3. Desequilíbrio atuarial
Como se sabe, a Previdência Social brasileira organiza-se sob a forma de regime geral de caráter contributivo (art. 201 da CR/88). Isso significa, grosso modo, que aqueles que contribuem para o sistema de Previdência têm a garantia de cobertura, mormente mediante o recebimento de prestações pecuniárias, diante da ocorrência de alguma das contingências previamente determinadas pelo ordenamento jurídico.
Todavia, para que esse sistema funcione adequadamente e seja sustentável, deve ele ser balizado pelo princípio do equilíbrio financeiro e atuarial, de extração constitucional. Como explica Levi Rodrigues Vaz:
“Para que a Previdência Social Brasileira seja sólida, no presente e no futuro, e para que deixe de onerar a economia e cooperar com o aumento da desigualdade social existente no país, deve ser estruturada conforme o Princípio do Equilíbrio Financeiro e Atuarial instituído constitucionalmente.
O equilíbrio financeiro refere-se à equivalência entre o montante total arrecadado das contribuições previdenciárias e o montante total gasto em benefícios previdenciários em determinado exercício financeiro. O equilíbrio atuarial considera os custos para manter determinado benefício e os valores arrecadados através das contribuições do empregado e do empregador, sobre o rendimento do trabalho, para manter esse mesmo benefício” (VAZ, 2009).
Dito isso, já se vislumbra o outro problema gerado pela interpretação sedimentada na Súmula Vinculante n. 53. A sentença trabalhista que reconhece o vínculo de emprego terá, no mais das vezes, o condão de servir de início de prova material para fins de concessão de benefício previdenciário, independentemente do recolhimento das contribuições previdenciárias.
A Turma Nacional de Uniformização (TNU) dos Juizados Especiais Federal editou, ainda em 2006, a Súmula n. 31, no sentido de que a “anotação na CTPS decorrente de sentença trabalhista homologatória constitui início de prova material para fins previdenciários”.
A jurisprudência dominante, no entanto, tem exigido que, ao menos, a sentença proferida pelo Juízo Trabalhista tenha se lastreado em provas do efetivo exercício da atividade laborativa. Esse entendimento busca minimizar a ocorrência de conluios para fraudar a Previdência, como nos casos em que o empregador concorda em admitir fictícia prestação de serviço para que o suposto empregado se beneficie da cobertura previdenciária. Note-se:
“O STJ, por seu turno, vem admitindo que a sentença proferida pela Justiça do Trabalho é suficiente para o reconhecimento da atividade laboral, quando lastreada em provas da ocorrência da relação de emprego, mesmo quando o INSS não tenha participado do processo de conhecimento, especialmente quando há execução das contribuições incidentes sobre os salários de contribuição. Nesse sentido: STJ, AgRg no AREsp 147.454/DF, 2ª Turma, Rel. Min. Humberto Martins, DJe 15.05.2012”. (CASTRO, LAZZARI, 2015).
Essa exigência, diga-se, já era objeto de preocupação do C. STJ antes mesmo da edição da Súmula n. 31 da TNU:
“A sentença trabalhista será admitida como início de prova material, apta a comprovar o tempo de serviço, caso ela tenha sido fundada em elementos que evidenciem o labor exercido na função e o período alegado pelo trabalhador na ação previdenciária. Precedentes das Turma que compõem a Terceira Seção” (EREsp 616.242/RN, 3ª Seção, Rel. Min.ª Laurita Vaz, DJ 24/10/2005)
Aqui, em verdade, somam-se a um só tempo o apontado problema da irracionalidade da atuação estatal e o desequilíbrio financeiro e atuarial. Isso porque o tempo de serviço afirmado no processo trabalhista será aproveitado para fins de concessão de benefício previdenciário, v.g. aposentadoria por tempo de contribuição. Contudo, não se exigirá prova do recolhimento das correspondentes contribuições previdenciárias, sob o argumento de que a responsabilidade pelo pagamento era do empregador. Assim, o benefício previdenciário começará a ser pago sem contrapartida, gerando desequilíbrio financeiro e atuarial.
Além disso, como vimos, nada será cobrado do empregador nos autos do processo trabalhista, sob alegação de incompetência da Justiça do Trabalho. Eis o teor da Súmula Vinculante n. 53. Só com nova ação executiva, diante da Justiça Federal comum, é que o Estado poderá exercer a pretensão de recebimento de tais valores, e muitas vezes sem sucesso. O benefício previdenciário continuará sendo pago sem que, para tanto, tenham sido considerados previamente os seus custos e sem que tenham sido arrecadadas as contribuições do empregado e do empregador, sobre o rendimento do trabalho, para mantê-lo.
Conclusão
A análise empreendida, inobstante não tenha a pretensão de esgotamento dessa árdua questão, permite que se extraiam algumas conclusões, a seguir registradas topicamente para melhor sintetização:
a) a Súmula Vinculante n. 53 sedimentou a tese, contrario sensu, de que a Justiça do Trabalho é incompetente para executar as contribuições previdenciárias sobre os salários pagos durante o período contratual reconhecido;
b) os fundamentos que levaram à edição do entendimento vinculante não se sustentam juridicamente, se considerarmos que a sentença judicial que reconhece o vínculo empregatício tem natureza declaratória e condenatória. Ainda que desconsiderado o debate sobre a natureza da sentença, a competência para a execução das contribuições previdenciárias incidentes sobre os salários pagos decorre diretamente do inciso VIII do art. 114 da Constituição da República;
c) o texto sumulado gera problemas jurídicos e práticos. De um lado, leva à violação do princípio constitucional da eficiência administrativa (art. 37, CR), na medida em que exige a provocação, por duas vezes, da atuação do Estado-juiz a fim de se obter o mesmo resultado que poderia ser alcançado com a atuação exclusiva do juiz trabalhista. De outro, provoca desequilíbrio financeiro e atuarial, pois abre as portas para o pagamento de benefícios previdenciários sem contrapartida pecuniária;
d) a melhor solução para os problemas suscitados seria o cancelamento da Súmula Vinculante n. 53, retomando-se o entendimento de que a própria Justiça do Trabalho tem competência para executar as contribuições previdenciárias sobre os salários pagos durante o período de vínculo empregatício reconhecido, como, aliás, já havia sido previsto pelo Poder Legislativo, ao regulamentar o inciso VIII do art. 114 da Lei Maior com a edição da Lei nº 11.457, de 2007, que deu nova redação ao parágrafo único do art. 876 da CLT.
Referências
CASTRO, Carlos Alberto Pereira de, LAZZARI, João Batista. Manual de direito previdenciário. 17. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2015.
CHIOVENDA, José. Principios de Derecho Procesal Civil. Trad. espanõla de la tercera edición italiana: profesor José Casáis y Santaló. Madrid: Editorial Reus, 1922.
MARTINS, Sérgio Pinto. Execução da contribuição previdenciária na justiça do trabalho. 2 ed. São Paulo: Atlas 2004, p.35.
MONNERAT, Fábio Victor da Fonte. Competência da Justiça do Trabalho para executar as contribuições previdenciárias incidentes sobre os salários pagos durante o período de vínculo reconhecido em suas decisões. Revista da AGU. Ano VIII, nº 19, Jan./mar. 2009.
THEODORO JÚNIOR, Humberto. Curso de Direito Processual Civil: Teoria geral do direito processual civil e processo de conhecimento – vol. I. Rio de Janeiro: Forense, 2014.
VAZ, Levi Rodrigues. O princípio do equilíbrio financeiro e atuarial no sistema previdenciário brasileiro. Revista Direitos Fundamentais e Democracia. V. 6, ISSN 1982-0496, 2009.
WATANABE, Kazuo. Cognição no processo civil. 4. ed. rev. e atual. – São Paulo: Saraiva, 2012.