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Jurisdição constitucional e teoria da decisão.

As contribuições de Ronald Dworkin, Peter Häberle e Jürgen Habermas na democratização do debate constitucional

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Agenda 28/02/2016 às 15:03

3. DE UMA SOCIEDADE FECHADA PARA UMA SOCIEDADE ABERTA DOS INTÉRPRETES CONSTITUCIONAIS EM PETER HÄBERLE: NOVOS INTÉRPRETES SE APRESENTAM À CORTE

Peter Häberle apresenta grande contribuição à Hermenêutica Constitucional ao tratar de tema que até sua obra, conforme admoesta o próprio autor, não havia ainda recebido maior significado, “a questão relativa ao contexto sistemático em que se coloca [...] o problema relativo aos participantes da interpretação” (HABERLE, 1997, p. 11).

Segundo o autor, de regra a interpretação constitucional indaga acerca de duas questões fundamentais, a saber: a) sobre a tarefa e os objetivos da interpretação constitucional e; b) sobre os métodos de interpretação constitucional. O autor deseja trilhar uma terceira indagação: sobre os participantes da interpretação.

3.1         Apresentação da tese

O autor parte do entendimento de que a interpretação constitucional sempre esteve muito concentrada na atividade dos juízes e por isso seu âmbito de investigação se apresenta muito reduzido. Segundo o autor trata-se esta realidade de um modelo de interpretação de uma sociedade fechada.

Para o autor, “Se se considera que uma teoria da interpretação constitucional deve encarar seriamente o tema ‘Constituição e realidade constitucional’ [...] “então há de se perguntar, de forma mais decidida, sobre os agentes conformadores da ‘realidade constitucional’” (HÄBERLE, 1997, p.12).

O autor propõe então a seguinte tese:

no processo de interpretação constitucional estão potencialmente vinculados todos os órgãos estatais, todas as potências públicas, todos os cidadãos e grupos, não sendo possível estabelecer-se um elemento cerrado ou fixado com numerus clausus de intérpretes da Constituição. (HÄBERLE, 1997, p.13)

Para Peter Häberle, a interpretação constitucional é mais um elemento da sociedade aberta e assim deve passar a ser considerada. Para comprovar sua tese o autor pressupõe um conhecimento da interpretação pela forma que é tratada na atual compreensão de hermenêutica. Posteriormente, o autor apresenta sua sugestão de participantes do debate constitucional para, à guisa de resultado, apresentar a forma que entende procedimentalmente democrática a atuação de uma corte constitucional.

3.2         A teoria da interpretação em Peter Häberle

A teoria da interpretação em Peter Häberle, se apresenta certamente, já após a superação do paradigma sujeito-objeto. No seu entender “quem vive a norma acaba por interpretá-la ou pelo menos por co-interpretá-la” (HÄBERLE, 1997, p.13).

Para o autor, a norma não é uma decisão prévia simples e acabada. Ao contrário, afirma que a interpretação não é “um processo de passiva submissão [...] a vinculação se converte em liberdade na medida que se reconhece que a nova orientação hermenêutica consegue contrariar a ideologia da subsunção” (HÄBERLE, 1997, p.30).

Aqui também podemos colocar uma distinção que nos é fornecida pelo autor. A distinção entre intérpretes em sentido lato e interpretes em sentido estrito. Naqueles, se inserem os cidadãos, órgãos diversos, opinião pública, grupos etc; já entre os últimos é possível inserir os que na jurisdição constitucional têm a última palavra. Mas independente da posição que se insere na teoria interpretativa, todos são intérpretes.

3.3         Os participantes do processo de interpretação

Para o autor, o tratamento sobre os participantes de um processo de interpretação constitucional, deve ser analisado por uma ótica sempre provisória, tendo em vista que “o tempo, a esfera publica pluralista e a realidade” sempre apresentam problemas constitucionais ampliando as necessidades e possibilidades (HÄBERLE, 1997, p.19) de nova estruturação de participação.

Peter Häberle apresenta um catálogo sistemático de participantes como sugestão, dos que agora são chamados à composição do debate constitucional na teoria häberliana. Nesse sentido, o autor os distribui em quatro grupos, que englobariam: a) as funções estatais; b) os participantes nos processos de decisões estatais que não fazem parte do estado; c) a opinião pública democrática e; d) a doutrina constitucional.

Uma leitura detalhada dos participantes conforme previsto na teoria do autor certamente presta grande auxilio à exata compreensão do círculo dos intérpretes previsto na sua teoria e assim se apresenta:

as funções estatais:

a) na decisão vinculante (da Corte Constitucional): decisão vinculante que é relativizada mediante o instituto do voto vencido; b) nos órgãos estatais com o poder de decisão vinculante, submetidos, todavia, a um processo de revisão: jurisdição, órgão legislativo (submetido a controle em consonância com objetivo de atividade): órgão do Executivo, especialmente na (pré) formulação do interesse público;

(2) os participantes do processo de decisão nos casos 1a e 1b, que não são, necessariamente, órgãos do Estado, isto é: a) o requerente ou recorrente e o requerido ou recorrido, no recurso constitucional (Verfassungsbeschewerde), autor e réu, em uma, aqueles que justificam a sua pretensão e obrigam o Tribunal a tomar uma posição ou assumir um “diálogo jurídico” (“Rechtsgespräch”); b) outros participantes do processo, ou seja, aqueles que têm direito de manifestação ou de integração à lide, nos termos da Lei Orgânica da Corte Constitucional (v.g., §§ 77, 85, nº 225, 94, nº1 a 4, §§ 65, 82, nº2, 83, nº2, 94, nº5), ou que são, eventualmente, convocados pela própria Corte Constitucional (v.g., § 82, nº 4, da Lei do Bundesverfassungsgericht); c) pareceristas ou experts, tal como se verifica nas Comissões Especiais de Estudos ou de Investigação (§ 73, do Regimento Interno do parlamento Federal) d) peritos e representantes de interesses nas audiências públicas do parlamento (§ 73, nº 3, do Regimento Interno do Parlamento Federal alemão), peritos nos Tribunais, associações, partidos políticos (frações parlamentares), que atuam, sobretudo, mediante a “longa manus” da eleição de juízes; e) os grupos de pressão organizados (§ 10, do Regimento Interno do Governo Federal);

(3) a opinião pública democrática e pluralista e o processo político como grandes estimuladores: media (imprensa, rádio, televisão, que, em sentido estrito, não são participantes do processo, o jornalismo profissional, de um lado, a expectativa de leitores, as cartas de leitores, de outros, as iniciativas dos cidadãos, as associações, os partidos políticos fora do seu âmbito de atuação organizada (Cf. 2,d), das igrejas, teatros, editoras, as escolas da comunidade, os pedagogos, as associações de pais;

(4) cumpre esclarecer, ainda, o papel da doutrina constitucional nos nºs 1, 2 e 3; ela tem um papel especial por tematizar a participação de outras forças e, ao mesmo tempo, participar nos diversos níveis. (HÄBERLE, 1997, p.20).

Pelo catálogo apresentado, o autor entende ter logrado demonstrar que deve ter acesso à interpretação constitucional todas as forças da comunidade política.

Ainda dentro da perspectiva dos participantes da interpretação constitucional, e em vista da já apresentada distinção do autor quanto a intérpretes constitucionais em sentido lato e em sentido estrito, é importante salientar uma contribuição do autor para a prática da decisão de uma corte constitucional, que o distinguirá da postura adotada por outras compreensões de interpretação procedimental da constituição.

Para o autor, a despeito de o processo político ser um processo de comunicação de todos para com todos, deve-se ter cuidado para que sua abertura não provoque uma perda de autoridade na jurisdição constitucional. Assim, a difícil questão “sobre se e em que medida outros participantes, singular ou coletivamente considerados ou em grupos devem ser normativamente constitucionalizados” deve ser respondida de forma diferenciada.

Peter Häberle[4] entende que a ausência de “academical self-restraint” pode enfraquecer a força da corte, neste termos nos adverte o autor:

É verdade que o processo político é um processo de comunicação de todos para com todos, no qual a teoria constitucional deve tentar ser ouvida, encontrando um espaço próprio e assumindo sua função enquanto instância crítica. Porém, a ausência de (ein Zuwenig) de “academical self-restraint” pode levar a uma perda de autoridade. A teoria constitucional democrática aqui enunciada temtambém uma peculiar responsabilidade para a sociedade aberta dos intérpretes da Constituição. (HÄBERLE, 1997, p. 55)

Assim o autor cria, em contradição que é apenas aparente, certa restrição à abertura do debate constitucional travado na corte, quando considera necessário um saber especializado. Mas tal se passa apenas para atender sua exigência de participação efetiva (com a maior amplitude que se possa dar a esse termo) dentro das possibilidades dos trabalhos da própria corte. O que não quer dizer que ocorra um fechamento aos demais intérpretes, mas é sim uma possibilidade destes manifestarem sua interpretação de forma efetiva, ao tempo em que se mantém a autoridade necessária de jurisdição constitucional.

Nesse ponto é necessário indicar ainda, que a obra de Peter Häberle tem encontrado bastante ressonância na jurisdição constitucional brasileira, sendo a utilização dos institutos das Audiências Públicas e do Amicus Curiae, forte exemplo da democratização do debate constitucional pátrio na esteira dos estudos do autor.

3.4         Variação da intensidade do Controle de Constitucionalidade conforme a medida de participação dos diferentes grupos na interpretação constitucional

Um último item tratado pelo autor que não pode restar despercebido, em especial pela imensa contribuição que o proposto neste trabalho, é sua compreensão acerca da existência de uma certa gradação na intensidade do controle de constitucionalidade, conforme os casos que lhe são apresentados e os níveis de participação dos intérpretes nesse processo.

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Assim, para o autor, a jurisdição constitucional deve controlar a participação dos diferentes grupos na interpretação da Constituição de forma que sua decisão contemple todos os interesses envolvidos, ainda que não tenham participado do processo. Assim se manifesta:

Ademais, a Corte Constitucional deve controlar a participação leal (faire Beteiligung) dos diferentes grupos na interpretação da Constituição,de forma que, na sua decisão, se levem em conta, interpretativamente, os interesses daqueles que não participam do processo (interesses não representados ou não representáveis). [...] Um minus de efetiva participação deve levar um plus de controle constitucional. A intensidade do controle de constitucionalidade há de variar segundo as possíveis formas de participação. (HÄBERLE, 1997, p. 46)

Neste sentido, deve ser ressaltado que, na obra do autor, a intensidade do controle de constitucionalidade possui uma tarefa que varia conforme a realidade apresentada no caso e a depender da presença ou ausência de efetiva participação dos interesses envolvidos no processo.


4. O PAPEL E LEGITIMIDADE DA JURISDIÇÃO CONSTITUCIONAL NA TEORIA DO DISCURSO DE JÜRGEN HABERMAS: A CORTE NA DEFESA DO PROCESSO DEMOCRÁTICO

A teoria habermasiana do direito carrega em si toda uma carga de completude e complexidade oriunda da produção teórica construída ao longo vida de seu autor. Sua fundamentação percorre áreas da filosofia, da sociologia, da ciência política apenas para citar algumas das grandes contribuições do autor para a ciência contemporânea.

Sua teoria do direito, parte de uma reconstrução da sociedade por meio razão comunicativa, que na concepção do autor deve substituir a razão prática (HABERMAS, 2012, p. 19) não mais compatível com a filosofia contemporânea.

A concepção de jurisdição constitucional de Jürgen Habermas é tida como uma das mais representativas construções teóricas da democracia procedimental e indubitávelmente pode contribuir muito com uma teoria da decisão que preze pela democratização do debate constitucional.

4.1         A teoria do agir comunicativo, os subsistemas sociais e o mundo da vida.

Um dos momentos teóricos mais importantes da obra habermasiana se projeta em sua teoria da ação comunicativa.[5] Segundo a teoria, o conceito de agir comunicativo atribui às forças ilocucionárias da linguagem orientada ao entendimento a importante função de coordenar uma ação.

A exigência de uma ação orientada pelo entendimento é contexto imprescindível para a realização do agir comunicativo. Segundo o autor os atores (falantes e ouvintes) podem utilizar a linguagem para adotar dois tipos de enfoques: a) um enfoque objetivador (interessado no próprio sucesso); ou b) um enfoque performativo (dirigido ao entendimento).

A dicotomia de enfoques corresponde assim às concepções de razão pratica e razão comunicativa, àquela decorrente de um enfoque objetivador, e esta resultante de um enfoque performativo. Para o autor, apenas quando os participantes passam a adotar o enfoque dirigido ao entendimento é que é possível a mobilização das energias de ligação da linguagem para coordenação de planos de ação (HABERMAS, 2012, p. 36).

As concepções indicadas, também repercutem na forma de reprodução da teoria social habermasiana, conforme estruturas sociais que autor denomina de: a) os “sistemas”, caracterizados por uma ação instrumental (decorrente de um enfoque objetivador) e; b) o “mundo da vida”, caracterizado por uma ação comunicativa (decorrente de um enfoque dirigido ao entendimento).

Os sistemas são estruturas autônomas dirigidas por códigos e linguagens especiais. Eles decorrem da evolução histórica de uma “sociedade descentrada, diferenciada funcionalmente e que se compõem de muitos sistemas que tendem a se separar” (HABERMAS, 2012. p. 70) cujo esboço teórico fora levado ao extremo conforme teoria de Niklas Luhmann.

O mundo da vida na teoria de Jürgen Habermas (2012, p. 111) se constitui de “uma rede ramificada de ações comunicativas que se difundem em espaços sociais e épocas históricas” que se alimentam de tradições culturais, de ordens legítimas e da identidade de indivíduos socializados.

A prática comunicativa no mundo da vida é centrada na linguagem coloquial que circula em todos os domínios da sociedade permitindo traduções de todos os códigos. Por essa generalização, no entanto, paga-se o preço de permanecer em linguagem mais difusa, menos clara e com menor nível de diferenciação se comparado aos códigos especiais.

Nas sociedades complexas (para as quais o autor desenvolve sua teoria) identificam-se duas importantes estruturas integradas sistemicamente: o estado e a economia. Por outro lado, podem ser identificadas outras duas importantes estruturas integradas comunicativamente: a esfera da vida privada e a esfera da vida pública. Conforme anota Claudio Pereira de Souza Neto, assim sistemas e mundo da vida interagem:

A economia, ou subsistema econômico, interage com a esfera da vida privada por meio do trabalhador e do consumidor...[...]. Já a esfera pública possui relações de troca com o estado (subsistema administrativo). Tais relações são concretizadas pelo cidadão e pelo cliente. (SOUZA NETO 2012, p. 286)

Para o autor, tratando da teoria habermasiana no curso do processo de modernização os sistemas em sua relação com o mundo da vida acabaram por colonizá-lo por meio da burocratização levada a efeito pelo estado e da monetarização capitaneada pelo mercado.

Por essa colonização, os indivíduos deixam de se orientar pelo entendimento e passam a se orientar pelo sucesso. Estimula-se o consumismo e o individualismo na esfera da vida privada em substituição às relações familiares tradicionais. No âmbito da esfera publica, a política se reduz a um processo formal e burocratizado de obtenção eleitoral do poder político o qual substitui a formação espontânea da vontade comunicativamente formada (SOUZA NETO, 2002, p. 289).

No campo do direito, os reflexos dessa colonização do mundo da vida foram explicitados por meio do positivismo jurídico, onde o “direito normatizado não consegue assegurar-se dos fundamentos de sua legimitidade apenas através de uma legalidade que coloca à disposição dos destinatários enfoques e motivos” (HABERMAS, 2012, p. 54)

Como alternativa à colonização do mundo da vida acima indicado que deslegitima o direito, Jürgen Habermas propõe uma racionalização das pretensões normativas (não por meio de uma racionalidade monológica centrada no sujeito) por meio de uma de uma teoria do discurso mediada procedimentalmente, em um processo comunicativo que permita o assentimento geral em torno do melhor argumento.

Nesse contexto, ressalta outra importante contribuição do autor para a teoria democrática, a relação entre autonomia publica e privada enquanto possibilidade de legitimação do direito, onde se verifica ainda uma nova relação entre política e direito, conforme passa a expor.

4.2               Legitimidade, autonomia pública, autonomia privada na relação entre política e direito.

Para a adequada compreensão da relação entre política e direito na obra de Jurgen Habermas deve-se compreender a sua proposta que acaba por conciliar esferas aparentemente paradoxais e contraditórias de um sistema de direitos.

Para o autor, o sistema de direitos necessário para sua teoria do discurso deve fazer jus tanto à autonomia pública quanto à autonomia privada dos cidadãos. Devendo ser composto por direitos fundamentais que os cidadãos devem atribuir-se caso queiram regular sua convivência por um direito positivo legítimo.

Tais direitos (que são) fundamentais permitirão que se estabeleça um nexo entre direitos humanos e soberania do povo, ao tempo em que permitirão compreender a inexistência de um paradoxo no surgimento da legitimidade a partir de uma autolegislação, onde os que se encontram submetidos ao direito, na qualidade de destinatários, possam entender-se também como autores do direito.

No sistema de direitos proposto pelo autor o principio da democracia resulta da interligação entre o principio do discurso com a forma jurídica[6], tal interligação fornece os meios para que sejam introduzidos, de forma abstrata, certas categorias de direito fundamentais que determinam o código jurídico, vez que determinam o próprio status de pessoas de direito.

Tais categorias de direitos são classificadas pelo autor (HABERMAS, 2012, p. 158) da forma seguinte:

  1. Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do direito à maior medida possível de iguais liberdades subjetivas de ação;
  2. Direitos fundamentais que resultam da configuração politicamente autônoma do status de um membro numa associação voluntária de parceiros do direito;
  3. Direitos fundamentais que resultam imediatamente da possibilidade de postulação judicial de direito e da configuração politicamente autônoma da proteção jurídica individual;
  4. Direitos fundamentais à participação em igualdade de chances, em processos de formação da opinião e da vontade, nos quais os civis exercitam sua autonomia política e através dos quais eles criam direito legítimo;
  5. Direitos fundamentais a condições de vida garantidas social, técnica e ecológicamente, na medida em que isso for necessário para um aproveitamento em igualdade de chances, dos direitos elencados de “a” a “d”;

Tal proposta da teoria do discurso permitirá que, com base nos direitos elencados de “a” a “c”, a indicação dos direitos necessários a um sistema onde atores querem regular legitimamente sua convivência sob a forma jurídica.

Por meio do direito fundamental indicado no item “d”, os próprios cidadãos, através do assentimento dos participantes potencialmente atingidos, estabelecem seus direitos, não mais na forma abstrata indicada como pressuposta, mas em sua forma concreta e determinada (v. g liberdade, propriedade, cidadania, proibição de efeitos retroativos etc).

A partir de tal rol de direitos subjetivos acima referidos a relação entre direito e política se apresenta em seu nexo interno, na medida em que tais direitos só podem ser impostos por meio de organizações que tomam decisões com pretensão de obrigatoriedade.

Nesse sentido, o direito a iguais liberdades subjetivas de ação (item “a”) se apresenta nos direitos fundamentais que, enquanto direitos positivos, pressupõem o poder de sanção de uma organização que imponha respeito às normas jurídicas. Para essa finalidade surge o Estado como reserva de um poder militar que garante a obrigatoriedade das normas jurídicas.

Por outro lado o status de membro de uma associação voluntária de parceiros do direito (item “b”) pressupõe uma coletividade limitada no espaço e no tempo, para essa realidade é necessária uma instância autorizada que possa agir em nome do todo.

O direito à proteção jurídica individual (item “c”) pressupõe a existência de um tribunal organizado politicamente que proteja e desenvolva o direito nos casos em que ocorra litígio.

Por fim, acerca do direito à participação, em igualdade de chances, nos processo de formação da opinião e da vontade, é necessária a instauração de processos democráticos com o auxilio de um poder politicamente organizado. O próprio autor (HABERMAS, 2012, p. 171) sintetiza seu entendimento nos termos seguintes:

Em síntese: O Estado é necessário como poder de organização, de sanção e de execução, por que os direitos tem que ser implementados, por que a comunidade de direito necessita de uma jurisdição organizada e de uma força para estabilizar a identidade, e por que a formação da vontade política cria programas que tem que ser implementados. Tais aspectos não constituem meros complementos, funcionalmente necessários para o sistema de direitos, e, sim, implicações jurídicas objetivas, contidas in nuce nos direitos subjetivos. 

Dentro dessa análise é possível compreender como se apresenta o nexo funcional entre o código do direito e o código do poder. Nesse sentido, o código do direito e o código do poder possuem funções próprias e funções instrumentais reciprocamente verificadas, senão vejamos.

Graças à função instrumental do direito, a autoridade do Estado adquire competência de tomar decisões obrigatórias o que lhe permite realizar sua função própria de realizar fins coletivo.

Por outro lado, o direito depende do estado para uma institucionalização do direito que lhe permita atingir sua função própria de estabilizar expectativas de comportamento. Jurgen Habermas (2012, 182) apresenta-nos quadro explicativo que permite uma boa visualização desse nexo funcional entre código do direito e código do poder:

Funções

Códigos

Função própria

Função recíproca

Poder

Realização de fins coletivos

Institucionalização do direito por parte do Estado

Direito

Estabilização de expectativas de comportamento

Meios de    organização da dominação política

Mas a teoria habermasiana da relação entre direito e poder político não se resume a essa análise funcionalística. Tal compreensão apenas indica um direito absorvido completamente em sua contribuição para a constituição do código do poder e na realização de sua própria função.

Para o autor, no entanto, novamente lançando mão da mudança de estrutura das sociedades tradicionais para as sociedades complexas, “a profanização do poder, no inicio dos tempos modernos, revelou que a forma do direito, enquanto tal não é suficiente para a legitimação do exercício do poder” (HABERMAS, 2012, p. 184), é necessário que o direito funcione também como uma fonte de justiça para o poder político.

Nas sociedades tradicionais, tendo por base cosmovisões religiosas reconhecidas, o direito ocupava uma base sagrada totalmente subtraída ao poder humano. Até mesmo o detentor do poder político estava subordinado a esse direito natural. O direito positivo apoiava sua autoridade na legitimidade desse senhor e de sua interpretação de uma ordem jurídica dada preliminarmente.

Com a passagem para as sociedades complexas e a decomposição dessa cosmovisão religiosa obrigatória em forças de fé subjetivas, o direito deixa de ser indisponível ao ser humano perdendo ainda sua dignidade metafísica e, como consectário lógico, sua função legitimadora.

O direito torna-se dependente de um legislador político o qual poderia utilizá-lo de forma instrumentalizada para alcançar fins que não somente a justiça. Nesse ciírculo entre poder e direito “abriu-se uma brecha carente de legitimação, que o direito racional queria fechar, ou melhor, tinha que fechar, lançando mão da razão prática” (HABERMAS, 2012, p. 185). O autor assim resume o contexto:

A implosão da abóbada do direito sagrado deixou pra trás as ruínas de duas colunas a saber: a do direito instaurado politicamente e a do poder utilizável instrumentalmente; impunha-se a busca de um substituto racional para o direito sagrado, que se autorizava por si mesmo, capaz de recolocar a verdadeira  autoridade nas mãos do legislador político, entendido como um detentor do poder (HABERMAS, 2012, p. 185).

Partindo do conceito de uma autonomia política apoiada em uma teoria do discurso o autor, com arrimo em Hannah Arendt, coloca a legislação na dependência de um poder comunicativo, definido com um “poder que surge entre os homens quando agem em conjunto, desaparecendo tão logo eles se espalham” (HABERMAS, 2012, p. 186).

Na forma do modelo proposto, o direito e o poder comunicativo surgem cooriginariamente da “opinião em torno da qual muitos se uniram publicamente”.

Trata-se o poder comunicativo de noção muito cara na teoria habermasiana responsável pela formação legitima do direito. Em sua relação com o poder político o poder comunicativo é chamado a se apresentar como a fonte da justiça que faltava para que fosse fechada a brecha de legitimação aberta entre poder político e direito.

Segundo o autor, para Hannah Arendt o poder não é “como para Max Weber, a chance de impor, no âmbito de uma relação social, a sua própria vontade contra vontades opostas” é, ao contrário, a formação de uma vontade comum gerada em uma comunicação não coagida.

Nesse sentido o poder nasce da capacidade humana de agir ou de fazer algo em associação com outros e em afinação com eles, só podendo ser formado em esferas públicas por uma estrutura comunicativa não deformada, que se realiza por meio de uma intersubjetividade intacta.

Nessa relação entre poder comunicativo e político, o autor sugere que se considere o direito como um medium, através do qual o poder comunicativo se transforma em poder administrativo.

Por isso, sugiro que se considere o direito como medium através do qual o poder comunicativo se transforma em poder administrativo.

[...]

A idéia do Estado de direito pode ser interpretada então como a exigência de ligar o sistema administrativo, comandado pelo código do poder, ao poder comunicativo, estatuidor do direito, e de mantê-lo longe das influências do poder social, portanto da implantação fática de interesses privilegiados. (HABERMAS, 2012, p. 190).

Tal explanação permite-nos, compreender as linhas gerais em que são estabelecidas as relações entre direito e política na obra de Jürgen Habermas, principalmente em sua relação de interdependência e constituição onde, de modo procedimental-discursivo, o poder comunicativo concretiza o princípio pelo qual “todo poder político parte do povo” (HABERMAS, 2012, p. 173).

A compreensão da forma pela qual surge o poder comunicativo, também se mostra imprescindível ao presente trabalho, motivo pelo qual deve-se lançar mão de uma melhor conceituação de esfera pública, opinião pública e sociedade civil.

4.3               Esfera pública, sociedade civil e opinião publica na influenciação do poder oficial

Por esfera pública, entende Jürgen Habermas (2011, p.92) ser “uma rede adequada para a comunicação de conteúdos, tomadas de posição e opiniões”.  Do mesmo modo que o mundo da vida, a esfera pública se reproduz por meio do agir comunicativo e neste uma delimitação sua se constitui principalmente enquanto estrutura, não tendo haver com o espaço social criado, ou com as funções ou conteúdos.

As estruturas comunicacionais da esfera pública permitem também que seus participantes não sejam obrigados a tomar decisões, estas continuam como atividade de instituições com essa tarefa. Como resultados das manifestações dos participantes surgem opiniões que, enfeixadas através do nível de assentimento que recebem são transformadas em opinião pública, cuja qualidade é medida pela procedimentalização do processo de sua criação.

As opiniões públicas geradas são potenciais de influência que podem interferir nas corporações legislativas, nos governos, nos tribunais e no comportamento eleitoral das pessoas. A esfera pública consagra a luta por influência à qual participam grupos reconhecidos, especialistas, membros de igrejas entre os diversos atores e diversas organizações da sociedade civil.

A fim de preencher a função de tematizar os problemas da sociedade a esfera pública política deve-se formar por meio do contexto das pessoas virtualmente atingidas, vez que tais problemas surgirão mesmo da pressão social do sofrimento e injustiça mesma das experiências pessoais.

Por sociedade civil seu núcleo é constituído “por associações e organizações livres, não estatais e não econômicas, as quais ancoram as estruturas de comunicação da esfera pública nos componentes sociais do mundo da vida”. (HABERMAS, 2011, p. 100).

A sociedade civil se encontra protegida por direitos fundamentais (liberdade de opinião, associação etc) criando um nexo entre uma cidadania e uma esfera privada intacta. Tal proteção, todavia, não alcança defender a sociedade civil de deformações por agentes que tentar interferir na linguagem por meio de ações instrumentais, motivo pelo qual se mostra imprescindível, além de um contexto de cultura livre, um mundo da vida racionalizado (HABERMAS, 2011, p. 105).

Por fim, deve-se ressaltar uma limitação e uma vantagem da influência política da esfera pública. Como limitação, deve-se ter em mente que a imposição do poder partindo de discursos informais tem grandes obstáculos a transpor até infiltrar-se em uma legislação legítima, motivo pelo qual é necessário que sua influência também possa abranger deliberações que assumam a forma autorizada[7].

Nesse ponto se atinge, afirma Jürgen Habermas com arrimo em Maus, o núcleo procedimentalista do direito “pois a ‘combinação universal e a mediação recíproca entre a soberania do povo institucionalizado jurídicamente e a não institucionalizada’ são a chave para se entender a gênese democrática do direito.”(HABERMAS, 2011, p. 185).

Como vantagem da existência de uma esfera pública consciente de seu poder e atuante em seu exercício, deve ser ressaltada que esta, estando na periferia da política, possui maior sensibilidade e proximidade com os novos problemas podendo identificá-los antes que os centros da política. (HABERMAS, 2011, p. 105).

4.4               Democracia Deliberativa e Jurisdição Constitucional

A teoria procedimentalista habermasiana, conforme acima indicado, compreende uma relação interna entre autonomia privada e pública à qual possibilita a formação da vontade coletiva

Nesse ínterim, a especialização democrática do principio do discurso apresenta o procedimento como forma de garantir a produção de direito legítimo à medida que “todos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade de participantes de discursos racionais” (HABERMAS, 2012, p. 142) cuja pretensão normativa estaria vinculada à força do melhor argumento.

Por esse entendimento, e para que o melhor argumento realmente seja apresentado, é necessário que os mais diversos argumentos tenham possibilidade de chegar ao debate. Nessa ótica, o conceito de direitos individuais passa a ser não apenas compatível com a democracia, mas condição mesmo para sua manutenção, vez que sem ter seus direitos fundamentais protegidos não há possibilidade sequer de ser participante em discursos racionais.

A concepção da teoria do discurso e legitimação pelo procedimento democrático nessa visão se apresenta em Jürgen Habermas como modelo de democracia deliberativa e como alternativa aos modelos de democracia liberal e democracia republicana. Também o papel da jurisdição constitucional é assim analisado. O autor apresenta as distinções com cada um dos modelos democráticos e apresenta as vantagens de uma democracia deliberativa sobre ambos, ante a complexidade das sociedades atuais.

Acerca da jurisdição constitucional, e dentro de um contexto que seja possível adotar o modelo da democracia deliberativa, o autor apresenta inicialmente uma forte crítica a uma interpretação construtiva e arbitrária do direito, tendo como alvo a jurisprudência dos valores do Tribunal Constitucional Federal da Alemanha e a interpretação dos princípios sob a ótica de Robert Alexy.

Posteriormente, o autor apresenta sua concepção sobre qual o papel de um tribunal constitucional em uma democracia deliberativa, afirmando que o “tribunal constitucional deve proteger o sistema de direitos que possibilita a autonomia privada e pública dos cidadãos.” (HABERMAS, 2012, p. 326)

A autonomia pública e privada é, na opinião do autor, a justa medida da atuação da jurisdição constitucional. E aqui é apresentada sua resposta ao problema da vontade da maioria e sua relação com os direitos fundamentais.

Os direitos fundamentais se apresentam, em Jürgen Habermas, como condições de possibilidade de um processo democrático. É por isso que sequer a vontade da maioria pode interferir nesses direitos sob o risco de comprometer a própria democracia.

E assim se quebra o aparente paradoxo onde o tribunal constitucional, mesmo restringindo a vontade de uma maioria eleita (ou não), continua defensor da democracia mesma, pois, na proteção dos direitos fundamentais, é que se encontra a possibilidade da democracia deliberativa.

Em Jürgen Habermas, a função de um tribunal constitucional passa a ser a de proteger um processo deliberativo e a própria democracia, podendo, no exercício dessa função, restringir o poder majoritário atuando pela proteção dos direitos fundamentais.

Sobre o autor
Matheus Souza Galdino

Pós-graduado em Direito do Estado pela Faculdade Baiana de Direito. Graduado em Direito pela Universidade Estadual de Santa Cruz – UESC. Aprovado nos concursos para ingresso nos cargos de Procurador do Estado do Piaui (2015), Procurador do Municipio de Salvador-Ba (2016, aguardando convocação para a fase de títulos) e Procurador do Municipio de Nossa Senhora do Socorro - Se (2014). Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

GALDINO, Matheus Souza Galdino. Jurisdição constitucional e teoria da decisão.: As contribuições de Ronald Dworkin, Peter Häberle e Jürgen Habermas na democratização do debate constitucional. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4624, 28 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/46694. Acesso em: 2 nov. 2024.

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