Dimensões da razoabilidade em matéria tributária: o princípio da vedação ao confisco na doutrina e na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal

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4. A VEDAÇÃO AO CONFISCO NA JURISPRUDÊNCIA DO SUPREMO TRIBUNAL FEDERAL

Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, o princípio do não confisco assume contornos bem definidos como norma de limitação constitucional ao poder de tributar. Uma primeira e importante decisão conceitua o vedado confisco como a “injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional”, consignando, ainda, que “a identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade da carga tributária” e não tendo em vista apenas um tributo específico. (BRASIL, 1999, p. 1) O caráter confiscatório deve ser apreciado considerada toda a tributação incidente sobre o patrimônio particular em um período estabelecido, cabendo ao Judiciário verificar a capacidade de que dispõe o contribuinte para suportar a incidência de todos os tributos que deverá pagar à mesma pessoa política que os houver instituído à luz do montante de sua riqueza ou capital. É o que se depreende do seguinte excerto do acórdão proferido na ADI n.º 2.010, de 30 de setembro de 1999, in verbis:

A TRIBUTAÇÃO CONFISCATÓRIA É VEDADA PELA CONSTITUIÇÃO DA REPÚBLICA. - A jurisprudência do Supremo Tribunal Federal entende cabível, em sede de controle normativo abstrato, a possibilidade de a Corte examinar se determinado tributo ofende, ou não, o princípio constitucional da não-confiscatoriedade consagrado no art. 150, IV, da Constituição. Precedente: ADI 1.075-DF, Rel. Min. CELSO DE MELLO (o Relator ficou vencido, no precedente mencionado, por entender que o exame do efeito confiscatório do tributo depende da apreciação individual de cada caso concreto). - A proibição constitucional do confisco em matéria tributária nada mais representa senão a interdição, pela Carta Política, de qualquer pretensão governamental que possa conduzir, no campo da fiscalidade, à injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita ou, ainda, a regular satisfação de suas necessidades vitais (educação, saúde e habitação, por exemplo). A identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade da carga tributária, mediante verificação da capacidade de que dispõe o contribuinte - considerado o montante de sua riqueza (renda e capital) - para suportar e sofrer a incidência de todos os tributos que ele deverá pagar, dentro de determinado período, à mesma pessoa política que os houver instituído (a União Federal, no caso), condicionando-se, ainda, a aferição do grau de insuportabilidade econômico-financeira, à observância, pelo legislador, de padrões de razoabilidade destinados a neutralizar excessos de ordem fiscal eventualmente praticados pelo Poder Público. Resulta configurado o caráter confiscatório de determinado tributo, sempre que o efeito cumulativo - resultante das múltiplas incidências tributárias estabelecidas pela mesma entidade estatal - afetar, substancialmente, de maneira irrazoável, o patrimônio e/ou os rendimentos do contribuinte. - O Poder Público, especialmente em sede de tributação (as contribuições de seguridade social revestem-se de caráter tributário), não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade. (BRASIL, 1999, p. 1)

Partindo dessa premissa, o STF já se manifestou diversas vezes pela inconstitucionalidade da cobrança de tributos por violação ao princípio do não confisco. No próprio julgamento da ADI n.º 2.010, restou decidido, por exemplo, que a criação de alíquota progressiva de contribuição previdenciária para os servidores públicos federais ativos, que atingiria, para os rendimentos mais elevados, o patamar de 25%, apresentaria caráter confiscatório, uma vez que tais rendimentos já estavam sujeitos à alíquota de 27,5% de imposto de renda, devido à mesma pessoa política, que, no caso, era a União. (BRASIL, 1999, p. 1) Note-se, pois, que foi aplicada, no caso, a tese segundo a qual o efeito confiscatório deve ser apreciado em relação à totalidade da carga tributária devida ao mesmo ente federativo, e não tendo em vista, exclusivamente, a alíquota do tributo impugnado. No caso, a incidência dos dois tributos obrigaria a determinados servidores entregar à União quase metade de seus rendimentos mensais, o que é inegavelmente confiscatório. Caso se considerasse exclusivamente a alíquota da contribuição previdenciária, contudo, o índice não importaria confisco, por entender-se, ordinariamente, que a tributação de 1/4 dos rendimentos não viola os limites do razoável.

Em outra oportunidade, o tribunal decidiu que a fixação de patamar mínimo de duas vezes o valor do tributo devido para a multa a ser aplicada em caso de inadimplemento da obrigação tributária ataca o princípio do não confisco. Na hipótese, cuidou-se de ação direta movida em face do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição do Estado do Rio de Janeiro, tendo o STF, nos autos da ADI n.º 551/RJ, Rel. Min. Ilmar Galvão, julgada em 24 de outubro de 2002, entendido que “a desproporção entre o desrespeito à norma tributária e sua consequência jurídica, a multa, evidencia o caráter confiscatório desta, atentando contra o patrimônio do contribuinte”. (ALEXANDRE, 2009, p. 141)

De outra feita, fixou o Supremo que a cobrança antecipada de tributo por fato gerador presumido, como no caso do ICMS, não viola o princípio do não confisco. (BRASIL, 2002, p. 1) Segundo o tribunal, a regra, que encontra amparo no texto do art. 150, § 7º, da CF/88,[3] introduzido pela EC n.º 3/1993, não importa em arrecadação confiscatória na medida em que, no preço passado do industrial para o varejista é embutido unicamente o imposto previsto pela saída da mercadoria de seu estabelecimento, não se podendo falar em cumulatividade. Presentes os requisitos da substituição tributária (legalidade e tipicidade, com regulamentação da matéria por lei complementar), não restaria presente situação de confisco, vez que, na venda da mercadoria ao consumidor final, o substituto reembolsa-se do valor pago antecipadamente, e, caso não ocorra o fato gerador presumido, há a garantia de restituição imediata e preferencial do imposto pago. (BRASIL, 2002, p. 1)

Ainda em outro julgamento, entendeu o STF que, em se tratando de taxa, deve haver uma relação de razoável equivalência entre o valor cobrado pelo Estado e o custo do serviço prestado ou posto à disposição do contribuinte. Por se tratar de tributo vinculado ao usufruto efetivo ou potencial de serviço público ou ao exercício do poder de polícia, não pode haver desproporção entre o custo da atividade realizada e o valor exigido do contribuinte, sob pena de materializar-se tributação irrazoável, caracterizadora, pois, de infringência à vedação do confisco. É o que se extrai de parte da ementa da ADI n.º 2.551 MC-QO/MG, também da relatoria do Min. Celso de Mello, julgada pelo tribunal pleno em 2 de abril de 2003:

TAXA: CORRESPONDÊNCIA ENTRE O VALOR EXIGIDO E O CUSTO DA ATIVIDADE ESTATAL. - A taxa, enquanto contraprestação a uma atividade do Poder Público, não pode superar a relação de razoável equivalência que deve existir entre o custo real da atuação estatal referida ao contribuinte e o valor que o Estado pode exigir de cada contribuinte, considerados, para esse efeito, os elementos pertinentes às alíquotas e à base de cálculo fixadas em lei. - Se o valor da taxa, no entanto, ultrapassar o custo do serviço prestado ou posto à disposição do contribuinte, dando causa, assim, a uma situação de onerosidade excessiva, que descaracterize essa relação de equivalência entre os fatores referidos (o custo real do serviço, de um lado, e o valor exigido do contribuinte, de outro), configurar-se-á, então, quanto a essa modalidade de tributo, hipótese de ofensa à cláusula vedatória inscrita no art. 150, IV, da Constituição da República. Jurisprudência. Doutrina. TRIBUTAÇÃO E OFENSA AO PRINCÍPIO DA PROPORCIONALIDADE. - O Poder Público, especialmente em sede de tributação, não pode agir imoderadamente, pois a atividade estatal acha-se essencialmente condicionada pelo princípio da razoabilidade, que traduz limitação material à ação normativa do Poder Legislativo. - O Estado não pode legislar abusivamente. A atividade legislativa está necessariamente sujeita à rígida observância de diretriz fundamental, que, encontrando suporte teórico no princípio da proporcionalidade, veda os excessos normativos e as prescrições irrazoáveis do Poder Público. O princípio da proporcionalidade, nesse contexto, acha-se vocacionado a inibir e a neutralizar os abusos do Poder Público no exercício de suas funções, qualificando-se como parâmetro de aferição da própria constitucionalidade material dos atos estatais. - A prerrogativa institucional de tributar, que o ordenamento positivo reconhece ao Estado, não lhe outorga o poder de suprimir (ou de inviabilizar) direitos de caráter fundamental constitucionalmente assegurados ao contribuinte. É que este dispõe, nos termos da própria Carta Política, de um sistema de proteção destinado a ampará-lo contra eventuais excessos cometidos pelo poder tributante ou, ainda, contra exigências irrazoáveis veiculadas em diplomas normativos editados pelo Estado. (BRASIL, 2003, p. 1)
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Por fim, cumpre ressaltar já estar assentado no Supremo, de há muito, que não caracteriza confisco a pena de perdimento de bens imposta pela legislação tributária ao contribuinte que não efetue o pagamento do tributo na forma e prazo previstos em ato normativo. No caso, objeto do julgamento do Agravo de Instrumento n.º 173.689-6/DF, o requerente instava acerca da suposta violação ao art. 150, IV, da CF em face da relutância da União em promover a regularização fiscal de veículo importado, apreendido pela autoridade aduaneira que, ademais, aplicou a pena de perdimento de bens. Entendeu-se que não há o vedado confisco quando a excussão patrimonial decorre da entrada de bens, no território nacional, sem obediência às normas legais concernentes à importação, as quais, por expressa disposição legal, levam à perda do bem. (BRASIL, 1996, p. 1)


5. CONCLUSÃO

O princípio do não confisco ou da vedação à tributação confiscatória decorre da previsão constante do art. 150, IV, da Constituição Federal, segundo o qual é vedado à União, Estados, Distrito Federal e Municípios utilizar tributo “com efeito de confisco”. A cláusula não encerra uma proibição genérica a toda e qualquer apreensão de bens em proveito da administração pública, o que inviabilizaria a cobrança judicial de débitos fiscais ou, ainda, a aplicação de penalidades administrativas por infringência de obrigações tributárias principais ou acessórias. Cuida-se, em vez disso, de princípio destinado ao legislador, que resta proibido de impor tributação excessiva ou irrazoável, que importe na injusta absorção do patrimônio particular, na aniquilação da empresa ou no impedimento do exercício de atividade lícita. É compreendido pela doutrina como a repercussão dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade no plano tributário.

Precisamente por isso, o conceito jurídico de confisco mostra-se aberto e indeterminado, demandando elucidação à luz das circunstâncias e especificidades do caso concreto, quando, ainda, sujeita-se ao inevitável influxo das perspectivas ideológicas do intérprete. Na jurisprudência do Supremo Tribunal Federal, tem-se por violada a norma que veda o confisco quando presente a injusta apropriação estatal, no todo ou em parte, do patrimônio ou dos rendimentos dos contribuintes, comprometendo-lhes, pela insuportabilidade da carga tributária, o exercício do direito a uma existência digna, ou a prática de atividade profissional lícita. Para o STF, a identificação do efeito confiscatório deve ser feita em função da totalidade da carga tributária e não tendo em vista apenas um tributo específico.

Nesse sentido, já entendeu o STF que: a) alíquota progressiva de contribuição previdenciária para servidores públicos federais ativos no patamar de 25% apresentaria caráter confiscatório, uma vez que os mesmos rendimentos já estão sujeitos ao índice de 27,5% de imposto de renda, de modo que o valor final, pela sistemática de cálculo do tributo proposto, chegaria ao comprometimento de quase 50% da renda mensal do servidor público em favor de uma mesma pessoa política, que, no caso, era a União; b) patamar mínimo de duas vezes o valor do tributo devido para a multa a ser aplicada em caso de inadimplemento da obrigação tributária ataca o princípio do não confisco; c) cobrança antecipada de tributo por fato gerador presumido, como no caso do ICMS, não viola o princípio do não confisco, vez que na venda da mercadoria ao consumidor final o substituto reembolsa-se do valor pago antecipadamente, e, caso não ocorra o fato gerador presumido, há a garantia de restituição imediata e preferencial do imposto pago; d) em se tratando de taxa, viola o princípio do não confisco a ausência de uma relação de razoável equivalência entre o valor cobrado pelo Estado e o custo do serviço prestado ou posto à disposição do contribuinte; e) não caracteriza confisco a pena de perdimento de bens imposta pela legislação tributária ao contribuinte que não efetue o pagamento do tributo na forma e condições previstas no ato normativo.

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Sobre o autor
Cláudio Ricardo Silva Lima Júnior

Especialista em Direito Processual Civil pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais (PUC/MG). Bacharel em Direito pela Universidade Católica de Pernambuco e pela Universidade Federal de Pernambuco (UFPE) - dupla diplomação. Ex-Assessor da Justiça Federal de Primeira Instância na 5ª Região. Ex-Assessor do Ministério Público Federal na 1ª Região. Atualmente, é Oficial de Justiça do Tribunal Regional Federal da 5ª Região.

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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