patrimônio.” (BELTRÃO, 2014, p. 106)
Ciro Verner Paula Nunes (2014, p. 1), de igual forma, compreende que o princípio veda a instalação de um quadro de taxação “extorsiva” ou desproporcional, que importe uma absorção total ou parcial do patrimônio privado pela pessoa jurídica do Estado sem a correspondente indenização. Segundo o autor,
O princípio da vedação ao confisco é um limite constitucional ao poder de tributar do Estado, previsto no art. 150, inciso IV, da Constituição da República. Este princípio decorre da proteção constitucional ao direito de propriedade, elencada no art. 5º da Carta Magna, pois impede que essa norma seja desrespeita pelo Estado através da imposição de tributos excessivos, caracterizando, assim, o confisco por via indireta. Embora difícil definir o seu conceito, devido às divergências doutrinárias e jurisprudenciais, pode-se entender por confisco o ato do poder público de decretação de apreensão, adjudicação ou perda de bens pertencentes ao contribuinte, sem a contrapartida de justa indenização. Destarte, tributo com efeito confiscatório é aquele que pela sua taxação extorsiva corresponde a uma verdadeira absorção, no todo ou em parte, do patrimônio do indivíduo pelo Estado, sem a correspondente indenização ao contribuinte. (NUNES, 2014, p. 1)
Para Luciano Amaro (2010, p. 168), por sua vez, “o que se objetiva é evitar que, por meio do tributo, o Estado anule a riqueza privada”. Consoante o autor, o princípio atua em conjunto com o da capacidade contributiva, que também visa a preservar o patrimônio do particular. Além da necessidade de os tributos serem instituídos em atenção à capacidade econômica do contribuinte, apresentando, sempre que possível, caráter pessoal, e sendo graduados segundo o potencial financeiro dos jurisdicionados, deve o Estado atentar para não suprimir o patrimônio individual, o que se efetua, sobretudo, em atenção ao direito de propriedade, verdadeiro apanágio dos Estados liberais ocidentais, de base capitalista. (AMARO, 2010, p. 168)
Francisco Leite Duarte (2013, p. 224), na mesma linha, afirma que se trata de princípio decorrente da tutela da propriedade, que é resguardada pela constituição. Desde que atendida a respectiva função social, tem o particular o direito de uso, gozo e disposição dos bens integrantes de seu patrimônio, que não pode ser alvo de ataque injustificado pelo Estado (DUARTE, 2013, p. 224). Nessa perspectiva, a vedação ao confisco seria a norma que impede o ente governamental de valer-se da lei tributária como instrumento para a supressão ou redução do patrimônio particular. Em palavras do autor:
Embora a vedação ao confisco já encontre respaldo nos meandros do direito de propriedade e seja manifestação do princípio da capacidade contributiva, houve por bem o constituinte colocá-lo direta e expressamente no texto da Lei Maior, precisamente dentre as vedações ao poder de tributar, em seu art. 150, IV, que veda à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios utilizar tributo com efeito de confisco. Observe-se que a vedação é de se utilizar o tributo com efeito de confisco, porque o tributo, em sim mesmo, jamais se pode confundir com o confisco, por definição mesmo. Da mesma forma, não se deve confundir a proibição de tributação confiscatória com a pena de perdimento de bens, uma vez que o tributo não se constitui sanção de ato ilícito, enquanto o perdimento se enquadra no conceito de penalidades, tendo sido recepcionado pelo art. 5º, XLVI, b [da Constituição Federal]. (DUARTE, 2013, p. 224-225)
Logo, não é o “confisco”, em seu sentido original e linguístico, consistente na apreensão de bens particulares em proveito do Fisco, o que é proibido pela norma constitucional, mas, tão somente, a instituição de tributo “com efeito de confisco” (BRASIL, 1988, p. 1). A perda de bens, tanto sob a forma de penalidade quanto em resultado da cobrança judicial de débitos tributários regularmente instituídos, não obstante configure “confisco” no sentido lexicográfico, permanece legítima e amparada pela ordem jurídica, vez que o tributo, em si, desde que atendendo a certos requisitos, terá sido instituído em boa-fé estatal, com a devida finalidade arrecadatória ou extrafiscal, e não com o proibido intuito confiscatório.
3. O CONFISCO COMO CONCEITO JURÍDICO ABERTO E INDETERMINADO. A TENSÃO ENTRE A TRIBUTAÇÃO E TUTELA CONSTITUCIONAL DA PROPRIEDADE PRIVADA E A DEPENDÊNCIA HERMENÊUTICA DO PRINCÍPIO INSTRUMENTAL DA RAZOABILIDADE
O exato ponto em que a tributação deixa de ser legítima para violar a proibição do confisco – vale dizer, os atributos ou resultados que fazem com que a exação seja reputada “com efeito de confisco” (BRASIL, 1988, p. 1) – é o problema que busca a doutrina jurídico-tributária solucionar – e para o qual não há uma resposta taxativa. Ricardo Alexandre chega a afirmar que o conceito jurídico de confisco “é indeterminado, sujeito a um alto grau de subjetividade e varia muito de acordo com as concepções político-filosóficas do intérprete.” (ALEXANDRE, 2009, p. 140) Tal ocorre porque a norma da vedação ao confisco tem sido compreendida como a manifestação do princípio da razoabilidade e da proporcionalidade em matéria tributária, consoante propugnado pelo mesmo autor, quando afirma:
O princípio da vedação ao confisco também poderia ser denominado de princípio da razoabilidade ou proporcionalidade da carga tributária. A ideia subjacente é que o legislador, ao se utilizar do poder de tributar que a constituição lhe confere, deve fazê-lo de forma razoável e moderada, sem que a tributação tenha por efeito impedir o exercício de atividades lícitas pelo contribuinte, dificultar o suprimento de suas necessidades vitais básicas ou comprometer seu direito a uma existência digna. (ALEXANDRE, 2009, p. 140)
Ricardo Lobo Torres corrobora esse entendimento. Ao afirmar que o principio do não confisco constitui uma imunidade tributária da “parcela mínima necessária à sobrevivência da propriedade privada”, declara que, inexistindo possibilidade prévia de se fixar os limites quantitativos para a cobrança não confiscatória, a definição concreta de confisco há de pautar-se pela razoabilidade, a qual é aferida à luz das peculiaridades do caso concreto. (TORRES, 1993, p. 56) O eminente tributarista Sacha Calmon, no mesmo sentido, afirma que o princípio do não confisco deve ser entendido “como um preceito que determina a razoabilidade na tributação”, na medida em que tem sido utilizado para estipular patamares de exação tidos como suportáveis, de acordo com a cultura e condições de cada povo em particular. (CALMON, 2004, p. 39)
Inocêncio Mártires Coelho, de seu turno, doutrina que, qual emanação do imemorial direito de propriedade, o principio constitucional da proibição de tributos confiscatórios, para o seu pleno entendimento, convoca a incidência de outra limitação ao poder de tributar – a da capacidade econômica do contribuinte, estabelecida no art. 145, § 1º, da Constituição Federal, bem como a incidência dos multidimensionais princípios do Estado Democrático de Direito e da proporcionalidade ou razoabilidade. (COELHO, 2007, p. 1346-1347)
Irapuã Beltrão (2013, p. 106), de igual forma, aduz que a proibição do confisco impõe um corte ao poder de tributar, mas que “o limite dessa vedação é dado pelos conceitos de razoabilidade e proporcionalidade”. Segundo o autor, tal patamar não se pode aferir de forma objetiva, devendo ser norteado por uma “lógica de razoabilidade e proporcionalidade no caso concreto em que se pondera”, não se podendo afirmar um número absoluto aplicável a todos os tributos ou contribuintes indistintamente. (BELTRÃO, 2013, p. 106)
Destarte, à evidência, trata-se de conceito jurídico aberto ou indeterminado (DUARTE, 2013, p. 225), cujo significado somente pode ser alcançado na prática, que permite a progressiva e democrática construção do direito pela atividade dialética dos tribunais. Nesse contexto, o conteúdo da norma jurídica há de ser fixado na forma dos precedentes judiciais, os quais, considerando as circunstâncias e especificidades dos diferentes casos concretos, delinearão os contornos do princípio, identificando hipóteses que violem o preceito e elucidando situações que, não obstante pareçam importar quebra da norma, conformam-se à ordem jurídica.
Não significa isso, contudo, que seja de todo impossível formular, em tese, proposições jurídico-normativas relativas ao princípio. É claro, por exemplo, que se mostrariam indubitavelmente confiscatórios os tributos que absorvessem todo o valor da propriedade, que aniquilassem a empresa ou impedissem o exercício de atividade lícita e moral. (BELTRÃO, 2013, p. 106) Da mesma forma, dificilmente alguém consideraria confiscatória a alíquota de 1% sobre o valor venal do imóvel para fins de IPTU, ao passo que todos entenderiam haver violação ao princípio caso o mesmo percentual fosse fixado em 80%, fato que ilustra a facilidade em adotar-se um posicionamento, em se tratando da aplicabilidade de conceitos jurídicos indeterminados, quando se está diante de situações extremas. (DUARTE, 2013, p. 226) Idêntica situação não ocorre, porém, na zona cinzenta que forma o meio termo, a exigir inegável esforço hermenêutico por parte do aplicador, que terá, por vezes, de arbitrar o sentido do princípio em inegável atividade de criação da norma jurídica, a ser sustentada pelo encadeamento lógico dos argumentos no discurso e validada pelo critério da autoridade, indispensável à decidibilidade de conflitos em um Estado de Direito. Nesse sentido, coloca Luciano Amaro que:
Algumas situações são expressivas na caracterização de confisco; por exemplo, imposto que absorvesse toda a renda do contribuinte sem dúvida seria confiscatório; do mesmo modo, o tributo que tomasse parcela substancial do patrimônio do indivíduo. Mas qual seria o percentual a partir de que o imposto passa a ser confiscatório? Isso não está dito na Constituição. Haverá hipóteses, por outro lado, em que uma tributação severa se justifica, por razões de política fiscal (como se dá com os tributos de fins extrafiscais). O princípio da vedação de tributo confiscatório não é um preceito matemático; é um critério informador da atividade do legislador e é, além disso, preceito dirigido ao intérprete e ao julgador, que, à vista das características da situação concreta, verificarão se determinado tributo invade ou não o território do confisco. (AMARO, 2010, p. 168)