Já há alguns anos me debruço sobre o estudo da homoafetividade e seus efeitos jurídicos. Em 2005, escolhi a união homoafetiva como tema da minha monografia de conclusão de curso, tendo defendido o trabalho em 2006. De 2006 a 2009, escrevi inúmeros artigos sobre o tema e, finalmente, em 2010, defendi a minha dissertação de mestrado que deu origem ao livro “Homoafetividade e Direito”, que está caminhando para a 3ª edição. Nesses 10 anos, só observei avanços tanto no Brasil como no resto do mundo. A cada edição do livro ou novo artigo escrito, o progresso na matéria era visto sem qualquer esforço. Até ontem.
Aos poucos, o mundo ocidental está caminhando em direção à ideia do casamento e do exercício da parentalidade para todos, independentemente da orientação sexual ou modelo familiar. Ontem o Brasil deu um enorme e brutal passo atrás. Vivenciamos um dia de lamentável retrocesso com a aprovação na Comissão Especial criada para a análise do odioso “Estatuto da Família”, que exclui do conceito de família as entidades familiares formadas por pares do mesmo sexo. Em seu Art. 2º, estabelece que, “para os fins desta Lei, define-se entidade familiar como o núcleo social formado a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou união estável, ou ainda por comunidade formada por qualquer dos pais e seus descendentes”.[1]
Em 2015, o reconhecimento das uniões homoafetivas e o acesso ao instituto do casamento por casais do mesmo sexo ainda configura um aceso debate na agenda jurídica mundial. Essa celeuma, social e jurídica, está acesa em diversos países ocidentais, mormente na Oceania, nos Estados membros do Conselho da Europa e nas Américas do Norte e do Sul. Pouco a pouco, mais e mais lugares vão reconhecendo as uniões homoafetivas em âmbito nacional ou local, assim como a parentalidade dos indivíduos e casais homossexuais. A outro giro, ainda existe uma forte rejeição às uniões homoafetivas que causa surpresa, pois estamos vivendo em um tempo em que se promove a dessacralização do casamento, com um consequente aumento de uniões de fato e divórcios.
Em regra, essa oposição possui como fundamento e força motriz a religião. É, de modo incontroverso, o caso do Brasil. E a hostilidade à família homoafetiva não se cinge às ruas ou à sociedade. Há muito vem se infiltrando no Legislativo e desrespeitando, a olhos nus, a laicidade estatal. Note-se, entretanto, que a pregação bíblica, como amparo argumentativo, termina por vilipendiar a indispensabilidade do emprego da razão nas discussões públicas.
Tal ocorrência nada mais é do que a representação do pensamento e convicções morais de uma parcela da sociedade, orientados por dogmas religiosos, que terminam gerando reflexos (muitas vezes nefastos) no âmbito de políticas públicas e atividade legislativa. Foi exatamente esse o resultado da discussão e aprovação na respectiva Comissão Especial do malfadado “Estatuto da Família”, considerado por alguns dos Deputados que o aprovaram, um “projeto de Deus”.
É preciso encarar a questão da laicidade estatal em uma lógica que é consagrada até mesmo na Bíblia Sagrada: “Dai a César o que é de César e a Deus o que é de Deus” (Mc 12, 17). Portanto, é preciso desvincular a concessão ou regulamentação de direitos puramente civis e políticas públicas de doutrinas religiosas quando se está em um Estado Laico.
No atual cenário jurídico-político brasileiro, a tolerância e a proibição de discriminações de qualquer natureza, com base na liberdade, igualdade e dignidade da pessoa humana, são imperativos da Lei Maior. E a nossa Lei Maior é a Constituição da República Federativa do Brasil, não a Bíblia Sagrada. Será que estes mandamentos constitucionais, numa lógica de Estado laico, poderão ser desrespeitados sob argumentos religiosos pelos Césares pós-modernos dos Poder Legislativo?
Desde os primeiros momentos da República brasileira, pode-se dizer que os projetos legislativos estiveram à mercê de preceitos e dogmas religiosos através das pessoas dos legisladores, que com base em princípios clericais terminavam por evitar que o Direito avançasse. Desta forma, embora se estivesse em um país teoricamente laico, factualmente não era possível se verificar – como ainda hoje ocorre – uma genuína separação entre religiosidade e Estado. O “Estatuto da Família” surgiu no dia de ontem para provar que essa afirmação é verdadeira.
O julgamento do STF em 2011 sobre as uniões homoafetivas constituiu uma verdadeira ruptura de paradigmas, de consagração da igualdade, do pluralismo, da diversidade, da liberdade. Nunca é demais relembrar que a decisão da ADI 4277 e da ADPF 132 possui efeito vinculante e eficácia erga omnes. Ali, naquele dia, naquele momento, a Corte Maior do Brasil reconheceu – de forma unânime – as uniões homoafetivas como entidades familiares, em uma decisão que vincula todos os aplicadores das leis e operadores do Direito, assim com o legislador infraconstitucional. Naquele dia, toda e qualquer ideia de que uma união homoafetiva poderia não conformar uma entidade familiar foi dissipada.
Na ocasião do julgamento, o Poder Legislativo foi conclamado pelo então Presidente do STF, em seu voto, a imediatamente se manifestar sobre o assunto. 4 anos se passaram e o Legislativo repele o seu múnus de legislar. E esse aviltamento, relativamente à cidadania sexual e familiar da população LGBTI, termina por se traduzir em uma afronta axiomática à laicidade estatal, posto que essa letargia legislativa possui como sustentáculo cardinal a intolerância e o preconceito fundados em doutrina religiosa.
O dia de ontem representou não apenas uma afronta à laicidade, mas um desprezo à Constituição e ao Estado Democrático de Direito. O Congresso Nacional, por meio de legislação ordinária está a tentar confrontar essa decisão do STF com a edição de um Estatuto que restringe o seu conceito de família às uniões formadas entre homem e mulher, quando essa ideia já foi repelida pela nossa mais alta Corte e guardiã da Constituição.
Vivemos em tempos de Constitucionalização do Direito. Todo o ordenamento jurídico deve ser lido com o "óculos" da Constituição e não o revés, sob pena de contraversão das fontes do Direito. Assim, não se pode traçar a concepção constitucional com base na legislação ordinária, já que isso equivaleria a um erro metodológico grave, de inversão de hierarquia dos atos normativos.
A Constituição brasileira consagra uma proteção à família e não somente à família constituída pelo casamento (como nas Constituições anteriores) e muito menos apenas àquelas constituídas entre homem e mulher. A nossa Constituição Federal nem mesmo um conceito da casamento possui! O rol de entidades familiares do Art. 226 é exemplificativo e não numerus clausus. Em resumo: temos um conceito aberto de família ... E não nos esqueçamos dos princípios constitucionais da liberdade (aí incluída a liberdade de constituição de família), igualdade (aí incluída a igualdade das entidades familiares) e da não discriminação entre os nossos cidadãos por qualquer motivo (aí incluído por orientação sexual), como já referido.
Diante desse panorama, apenas uma ideia me vem à mente: engodo eleitoreiro.
Se esse Estatuto for aprovado, já sairá do seu berço maculado por flagrante inconstitucionalidade. Das duas uma: ou o STF determinará uma interpretação conforme à Constituição, de maneira que o dispositivo que restringe a noção de família às famílias heterossexuais será aplicado extensivamente às famílias homoafetivas (como foi o caso do Art. 1.723 do Código Civil) ou simplesmente declarará a inconstitucionalidade do artigo em causa e ele será um natimorto. Não há outra hipótese que não seja uma reformulação ou uma supressão do dispositivo. Com a redação atual, simplesmente não há como ele existir em nosso sistema jurídico. É flagrantemente inconstitucional.
Na hipótese de aprovação do “Estatuto da Família”[2], a inconstitucionalidade desse dispositivo será declarada e muitos políticos perderão discurso falacioso para angariar votos de fundamentalistas e conservadores. Terão que “mudar o disco” e arrumar outra leria para ludibriar os ínscios e desconhecedores do nosso ordenamento jurídico e da Constituição Federal ...
O dia ontem foi de involução, de emergência e elevação dos discursos conservadores pautados por dogmas religiosos, em nossa sociedade e em nosso Congresso Nacional. Mas o Estatuto ficará apenas na tentativa de retrocesso, pois enquanto houver neste país um Judiciário que reverencie e cumpra a Carta Magna e respeite a laicidade estatal, não há possibilidade que um abominoso dispositivo jurídico como aquele produza efeitos jurídicos.
Notas
[1] Grifos no original.
[2] Importa referir que 4 destaques ainda serão analisados, com intuito de dar uma redação compatível com o nosso ordenamento jurídico do dispositivo citado. Ainda há a hipótese de que parlamentares apresentem recurso para que o Estatuto vá ao Plenário da Câmara dos Deputados antes de ir para o Senado. Na hipótese de chegar e permanecer como está no Senado, ainda há possibilidade de veto presidencial. Mas, no pior dos cenários, tal dispositivo estará condenado à reformulação ou à morte no STF.