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A crise da soberania estatal e os novos agentes transnacionais.

A (in)constitucionalidade da lei geral da copa

Agenda 26/08/2015 às 19:51

Vivencia-se a crise da soberania dos Estados no momento em que agentes transnacionais insurgem contra o monopólio estatal sobre a produção normativa. Cumpre analisar a Lei Geral da Copa como flexibilização da soberania nacional sob ação da FIFA.

Resumo: Vivencia-se, na pós-modernidade, a crise da soberania dos Estados, atrelada à questão territorial, no momento em que agentes transnacionais insurgem contra o monopólio estatal sobre a produção normativa. Estamos diante de um novo fenômeno do constitucionalismo onde ordens jurídicas não-estatais exibem poderes de ordem política e jurídica e, não raramente, irritam-se com as Constituições dos Estados motivando alterações no ordenamento jurídico público. O cenário exposto antes pôde ser visualizado com a realização da Copa do Mundo da FIFA no Brasil, em 2014. Para receber a competição o Estado brasileiro precisou integrar um conjunto de regras impostas pela Federação Internacional ao seu ordenamento jurídico, algumas em choque com a Constituição Federal, através da Lei Geral da Copa, o que teve o condão de, ainda que pontualmente, flexibilizar a soberania estatal. Cabe analisar os reflexos dessa flexibilização da soberania estatal frente à imposição de um agente político internacional, sob o viés do Transconstitucionalismo, reconhecendo as tensões existentes entre a economia e o direito, em especial a ordem jurídica já positivada no Brasil antes mesmo da Lei Geral da Copa.

Palavras-Chave: Constitucionalismo. Estado-Nação. FIFA. Soberania. Transconstitucionalismo.

Abstract: It’s experienced, on the post-modernity, the crisis of the state sovereignty, linked to the territorial issue, at the time transnational actors rebel against the state monopoly of production rules. We are facing the new phenomenon of constitutionalism where non-state legal systems exhibit political and legal power and often get irritated with state constitutions motivating changes in public law. The above scenario before could be viewed with the FIFA World Cup on Brazil, in 2014. In order to receive the competition the Brazilian State had to integrate a set of rules imposed by the International Federation with its legal system, some clashing with the Federal Constitution by the World Cup General Law, which had the power to, albeit occasionally, easing state sovereignty. It is analyzing the effects of this easing of state sovereignty across the imposition of an international political agent under the bias of the Transconstituctonalism recognizing the tensions between economics and law, in particular the legal system already positively in Brazil before the World Cup General Law.

Keywords: Constitutionalism. FIFA. Nation-State. Sovereignty. Transconstitutionalism.

Sumário: Considerações Iniciais. 1 – Da soberania à geografia. 2 – O novo constitucionalismo corporativo transnacional. 3 – A Lei Geral da Copa e a soberania do Estado brasileiro. Considerações Finais. Referências.

CONSIDERAÇÕES INICIAIS.

            A modernidade foi a era da segurança, da soberania. Na pós-modernidade é tempo de liberdade, de liquidez.

            É visível, na contemporaneidade, a crise enfrentada pelos Estados-nações naquilo que tange à sua soberania. A globalização que desenvolveu a economia acabou com as barreiras geográficas, já não se vislumbram os limites de outrora. Se a queda do Muro de Berlim representou a derrocada da cisão entre capitalismo/socialismo, a globalização econômica que seguiu derrubou os muros que enclausuravam os Estados. É possível sentir uma rachadura no monopólio da produção normativa, antes garantida ao Estado, agora compartilhada com as grandes transnacionais, através de seus códigos corporativos.

            Levantada tal hipótese, o objetivo geral do presente trabalho é analisar, reconhecendo as tensões existentes entre direito e economia, como se dá o processo de atrito entre os códigos corporativos e as Constituições estatais, levantando alguns posicionamentos acerca da globalização e sua afronta à soberania. Para tanto, se tentou ponderar sobre o processo de criação da Lei Geral da Copa, legislação infraconstitucional sancionada no âmbito do Brasil para regulamentar as competições ocorridas nos anos de 2013 e 2014, sob chancela da FIFA – Federação Internacional de Futebol -, em que uma série de dispositivos atenta à Constituição Federal do Brasil.

            Para tanto, no primeiro momento, importou-se fazer um resgate da questão da soberania, enquanto atrelada à definição de território dos Estados, buscando pontuar seu surgimento, ápice e decadência, em razão, justamente, da queda das barreiras geográficas trazida pelo avanço da globalização econômica.

            No momento posterior, como corolário lógico, foi proposta uma análise, ainda que não definitiva, acerca da constitucionalização sem Estado que se apresenta, avaliando a existência de funções, estruturas e instituições dos códigos corporativos, atuando com poderes equiparáveis à constituições civis. Essas ordens jurídicas não-estatais irritam-se com as ordens jurídicas estatais, em processo ultracíclico transordinal, motivando alterações e adaptações.

            Por derradeiro, o presente trabalho tratou de apreciar a criação da Lei Geral da Copa, legislação proposta pela FIFA como adaptação do ordenamento jurídico nacional ao recebimento dos eventos da Copa das Confederações de 2013 e da Copa do Mundo de Futebol de 2014, examinando a (in)constitucionalidade de alguns dispositivos do referido diploma legal, mitigando, com isso, a soberania do Estado brasileiro enquanto da vigência do mesmo.

1 – DA SOBERANIA À GEOGRAFIA.

A etimologia do termo soberania provém do latim super omnia, que nos remete à noção de algo acima dos homens. Nessa esteira, Jean Bodin, citado por Bedin (2013, p. 111), define soberania como o “poder absoluto e perpétuo de uma república”. A noção de república em Bodin pode ser compreendida como o Estado moderno, em sua visão hobbesiana, uma forma de poder político separado tanto do governado quanto do governante. Assim, soberania é o poder ilimitado e indivisível de fazer leis, monopolizado pelo Estado.

No centro da ideia de Estado-moderno, na concepção de David Held (1995, p. 60), “se encuentra um orden impersonal legal o constitucional, delimitando uma estrutura común de autoridade, que define la naturaleza y la forma del control y la administración de una comunidade determinada”. Ou seja, a ideia de soberania está imbricada com o ideal de Estado moderno, em suas feições pós-Paz de Westfália.

A despeito da dificuldade de estabelecer um marco histórico definitivo para o surgimento do Estado moderno, ainda que se pactue que o Tratado de Westfália tenha sido um ponto crucial, é plausível afirmar que o processo que culminou no surgimento da noção moderna de Estado foi um desenvolvimento histórico ao longo de alguns séculos e em etapas sucessivas.

Marvin Perry, citado por Bedin (2013, p. 81) assinala que:

A desintegração das formas políticas medievais e a emergência do Estado moderno coincidem com a ruptura gradativa do sistema socioeconômico da Idade Média baseado na tradição, na hierarquia e nas ordens ou Estados.

Há, então, dois movimentos, um de centralização e outro de concentração do Poder, o que nos remete à soberania e delimitação geográfica dos Estados. Held (1995, p. 58) destaca seis momentos determinantes na história da formação dos Estados, em sua concepção moderna:

a) la creciente coincidência de los limites territoriales com um sistema de gobierno uniforme; b) la creación de nuevos mecanismos de elaboración y ejecución de leyes; c) la centralización del poder administrativo; d) la alteración y extensión de los controles fiscales; e) la formalización de las relaciones entre los Estados mediante el desarrollo de la diplomacia y las instituciones diplomáticas y f) la introducción de um ejército permanente.

É possível visualizar, portanto, que a noção de soberania estatal tem raízes na questão geográfica. O espaço físico dos Estados-nações sempre foi determinante na relação com os cidadãos, a própria noção de cidadania vale-se da ótica territorial, ao definir se o indivíduo é cidadão ou estrangeiro àquele Estado, na determinação de seu vínculo jurídico-político com o sujeito.

Nesse sentido, soberania e geografia são pressupostos presentes na genealogia do Estado moderno, visualizado no mito hobbesiano sobre o Estado como o monstro (Leviatã) cujas escamas são formadas pelos seus súditos, portanto, soberano e absoluto dentro de seus domínios, e no estado de guerra de todos contra todos nas relações entre países, a alegoria de um estado de natureza internacional. Daí decorre a alegação sobre soberania e geografia pressuporem a formação do Estado-moderno.

É possível afirmar que o modelo do Estado soberano, autônomo e ilimitado dentro de suas fronteiras, sem autoridade superior, reinou durante toda a modernidade. Havia uma sociedade de Estados em coexistência e com relações de cooperação entre iguais, em que possíveis litígios encontravam resolução pelo uso da violência, com isso, a guerra é legitimada.

Interessante citar, nesse ínterim, o “modelo de Westfália” proposto por Held (1995, p. 105):

1. El mundo está compuesto y dividido por Estados soberanos que no reconocen ninguna autoridade superior.

2. El processo de creación de derecho, la resolución de disputas y la ejecución de la ley están básicamente em las manos de los Estados individuales.

3. El derecho internacional se orienta al estabelecimento de reglas mínimas de coexistencia; la creación de relaciones duraderas entre los Estados y los pueblos sólo eles promovida cuando atende objetivos políticos nacionales.

4. La responsabilidade por acciones ilegales transfronterizas es um “assunto privado” que concierne a los afectados.

5. Todos los Estados son considerados iguales ante la ley: las disposiciones legales no toman em cuneta las asimetrías de poder.

6. Las diferencias entre los Estados son em última instancia resueltas por la violencia; predomina el princípio del poder efectivo. Prácticamente no existen frenos legales para contener el recurso e la fuerza; las normas legales internacionales garantizan mínima protección.

7. La minimización de las restricciones a la libertad del Estado es la “prioridad colectiva”.

Ocorre, porém, que o paradigma moderno da sociedade de Estados soberanos, sem autoridade superior, absolutos dentro de seu território, em que as disputas internacionais, caso ultrapassem a ideia de coexistência, podem ser resolvidas, não raramente, pelo incurso em violência não mais se sustentou no momento que os próprios Estados, responsáveis pelo zelo ao direito, vez que detentores do monopólio de sua produção e aplicação, tornaram-se seus violadores maiores, exatamente pelo uso da guerra.

Os dois pressupostos apontados como fulcrais à concepção de Estado-moderno, contudo, têm sofrido abalos sistemáticos e emblemáticos, os quais apontam à superação da soberania estatal quanto ao monopólio legislativo, bem como ao “fim da geografia”, enquanto território absoluto.

Importante traçar um parêntese, nesse momento, para elucidar ao leitor que a soberania aqui tratada refere-se à “soberania externa”, ou seja, a soberania entre diferentes Estados, no “estado de natureza” internacional, antes mencionado. A soberania dita “interna” já sofrera mitigações desde as revoluções inglesas, Francesa e da independência das colônias britânicas na América do Norte.

“A moderna soberania externa começa a declinar com a Carta de ONU, de 1945, e com a Declaração Universal dos Direitos do Homem, de 1948” (FORNASIER, 2014, p. 192). Tais declarações, que estabeleceram um sistema internacional de normas cogentes, afastam a proeminência do Estado como único sujeito na produção normativa e como sujeitos de direito internacional. Logo, o reconhecimento de uma ordem jurídica supraestatal, como a Declaração Universal dos Direitos do Homem, acaba com a lógica da ausência de autoridade superior ao Estado e, por consequência, mitiga a ideia de soberania.

De outra banda, o território “visto pela tradição jurídico-política como área de dominação estatal [...] ou estatal-nacional” (FORNASIER, 2014, p. 189) vê suas fronteiras serem irrompidas por um sem-fim de traços – sejam os traços das ferrovias; das rodovias; dos cabos de rede; ou, mesmo, pelas ondas de rádio e satélites. A globalização, por meio da economia, acabou com as barreiras territoriais, chegamos ao fim da geografia, segundo Paul Virilio.

Virilio, citado e traduzido por Fornasier (2014, p. 187) aponta que, ao invés do “Fim da História” declarado por Francis Fukuyama, nos encontramos em frente ao “Fim da Geografia”:

Na ausência de um fim da história é, pois, assim, ao final da geografia que estamos assistindo. Desde as velhas distâncias de tempo produzidas até a revolução nos transportes do século passado, o afastamento propício de várias empresas, em uma época da revolução das transmissões que começa em retorno contínuo das atividades humanas cria a invisível ameaça de um acidente desta interatividade generalizada, sendo uma quebra da bolsa um possível sintoma.

Importante notar como os tensionamentos se retroalimentam. A soberania é mitigada em razão do “fim da geografia”, uma vez que abre os territórios dos Estados à atuação de sujeitos não-estatais, sejam tais sujeitos empresas transnacionais, organismos internacionais ou organizações não governamentais. Já a geografia tem sua importância relativizada, os territórios são superados, quando a soberania é minorada, no momento em que deixa de inexistir uma autoridade superior ao Estado, ou seja, quando não há mais poder e autonomia absolutos. A geografia chega ao fim porque a soberania é minorada, e a soberania é minorada pelo “fim da geografia”.

Com efeito, as grandes corporações transnacionais entenderam, estrategicamente, esse declínio da importância da geografia e a crise da soberana estatal, que restou por “abrir” os territórios dos Estados aos agentes internacionais e ao mercado econômico global, bem como permitiu emergir poderes não-estatais advindos desse mercado. Poderes, estes, que têm rivalizado, frequentemente, com as constituições nacionais.

2 – O NOVO CONSTITUCIONALISMO CORPORATIVO TRANSNACIONAL.

            Apontamos, no item anterior, para uma abertura das fronteiras estatais e para a derrocada da soberania dos Estados, em razão do surgimento de um ordenamento internacional. Em conjunto aos ordenamentos internacionais, como a Declaração de 1948, há um processo de mundialização que tende a emersão de um direito comum. Esse processo, evidenciado por Mireille Delmas-Marty, tem como bússola os direitos humanos, mas é movido pela economia, ou seja, para tornar possível um direito mundial urge a necessidade de analisar a globalização econômica e a universalização do direito de forma conjunta.

            Delmas-Marty ressalva que a globalização, pela via econômica, tende à uniformização hegemônica de um modelo, enquanto os direitos humanos, mesmo com caráter universal, não possuem uma linguagem comum, face à diversidade cultural. Com isso, apresentar as tensões havidas entre economia e direitos humanos não deve ser o foco na construção de um direito mundial, mas, sim, reconhecer as interdependências existentes entre ambos.

            Entretanto, a economia evolui em uma velocidade que o direito – especialmente os direitos humanos - não consegue acompanhar, levando à perda da proeminência por parte dos Estados e a ascensão dos agentes da economia, o que permitiu a eclosão de novos poderes em nível internacional.

O empoderamento dos novos agentes transnacionais, fruto do enfraquecimento dos Estados enquanto atores principais no cenário internacional, tem apresentado dificuldades no que tange à regulação desses poderes em afloramento, seja pela resistência das corporações transnacionais, seja pela insuficiência de uma efetiva regulação pela via de tratados internacionais, que levou ao fracasso a maioria das tentativas de regramento.

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Não obstante as dificuldades de regulações estatais mais efetivas, Gunther Teubner ressalta que se visualiza um processo paralelo em crescimento, onde regimes transnacionais têm se espalhado de forma global, os chamados códigos voluntários de conduta das corporações transnacionais. Teubner adverte, contudo, quanto à voluntariedade das codificações, haja vista que seu surgimento está condicionado, geralmente, como resposta às críticas públicas.

A pesada crítica pública disseminada globalmente pela mídia e as ações agressivas de movimentos de protesto e de organizações não governamentais (ONGs) da sociedade civil forçam várias corporações transnacionais a desenvolver códigos corporativos “voluntariamente”. (TEUBNER, 2012, p. 110).

Há, portanto, dois tipos de códigos corporativos. Aqueles considerados públicos, ou seja, que são provenientes de tentativas estatais de regulação; e os privados, autocompromissos voluntários adotados pelas corporações. O objetivo do presente ponto é, exatamente, analisar esse novo fenômeno, que é o entrelaçamento, nas palavras de Teubner, entre os códigos corporativos privados e públicos, o que o autor, de forma ousada, denominou de “constitucionalização”.

Ambos os tipos de códigos corporativos tomados em conjunto representam o advento de constituições corporativas transnacionais específicas – concebidas como constituições no sentido específico. [...] esse argumento é baseado em um conceito de constituição que não está limitado ao Estado nacional e implica que também ordens sociais não estatais desenvolvam constituições autônomas sob circunstâncias históricas particulares. [...] o centro de constitucionalização desloca-se do sistema político para diferentes setores sociais, que produzem normas constitucionais de cunho civil-societário paralelamente às constituições de Estados nacionais. (TEUBNER, 2012, p. 111).

Importante, aqui, trazer a ressalva que Mateus de Oliveira Fornasier levantou, em sua Tese de Doutorado, ao analisar a pesquisa de Teubner e a ocorrência desse novo constitucionalismo sem Estado:

Não se pode prever que uma constitucionalização completa (superposição de um denso tecido de normas constitucionais ao processo político) será repetida nas constituições dos setores parciais. O conceito de constituição, quando cuidadosamente generalizado, deve ser desligado das particularidades do processo político, sendo reespecificado, repensado em termos de operações, estruturas, meios, códigos e programas específicos de cada sistema. (FORNASIER, 2013, p. 350).

Respeitando as teorias constitucionalistas estatais, bem como a pesquisa implementada por Teubner, convencionou-se, no presente artigo, tratar o tema do constitucionalismo societário como poderes corporativos e não, propriamente, como constituições civis, evitando, com isso, qualquer confusão ou desentendimento que possa ocasionar ao leitor.

Todavia, ainda que se afaste denominar esse fenômeno analisado por Teubner como constitucionalismo societário, é inegável que os poderes das corporações transnacionais ou, ainda, de instituições internacionais, têm afastado dos Estados o monopólio da produção normativa, confirmando a tese de Delmas-Marty, analisada anteriormente, sobre a emergência de um direito mundial e, mais, um direito mundial desvinculado do Estado-nação e/ou da política internacional.

Ordenamentos jurídicos transnacionais não são exclusividade da contemporaneidade, em absoluto, em que pese a globalização tenha derrubado algumas barreiras, como evidenciado no primeiro capítulo do presente projeto. Exemplo ancestral de normatização sem Estados é a lex mercatoria, em seu sentido histórico, direito costumeiro aplicado pelos mercadores durante o medievo.

A própria lex mercatoria supramencionada pode ser abordada, na atualidade, nas palavras da Marcelo Neves, citado por Fornasier (2013, p. 352) como:

Ordem jurídico-econômica mundial no âmbito do comércio internacional, cuja construção e reprodução ocorre primariamente mediante contratos e arbitragens decorrentes de comunicações e expectativas recíprocas estabilizadas normativamente entre atores privados.

Outros exemplos de juridicização transnacional são os ordenamentos jurídicos dos grupos multinacionais; a normatização do mercado laboral em relação às empresas e aos sindicatos; as normas supranacionais de padronização técnica e de autocontrole profissional; a defesa dos Direitos Humanos; mecanismos jurídicos de proteção ambiental; e as regulações esportivas de nível global.

Visualiza-se um processo de alteração, de inversão da hierarquia tradicional estabelecida entre as normas dos Estados e as normas transnacionais. Outrora, o Estado positivava o chamado hard law perante o direito empresarial e o direito regulatório, através de normas vinculantes estabelecendo, inclusive, sanções para os casos de descumprimento. Já as normas intracorporativas eram chamadas de soft law, não reconhecidas como normas legais, visto que dependentes de reconhecimento dos Estados e sujeitas ao controle e adaptação dos tribunais estatais.

Teubner (2012, p. 119), no entanto, assinala algumas mudanças significativas nos códigos privados das transnacionais, afastando-os da categoria de soft law:

Na dinâmica dos dois códigos corporativos uma direta inversão da hierarquia entre direito estatal e ordenamento privado pode ser observada. Uma reversão dramática tem lugar especialmente na dualidade hard law/soft law dos códigos corporativos públicos e privados: Agora são as normais estatais que apresentam a qualidade de “soft law”, enquanto o mero ordenamento privado de corporações transnacionais emerge como nova forma de “hard law”.

Enquanto as regulações dos Estados apresentam meras recomendações sem caráter vinculante, os códigos intracorporativos apresentam elevado grau de força vinculante e estabelecimento de sanções efetivas.

Ainda que se vislumbre a inversão hierárquica pontuada acima, tal concepção não alcança profundida suficiente, visto que a preferência do privado ante o público não é naturalmente hierarquizada. Segundo Teubner (2012, p. 120), é mais apropriado se falar em uma “exclusão do público pelo privado”. Ou seja, as normas estatais não estão em subordinação às de caráter privado, estão “banidas do interior da produção normativa no mundo corporativo”.

Nesse panorama, não se fala mais em um espaço unitário jurídico, havendo, de fato, dois espaços jurídicos independentes, mutuamente fechados. Logo, os códigos privados e públicos formam ordens jurídicas fechadas em que não há, entre elas, qualquer transferência de validade, ainda que se influenciem. Tratando-se de duas ordens mutuamente fechadas, como acontece, então, a inter-relação entre ambas?

Ao questionamento supra, Teubner leciona que a relação ocorrida entre diferentes ordens fechadas é melhor evidenciada com a diferenciação entre as definições de hiperciclo e ultraciclo.

Um hiperciclo surge quando operações comunicativas dentro de uma rede fechada formam ciclos que são, por sua vez, interligados de forma circular. Por contraste, um ultraciclo emerge quando um ciclo de perturbações mútuas é desenvolvido entre redes fechadas. (TEUBNER, 2012, p. 122).

Nesse sentido, os processos de interligação ocorridos dentro dos códigos corporativos privados têm origem hipercíclica, haja vista que as operações jurídicas cíclicas possuem conexões diretas no ambiente interorganizacional. Como exemplo de hiperciclo estão as conexões entre as organizações transnacionais com seus fornecedores e a relação de vendas.

De maneira completamente distinta da descrita acima, os códigos privados estão em conexão com os códigos públicos, porém, o modelo de hiperciclo proposto supra não se aplica nesse processo de conexão, mas, sim, o diálogo ultracíclico. Os códigos públicos somente estabelecem recomendações, são direito em vigor, todavia, sem estabelecimento de sanções jurídicas.

No panorama do diálogo ultracíclico transordinal, em que pese os códigos privados não sejam inteiramente independentes dos códigos públicos, os últimos não participam da unidade normativa dos códigos corporativos, razão pela qual não podem comandar ou suspender validade aos primeiros, ainda que possam motivar alterações, pelo processo de irritação entre ambos.

O presente trabalho, em sua parte final, se propõe a analisar a irritação entre redes fechadas, em processo ultracíclico, contudo, por um viés diferenciado. O interesse precípuo, aqui, é entender a possibilidade de que um código privado, notadamente o Estatuto da FIFA, e as pressões implementadas por esse poder transnacional, ao irritar-se com um ordenamento jurídico público impulsionam alterações internas, levando à normatização de situações que antes não eram previstas. E, mais, como se dá o processo de irritação quando o código privado guarda dissonância com o ordenamento público e se as alterações internas, de algum modo, relativizam a soberania do Estado.

Importante destacar, por derradeiro, que as irritações entre duas redes fechadas, no caso em tela entre o Estatuto da FIFA e suas normas e o ordenamento jurídico estatal brasileiro, ainda que sejam jurídicas, não se dá, exclusivamente, dentro do sistema do Direito. É justamente a pluralidade de sistemas que se irritam de forma mútua que forma o ultraciclo destacado. A economia, presente nos contratos entre a FIFA e seus parceiros comerciais, irrita a política (Governo brasileiro), lhe obrigando a propor alterações legais para tornar viáveis tais contratos internamente, irritando, com isso, o Direito, levando à produção de normatização e/ou alteração de normas internas, em consonância com as previsões normativas transnacionais da FIFA e de seus parceiros comerciais, por isso se fala em movimento ultracíclico intersistêmico, pela multiplicidade de sistemas em cadeia e, ainda, em diálogo ultracíclico transordinal, já que evidencia a relação entre diferentes ordens fechadas.

3 – A LEI GERAL DA COPA E A SOBERANIA DO ESTADO BRASILEIRO.

A FIFA, instituição internacional de direito privado, sediada em Zurique/Suíça, administra e gere subsidiárias espalhadas por todo o mundo, possuindo, ao todo, 209 países e/ou territórios associados, portanto, com mais membros do que a Organização das Nações Unidas. Importante mencionar que a FIFA reconhece autonomia de alguns territórios que não possuem o mesmo caráter perante a política internacional, casos de Hong Kong, Kosovo, Gibraltar e Palestina (não reconhecida por Israel).

            Com base na teoria de Teubner, proposta no ponto anterior, se pretende analisar como se deu a interação entre a FIFA e o Estado brasileiro, sob a ótica do diálogo transordinal ultracíclico, interação, esta, que desaguou na elaboração da Lei nº. 12.663/2012, denominada de Lei Geral da Copa, legislação responsável por integrar no ordenamento jurídico pátrio algumas determinações da Federação Internacional de Futebol. Nossa proposta procura caminhar, ainda, pela tese do transconstitucionalismo proposto pelo jurista brasileiro Marcelo Neves, no sentido do diálogo entre uma ordem estatal e outra transnacional, no intuito de identificar a possibilidade da ocorrência de corrupção dos sistemas envolvidos na relação transordinal, através da análise do processo de aprovação do Projeto de Lei nº. 2330/2011, que originou a Lei da Copa, bem como a Ação Direta de Inconstitucionalidade 4976, em que o Supremo Tribunal Federal entendeu pela constitucionalidade da referida norma legal.

            Como ponto primeiro no presente capítulo, nos interessa compreender o teor da ordem jurídica não-estatal da FIFA, através de seu Estatuto e pelos contratos firmados pelo ente internacional e seus parceiros comerciais. O Estatuto de FIFA. A ordem jurídica da FIFA é composta por uma série de documentos e acordos, os quais regem a atuação da instituição no âmbito civil, comercial, esportiva e, mesmo, penal, prevendo questões que, notadamente, extrapolam a via jurídica e possuem a característica de homogeneização de legislações no âmbito esportivo, especificamente quanto ao futebol, em todo o planeta.

            O artigo primeiro do Estatuto da FIFA prevê sua personalidade jurídica como associação registrada perante o Commercial Register de acordo com o art. 60 do Código Civil Suíço, destacando, assim, sua sede junto à metrópole Zurique, maior centro comercial daquele país e dos mais proeminentes na Europa. Parece-nos importante destacar, aqui, a previsão do artigo primeiro do Código de Conduta da FIFA, outro documento de importância destaca, o qual registra os valores que regem a Federação:

O Código de Conduta da FIFA define os valores e princípios mais importantes para o comportamento e conduta dentro FIFA, bem como com os parceiros externos. A observância dos princípios estabelecidos no Código de Conduta é essencial para a FIFA e os seus objectivos, em especial para proteger e melhorar o jogo de futebol constantemente e promovê-lo globalmente, à luz da sua unificação, e dos valores educativos, culturais e humanitários, particularmente através de programas de juventude e de desenvolvimento, além de prevenir quaisquer métodos ou práticas que possam colocar em risco a integridade de jogos ou competições ou dar origem a abusos do futebol associado. (tradução livre do autor)[1].

            O Estatuto define, ainda, em seu art. 21, e seguintes, quais os organismos que, conjuntamente, constituem o corpo da Federação. Como “órgão supremo e legislativo” está o Congresso da FIFA, realizado anualmente, em que cada Federação Nacional possui representação, através de seu presidente, bem como há os representantes das cinco Confederações continentais; o Comitê Executivo é o órgão executivo da FIFA, comandado pelo Presidente-Geral da entidade, escolhido pelo Congresso, possui vinte e cinco membros escolhidos entre os membros das Confederações continentais, de acordo com o número de associados de cada Confederação; o Secretariado-Geral é o órgão administrativo da FIFA; há, ainda, uma série de comitês permanentes ou ad-hoc, responsáveis por gerir áreas específicas dentro da Entidade, desde questões financeiras até mudanças nas regras do próprio esporte.

            Entre os comitês permanentes da FIFA, há três que formam o que o Estatuto, em seu art. 61, denomina de órgãos judiciais da Entidade, o Comitê Disciplinar; o Comitê de Ética e; o Comitê de Apelação. Os órgãos judiciais da FIFA são os responsáveis pela aplicação dos códigos de Ética e Disciplinar, podendo impor sanções aos atletas profissionais, Clubes, dirigentes dos clubes, agentes de atletas, desde suspensões e multas pecuniárias, até rebaixamento de clubes para divisões inferiores, cassação de títulos e, ainda, proibição de jogadores, agentes ou dirigentes de entrarem em estádios durante as partidas. A Entidade reconhece a jurisdição do Tribunal Arbitral do Esporte – TAS[2], sediado em Lausanne, na Suíça, como Corte Suprema para dirimir conflitos decididos pelos órgãos judiciais da FIFA. Com o reconhecimento da jurisdição do TAS como última instância a FIFA proíbe, de forma peremptória em seu Estatuto, o recurso à Justiça Comum nacional por parte dos clubes, jogadores ou dirigentes para assuntos ligados ao jogo do futebol (punições e suspensões impostas pela FIFA), exceto questões ligadas aos direitos trabalhistas, previdenciários e econômicos tratados entre as agremiações e os profissionais do esporte, existindo a possibilidade de que o clube que ingresse na Justiça Comum, ao invés dos órgãos judiciais da FIFA ou do TAS, seja punido com o rebaixamento no campeonato que dispute.

            Além dos instrumentos já mencionados, a atuação da Federação é regida por uma infinidade de termos e códigos atuando na seara esportiva, no sentido de regrar a prática do futebol, mas, também, na área econômica e política, uma vez que há documentos versando sobre os padrões de cooperação entre a FIFA e os Estados, bem como entre a FIFA e seus parceiros comerciais. Assim, o procedimento conjuntural de todos os regimentos da Entidade forma sua ordem jurídica, um ordenamento transnacional, portanto, sem Estado.

            Importa-nos entender, agora, em que momento acontece (e aconteceu) o diálogo entre a ordem da FIFA e o ordenamento jurídico brasileiro, duas ordens fechadas, no sentido de compreender se o ultraciclo transordinal ocorrido manteve a autopoiese de cada sistema ou é possível identificar corrupção sistêmica no acoplamento estrutural estabelecido.

            O diálogo entre as duas ordens fechadas se deu através da assinatura do Government Guarantees, em junho de 2007, entre o Governo brasileiro e a FIFA. O documento firmado entre Brasil e FIFA é espelhado no Standard Cooperation Agreement, normatização produzida pela Entidade como padrão para o regimento de seus acordos com as Nações, e prevê uma série de garantias e promessas do Governo brasileiro, assegurando, com isso, o papel do país como sede do Mundial para o ano de 2014. O Government Guarantees foi firmado pelo Presidente da República à época, Luiz Inácio Lula da Silva, e pelos Ministros de Estado dos Esportes; das Relações Exteriores; do Trabalho e Emprego; da Fazenda; do Desenvolvimento, Indústria e Comércio Exterior; da Cultura; da Ciência e Tecnologia; das Comunicações; da Justiça e; da Defesa.

            Além do Government Guarantees, de âmbito nacional, após o estabelecimento de quais cidades receberiam jogos durante a realização da competição, foram firmados os Host City Agreement, acordos entre a FIFA e cada uma das doze cidades-sede, no intuito de regular a atuação da Entidade de forma pormenorizada, no âmbito local.

            Entretanto, os Agreement’s entre FIFA, Estado-nação e os Municípios, espelhados na ordem jurídica da Instituição, possuíam previsões que colidiam com a ordem jurídica estabelecida no Brasil, tanto em relação à Constituição Federal quanto à legislação infraconstitucional. No intuito de internalizar as determinações dos acordos assinados com a Entidade, o Executivo nacional enviou à Câmara Federal o Projeto de Lei nº. 2330, apresentado em setembro de 2011, projeto este que foi transformado na Lei Ordinária nº. 12.663/2012, a Lei Geral da Copa.

            É, justamente, o supramencionado projeto de lei e, posteriormente, a própria legislação, o ponto nevrálgico que se tenta compreender no presente trabalho, haja vista que, notadamente, é o momento de convergência entre as duas ordens fechadas, uma transnacional e regida, claramente, pelas forças da economia internacional; e a outra nacional, estatal, dirigida sob a égide da Constituição e da garantia dos direitos fundamentais. Parece-nos cristalino o processo de irritação ultracíclico entre esporte, economia, política e direito estabelecido no processo de internalização de dispositivos de uma ordem jurídica não-estatal.

            O Projeto de Lei 2330/2011 tramitou no Congresso sob Regime de Urgência, situação prevista no art. 155 do Regimento Interno da Câmara dos Deputados para proposição que “verse sobre matéria de relevante e inadiável interesse nacional”. Aprovado nas Comissões designadas, entre elas a de Constituição e Justiça, em um dia, foi determinada a criação da Comissão Especial para exarar parecer sobre o projeto, o qual restou aprovado em Plenário em março de 2012 e enviado ao Senado Federal para revisão e, posteriormente, em maio do mesmo ano, remetido à Presidência para sanção. Publicada, então, em 05 de junho de 2012 a Lei nº. 12.663/2012, originada do referido projeto.

            Interessante analisar que o projeto que culminou na Lei Geral da Copa tramitou sob regime de urgência, ainda que não se vislumbre matéria de relevante e inadiável interesse nacional. Ademais, o Brasil remeteu à FIFA o Government Guarantees no ano de 2007, todavia, o projeto de lei para regulamentar a Copa do Mundo de 2014 somente chegou ao Congresso no ano de 2011, ou seja, com prazo, relativamente, exíguo para realização das obras de infraestrutura que um megaevento, como o Mundial de Futebol, demanda.

            Passamos, nesse interim, ao exame pormenorizado, ainda que não exaustivo, de alguns dispositivos presentes na Lei Geral da Copa, traçando um paralelo com os preceitos da Constituição Federal, bem como de outras leis infraconstitucionais, pincelando, posteriormente, sobre a ADI 4976, proposta pela Procuradoria-Geral da República.

            Primeiro ponto crítico, e que reflete a influência da economia, é a defesa do consumidor. O Código de Defesa do Consumidor, estabelecido pela Lei nº. 8.078/1990, é legislação vanguardista na proteção dos direitos do consumidor, atendendo preceitos fundamentais presentes na Constituição Federal, em seu art. 5º, inciso XXXII. Ainda no texto constitucional, no Título VII, que versa Da Ordem Econômica e Financeira, um dos princípios gerais a reger a atividade econômica é a defesa do consumidor (art. 170, inciso V).

A LGC, no seu Capítulo V, da Venda de Ingressos, possui uma série de dispositivos que afrontam ao princípio constitucional de defesa do consumidor, empoderando a FIFA para versar sobre assuntos exclusivos do Estado. O art. 27 do diploma legal conferiu à FIFA a definição dos critérios sobre a possibilidade, cancelamento, devolução e reembolso dos ingressos adquiridos, autorizando a Entidade à venda de ingressos, além da forma avulsa, em conjunto com pacotes turísticos e/ou de hospitalidade, bem como o estabelecimento de cláusula penal para os casos de desistência da aquisição, independente da forma. Tais dispositivos, cristalinamente, conflitam com a vedação de “venda casada” presente no art. 39, inciso I do CDC, ou seja, o condicionamento do fornecimento de um produto ou serviço ao fornecimento de outro produto ou serviço. No mesmo sentido, quando a LGC estabeleceu cláusula penal para os casos de desistência em qualquer forma de aquisição, cristalinamente, a previsão do art. 49 do CDC, que possibilita a desistência do consumidor no prazo de 07 dias para aquisições fora de estabelecimento comercial.

Ainda no paralelo entre Lei Geral da Copa e a proteção dos direitos dos consumidores, merecem destaque os artigos 25 e 26 do texto legal, outorgando à FIFA a competência para a determinação dos preços dos ingressos, divididos em quatro categorias, em ordem decrescente, onde a Categoria 1 representa a mais elevada. Em total desrespeito com as disposições presentes no Estatuto da Criança e do Adolescente, em consonância com o Código de Defesa do Consumidor e a Constituição Federal, somente houve previsão do desconto de 50%, a meia-entrada, para os ingressos da categoria 4, de pior localização nos estádios.

            O Capítulo II da LGC versa sobre a Proteção e Exploração de Direitos Comerciais da FIFA e seus parceiros, em especial a Seção I, trouxe previsões sobre a Proteção Especial aos Direitos de Propriedade Industrial Relacionados aos Eventos Copa do Mundo e Copa das Confederações. O referido capítulo promoveu o que se pode chamar de privatização e exclusividade da exploração comercial de símbolos nacionais, como a seleção nacional de futebol e, inclusive, os nomes das cidades-sedes, com o registro de mais de quatrocentos termos junto ao Instituto Nacional de Propriedade Intelectual. A seleção nacional de futebol, as cidades brasileiras, as formas de expressão através do futebol são patrimônios culturais brasileiros, protegidos pela Constituição Federal em seu art. 216, assim, atribuir exclusividade pela exploração comercial desses símbolos à um agente transnacional demonstra que a proeminência da economia tem se acentuado.

            Ainda no Capítulo II da LGC, a Seção II trouxe uma das maiores afrontas à soberania nacional e aos direitos fundamentais assegurados pela Constituição, com a previsão de criação de áreas restritas no perímetro de 2 quilômetros ao redor dos Locais Oficiais de Competição. Nessas zonas de exclusão a FIFA e seus parceiros comerciais detinham a exclusividade na divulgação, distribuição, venda, publicidade, propaganda de serviços e produtos relacionados ao comércio, mesmo o comércio de rua. Ou seja, essas zonas de exclusão vão de encontro às garantias do livre exercício de atividade profissional (art. 5º, inciso XIII e art. 6º, caput) e da livre locomoção (art. 5º, inciso XV) presentes na Constituição.

            Analisemos, agora, a Seção IV do Capítulo II conjuntamente com o Capítulo XVIII da LGC. A Secção IV do Capítulo, que compreende os artigos 16-18, estabelece Sanções Civis àqueles que obtivessem qualquer proveito com a Copa do Mundo sem autorização da FIFA. O Art. 16 possui o rol de atos passiveis de sanções civis, concernentes à qualquer tipo de publicidade realizada dentro das zonas de exclusão supramencionadas, inclusive publicidade aérea ou náutica, além da exibição pública das partidas ou o uso de ingressos para jogos como premiação de promoções daqueles que não eram parceiros comerciais da FIFA.

Além das sanções civis, a LGC versa sobre disposições penais, criando tipo penal inexistente no ordenamento jurídico pátrio, o marketing de emboscada por associação e marketing de emboscada por intrusão. Por marketing de emboscada se entende as tentativas de divulgação de marcas ou produtos em eventos que não são patrocinadores. Os artigos 32 e 33 da LGC estabeleceram pena de detenção de três meses a um ano, ou multa, para quem procedesse na tentativa ou realização de qualquer associação de suas marcas ou produtos à Copa do Mundo caso não fosse parceiro comercial da FIFA. Ambos os crimes são de Ação Penal Pública Condicionada à Representação, por força do art. 34, representação da FIFA, o que atenta contra a soberania do Estado brasileiro, haja vista que a Entidade transnacional é a única possível vítima dos referidos tipos penais, vez que o consumidor, atingido pela prática de marketing de emboscada e levado a consumir produto não patrocinador equivocadamente, não possui o direito à representação.

Tanto o estabelecimento de sanções civis, quanto às previsões de tipos penais inexistentes no ordenamento jurídico nacional, condicionados à representação exclusiva da FIFA afrontam disposições constitucionais. O art. 5º, inciso IX, da Constituição garante a livre expressão de atividade intelectual, artística, cientifica e de comunicação, independentemente de censura ou licença, na mesma esteira, o caput do art. 170 avaliza a livre iniciativa. Contudo, quando a LGC estipulou obrigação de indenizações à FIFA àqueles que, sem sua autorização, obtivesse qualquer proveito com a Copa do Mundo, bem como outorgou à Entidade a legitimidade exclusiva para representar criminalmente face às pessoas, físicas e jurídicas, pela incursão em tipos penais especialmente criados para o Evento, o direito se viu (quase que) absorvido pela economia, haja vista que tais previsões criaram reserva de mercado, publicidade e propaganda para a FIFA.

Da leitura dos Capítulos III e IV da LGC exsurge comprovação do quanto a soberania nacional foi relativizada durante a vigência da referida legislação. O art. 19 da Lei garante concessão sem qualquer restrição quanto à nacionalidade, raça ou credo, dos vistos de entrada no Brasil para todos os membros da delegação da FIFA, seus parceiros comerciais, funcionários, prestadores de serviços, clientes de seus serviços de hospitalidade e qualquer pessoa que possua ingresso para qualquer partida realizada durante a Copa do Mundo. Ou seja, tal dispositivo retirou da alfandega nacional competência para condicionar a concessão de vistos de entrada e permanência no território brasileiro, contradizendo o disposto na Lei nº. 6.815/1980, que sujeita a entrada de estrangeiros aos interesses nacionais.

            Na mesma seara, o art. 23 da LGC imputa à União a responsabilidade civil por quaisquer danos surgidos em função de qualquer incidente ou acidente de segurança relacionado ao Evento, afastando da FIFA a responsabilidade que lhe caberia. Ou seja, em total dissonância com a disposição constitucional presente no art. 23, inciso I que prevê a competência da União, e das demais unidades administrativas, no zelo e conservação do patrimônio público. Não suficiente, o art. 53 da LGR isenta a FIFA, suas subsidiárias, representantes legais, empregados e consultores do pagamento de custas processuais, violando manifestamente o principio da isonomia tributária, presente no art. 150, inciso II da Constituição Federal.

            Além das disposições supra, nos cabe mencionar que a LGC suprimiu alguns artigos presentes na Lei nº. 10.671/2003, o Estatuto do Torcedor, que em seu art. 13-A proíbe o ingresso em estádios portando bebidas alcoólicas, bem como sua venda nos locais de eventos esportivos. A motivação para a referida proibição levou em consideração o elevado número de conflitos motivados pelo uso indiscriminado do álcool nos dias de eventos esportivos, em especial o futebol. Contudo, a FIFA possui parceria comercial com a maior empresa fabricante de cervejas do mundo, sendo imperiosa a comercialização nos estádios durante o Evento, a ponto do Secretário-Geral da FIFA, o Sr. Jérôme Valcke tratar a questão como inegociável.

            O último ponto que nos interessa destacar e que demonstra que na LGC, enquanto forma de diálogo entre as ordens jurídicas da FIFA e do Estado brasileiro, a economia foi o sistema protuberante na relação ultracíclica é a disposição do art. 64 do diploma legal. Por força do referido artigo, os sistemas de ensino foram obrigados a ajustar seus calendários escolares, concedendo férias escolares aos alunos, nas redes pública e privada, durante o acontecimento da Copa do Mundo, em 2014. É cediço que as férias concedidas no mês de julho, no Brasil, não abrangem trinta dias, perfazendo lapso de quinze à vinte dias. Entretanto, no ano de 2014, em razão do acontecimento do Evento Copa do Mundo, as escolas brasileiras tiveram de dar férias aos seus alunos entre os dias 12 de junho e 13 de julho, contrariando a disposição constitucional presente no art. 205 que estabelece como dever do Estado a promoção e incentivo da educação no território nacional.

            Com base em todas as contrariedades à Constituição presentes na Lei Geral da Copa, a Procuradoria-Geral da República, órgão superior do Ministério Público nacional, ingressou com Ação Direta de Inconstitucionalidade dos dispositivos da referida lei, em maio de 2013, processo que tramitou no Supremo Tribunal Federal sob o nº. ADI 4976, e restou julgado improcedente pela Corte Superior brasileira, em maio de 2014, antes do acontecimento da Copa do Mundo. Merece destaque o controverso voto do Min. Luís Roberto Barroso, um dos mais reconhecidos constitucionalistas brasileiros e defensores do ativismo judicial, que ao proferir seu voto, pela constitucionalidade da LGC, aduziu descaber ao Supremo (Judiciário) ser juiz das decisões de conveniência e oportunidade tomadas pelos agentes públicos eleitos, já que a Lei fora aprovada pelo Congresso e sancionada pelo Executivo.

            Parece-nos oportuno, nesse momento, levantar algumas ideias do jurista brasileiro Marcelo Neves. Este, valendo-se da tese proposta por Niklas Luhmann, define acoplamentos estruturais como “mecanismos de interpenetrações concentradas e duradouras entre sistemas sociais” (2009, p. 37). Ou seja, mecanismos que

possibilitam o intercâmbio construtivo de experiências entre racionalidades parciais diversas, que, conforme o tipo e a singularidade dos respectivos sistemas ou discursos e de acordo com duas relações especificas, variará intensamente na forma e no conteúdo (NEVES, 2009, p. 38).

Percebendo os acoplamentos estruturais como uma forma de dois lados e se entendermos a Lei Geral da Copa como ponto dialogal entre as ordens fechadas da FIFA e do Brasil, é possível falarmos, depois da exposição dos conflitos entre a Lei e a Constituição nacional, no conceito de corrupção sistêmica que Marcelo Neves, na esteira de Luhmann, nos apresenta.

O lado negativo do acoplamento estrutural são os bloqueios recíprocos das autonomias sistêmicas mediante corrupção dos sistemas envolvidos. Aqui o código de um dos sistemas é sabotado pelo código de um outro sistema, de tal sorte que aquele perde sua capacidade de reprodução consistente. (2009, p. 42).

Na esteira da pesquisa científica de Marcelo Neves sobre o transconstitucionalismo, proposta de uma metodologia dialogal entre diferentes ordens jurídicas, a Lei Geral da Copa apresenta características de corrupção sistêmica, ainda que no plano operativo, vez que momentânea, já que a vigência da legislação cessou ao final da Copa do Mundo, e para alguns dispositivos ao final do ano de 2014. Assim, o diálogo entre as ordens jurídicas fechadas da FIFA e do Brasil ficou em um plano ideal, não alcançando o plano fático, o que pode gerar um precedente perigoso, não apenas à soberania do Estado brasileiro, mas no sentido de que a hegemonia de um sistema social, como a economia, possa tornar-se uma expansão imperial.

CONSIDERAÇÕES FINAIS.

            Passado mais de um ano após o acontecimento da Copa do Mundo no Brasil, o Evento segue gerando efeitos sobre a população brasileira e o Estado nacional.

            Os gastos e as dívidas contraídas para realização do Evento por alguns anos serão sentidos pelo Governo, em todas as esferas, e permearão os orçamentos da União, Estados e Municípios que receberam partidas durante a Copa do Mundo.

            Some-se aos gastos de elevada monta o abalo moral sofrido pela sociedade com a atuação da seleção nacional no torneio e, recentemente, o escândalo de corrupção e suborno na alta cúpula da FIFA, denominado FIFAGate, e a hipótese de corrupção sistêmica no processo de aprovação da Lei Geral da Copa, adaptação da ordem jurídica nacional em referência à ordem jurídica transnacional da FIFA, se torna sobressalente.

            Se a pós-modernidade é líquida, fluída e tempo onde as instituições abandonam seu estado de solidez, a ausência de metanarrativas, ou sua insuficiência, a proeminência de um sistema, seu empoderamento desordenado, pode gerar um precedente ameaçador, uma homogeneização que pode levar a economia de sistema hegemônico ao império do mercado global.

            Ainda que reconheçamos que as metanarrativas não mais respondem aos anseios da sociedade como outrora, a total ausência de instituições, como o Estado-nação, pode nos lançar em um limbo existencial, em que vagaremos do nada à lugar algum, deteriorando o humano, deixando a sociedade à mercê do mercado, da economia ou dos meios de mídia de massa.

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[1] The FIFA Code of Conduct defines the most important values and principles for behavior and conduct within FIFA as well as with external parties. The observance of the principles laid down in the Code of Conduct is essential to FIFA and its objectives, in particular to protect and improve the game of football constantly and promote it globally in the light of its unifying, educational, cultural and humanitarian values, particularly through youth and development programmes, and prevent any methods or practices which might jeopardise the integrity of matches or competitions or give rise to abuse of association football.

[2] CAS – Court of Arbitration for Sport na sigla em Inglês e Francês.

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