Símbolo do Jus.com.br Jus.com.br
Artigo Selo Verificado Destaque dos editores

Registro de filho alheio como próprio: até quando quiser ser o pai?

Agenda 20/02/2016 às 14:03

Quando se fala em não poder "desregistrar" uma criança depois de uma separação, não se trata de ser obrigado a cuidar do filho de outra pessoa, mas de se responsabilizar pelos próprios atos, no caso, o de ter registrado filho alheio como próprio.

Tenho notado uma certa frequência de pessoas perguntando sobre registro e "desregistro" de paternidade, e confesso que fiquei surpresa, pois, ainda que já tenha estudado sobre isso, a realidade tem seu peso.

O parentesco não precisa ser somente natural, conhecido como “de sangue”, portanto, um filho registrado / adotado é tão filho quanto um biológico[1]. Assim, o art. 227, § 6º, da Constituição Federal veda qualquer discriminação entre filho adotivo ou natural:

Art. 227. É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.

§ 6º Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.

Tudo começa com a união entre homem e mulher, sendo que esta tem um filho sem registro paternal. Então, o atual companheiro/marido resolve, de maneira voluntária, registrar a criança como próprio filho, às vezes, por boa intenção de formar família ou para provar para a companheira que está "assumindo tudo"; enfim, registra espontaneamente, mesmo tendo o conhecimento de que não é o pai biológico, aquele que forneceu seu material genético.

Entretanto, com o passar do tempo, ocorre algo pelo caminho que atrapalha o relacionamento (traição, desemprego etc.) e os dois se separam. Então, eis o grande problema: a criança ou adolescente passa a não mais ser considerado filho, pois o pai não quer mais ter obrigação de educar nem alimentar, muito menos quer dar suporte emocional/moral ao filho de outro homem!

Ou, por outro lado, o pai até pode ter a vontade, mas a mãe, magoada, não quer mais que aquele "cara estranho", que, até outro dia, era o melhor homem por ter assumido filho “alheio”, seja o pai do seu filho, afinal, ele "não é o pai de verdade"! Sim, a mãe também acaba tendo interesse em findar qualquer vínculo com o ex-companheiro.

Sabe-se que, salvo nos casos de perda de poder familiar previstos em lei, o pai que registrou a criança, tendo ciência da condição de não ser pai biológico, não pode alegar esse fato para tirar seu nome do registro.

Para que seja reconhecida a paternidade socioafetiva, é necessário que estejam presentes dois requisitos: a ausência de vício de conhecimento e que haja um relacionamento de pai e filho(a) entre eles e perante a sociedade.

Veja um julgado, para ilustrar, sobre negatória de paternidade quando o homem foi levado a erro, ou seja, a mulher com quem ele se relacionou havia afirmado que a criança era sua filha biológica:

Fique sempre informado com o Jus! Receba gratuitamente as atualizações jurídicas em sua caixa de entrada. Inscreva-se agora e não perca as novidades diárias essenciais!
Os boletins são gratuitos. Não enviamos spam. Privacidade Publique seus artigos

CIVIL. DIREITO DE FAMÍLIA. NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA. ASSUNÇÃO DA PATERNIDADE COM MULHER QUE O DECLARANTE MANTEVE RELACIONAMENTO. RECONHECIMENTO DE PATERNIDADE MEDIANTE ERRO. PATERNIDADE SÓCIO - AFETIVA. REQUISITOS. INEXISTÊNCIA. 1. DE CEDIÇO CONHECIMENTO QUE O ERRO É "UMA NOÇÃO INEXATA SOBRE UM OBJETO, QUE INFLUENCIA A FORMAÇÃO DA VONTADE DO DECLARANTE, QUE A EMITIRÁ DE MANEIRA DIVERSA DA QUE A MANIFESTARIA SE DELE TIVESSE CONHECIMENTO EXATO (...) 2. IN CASU, PRESENTE O ERRO EM QUE INCIDIU O REQUERENTE AO EMITIR, DE BOA FÉ A MAIS NÃO PODER, DECLARAÇÃO DE VONTADE CONSISTENTE EM RÉ CONHECER A PATERNIDADE DE UMA CRIANÇA QUE SUPUNHA SER SEU FILHO, POR HAVER CONFIADO NA GENITORA DO MENOR COM QUEM MANTEVE RELACIONAMENTO E QUE LHE FEZ ACREDITAR SER ELE O PAI BIOLÓGICO DO REQUERIDO. (...) 3.4 PARA QUE EXISTA A PATERNIDADE SÓCIO - AFETIVA, É NECESSÁRIO O PREENCHIMENTO DE DOIS REQUISITOS: A) INEXISTÊNCIA DE VÍCIO DE CONSENTIMENTO; B) QUE O PAI TRATE O FILHO COMO SEU, DE MODO A ASSIM SER HAVIDO EM SOCIEDADE. 4. NO CASO DOS AUTOS, O AUTOR FOI INDUZIDO EM ERRO; MANTINHA UM RELACIONAMENTO COM A MÃE DO MENOR, E POR ISSO ASSUMIU A PATERNIDADE, AINDA QUE COM DESCONFIANÇA. 4.1 A CRIANÇA CRESCEU E AS DIFERENÇAS EXTERNARAM-SE MAIS EVIDENTES TENDO ENTÃO O AUTOR RESOLVIDO COLOCAR UMA PÁ DE CAL SOBRE O ASSUNTO QUANDO ENTÃO REALIZOU EXAME DNA, CUJO RESULTADO JÁ ERA ESPERADO: NEGATIVO. (...) 2 - NÃO HÁ PATERNIDADE SÓCIO - AFETIVA SE O SUPOSTO PAI, ILUDIDO PELA MÃE, FEZ O REGISTRO DE NASCIMENTO DA CRIANÇA ACREDITANDO QUE ESSA ERA SUA FILHA, MÁXIME E SE INEXISTIU CONVIVÊNCIA POR TEMPO SUFICIENTE PARA QUE HAJA AFETO ENTRE O PAI E A CRIANÇA, DE FORMA QUE A FILHA, TRATADA COMO TAL, SEJA CRIADA E EDUCADA PELO PAI. 3 - OMISSIS. 4 - APELAÇÃO PROVIDA EM P ARTE."(TJDF, 6ª TURMA CÍVEL, APELAÇÃO CÍVEL Nº 2007015010145-8 APC DF, RELATOR DESEMBARGADOR JAIR SOARES, DJ 25/06/2008, PÁG. 82). 7. PRECEDENTE DO C. STJ. 7.1"DIREITO CIVIL. FAMÍLIA. RECURSO ESPECIAL. AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE. EXAME DE DNA. - TEM-SE COMO PERFEITAMENTE DEMONSTRADO O VÍCIO DE CONSENTIMENTO A QUE FOI LEVADO A INCORRER O SUPOSTO PAI, QUANDO INDUZIDO A ERRO AO PROCEDER AO REGISTRO DA CRIANÇA, ACREDITANDO SE TRATAR DE FILHO BIOLÓGICO. - A REALIZAÇÃO DO EXAME PELO MÉTODO DNA A COMPROVAR CIENTIFICAMENTE A INEXISTÊNCIA DO VÍNCULO GENÉTICO, CONFERE AO MARIDO A POSSIBILIDADE DE OBTER, POR MEIO DE AÇÃO NEGATÓRIA DE PATERNIDADE, A ANULAÇÃO DO REGISTRO OCORRIDO COM VÍCIO DE CONSENTIMENTO. - A REGRA EXPRESSA NO ART. 1.601 DO CC/02, ESTABELECE A IMPRESCRITIBILIDADE DA AÇÃO DO MARIDO DE CONTESTAR A PATERNIDADE DOS FILHOS NASCIDOS DE SUA MULHER, PARA AFASTAR A PRESUNÇÃO DA PATERNIDADE. - NÃO PODE PREVALECER A VERDADE FICTÍCIA QUANDO MACULADA PELA VERDADE REAL E INCONTESTÁVEL, CALCADA EM PROVA DE ROBUSTA CERTEZA, COMO É O EXAME GENÉTICO PELO MÉTODO DNA. - E MESMO CONSIDERANDO A PREVALÊNCIA DOS INTERESSES DA CRIANÇA QUE DEVE NORTEAR A CONDUÇÃO DO PROCESSO EM QUE SE DISCUTE DE UM LADO O DIREITO DO PAI DE NEGAR A PATERNIDADE EM RAZÃO DO ESTABELECIMENTO DA VERDADE BIOLÓGICA E, DE OUTRO, O DIREITO DA CRIANÇA DE TER PRESERVADO SEU ESTADO DE FILIAÇÃO, VERIFICA-SE QUE NÃO HÁ PREJUÍZO PARA ESTA, PORQUANTO À MENOR SOCORRE O DIREITO DE PERSEGUIR A VERDADE REAL EM AÇÃO INVESTIGATÓRIA DE PATERNIDADE, PARA VALER-SE, AÍ SIM, DO DIREITO INDISPONÍVEL DE RECONHECIMENTO DO ESTADO DE FILIAÇÃO E DAS CONSEQUÊNCIAS, INCLUSIVE MATERIAIS, DAÍ ADVINDAS. RECURSO ESPECIAL CONHECIDO E PROVIDO. RESP878954/RS, MINISTRA NANCY ANDRIGHI, DJ 28/05/2007 P. 339). 8. RECURSO CONHECIDO E PROVIDO. (TJ-DF - APL: 87599420088070003 DF 0008759-94.2008.807.0003, Relator: JOSÉ DIVINO DE OLIVEIRA, Data de Julgamento: 20/01/2010, 6ª Turma Cível, Data de Publicação: 10/03/2010, DJ-e Pág. 134).

A pergunta que deve ser feita é: “E a criança, como fica?”

Diante disso tudo, a criança, que deveria ser preservada dessa confusão amorosa, acaba sendo envolvida do começo ao fim, o que possivelmente lhe causará transtornos por um bom tempo da vida, senão pelo resto dela.

Como advogada, e, antes de qualquer coisa, humana, acredito que o caminho seja levar a pessoa a repensar, enxergar a situação toda e se colocar no lugar da criança, enxergar o vínculo que provavelmente tenha criado, principalmente como figura paterna que é projetada, a fim de evitar sequelas de um abandono afetivo, lembrando que o abandono material é resguardado pela lei, enquanto o afetivo é abstrato e relativo.

Dessa forma, pode ser que sejam amenizados os danos, uma vez que, apesar da impossibilidade de anular a paternidade nos casos citados anteriormente, a vontade de cessar o vínculo como pai continuará ali viva. Não se trata de ser obrigado a cuidar de um filho de outra pessoa, mas de se responsabilizar pelos próprios atos, no caso, o de ter registrado filho alheio como próprio.


Nota

[1] Código Civil/ 02 Art. 1.593. O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consangüinidade ou outra origem

Sobre a autora
Larissa Veras Prudente de Abreu

Advogada e conciliadora.<br>Pós- graduanda em Direito de Família e Sucessões

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ABREU, Larissa Veras Prudente. Registro de filho alheio como próprio: até quando quiser ser o pai?. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4616, 20 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46477. Acesso em: 28 abr. 2024.

Publique seus artigos Compartilhe conhecimento e ganhe reconhecimento. É fácil e rápido!