O Conselho Nacional de Justiça aprovou no último dia 16 de fevereiro a Resolução nº. 217, adotando várias medidas no sentido de impedir o vazamento seletivo de informações sigilosas constantes nos autos de investigações criminais.
A nova Resolução altera regras do próprio Conselho relativas à quebra de sigilo e interceptação telefônica e de endereços eletrônicos, passando a estabelecer a obrigatoriedade da requisição por parte do Juiz para instauração de investigação a respeito da quebra do sigilo, sob pena de responsabilização do Magistrado.
De acordo com os novos dispositivos, o Poder Judiciário é responsável por apurar a divulgação de informações sigilosas por qualquer um dos envolvidos em quaisquer ações que corram em segredo de Justiça, ainda que os vazamentos tenham partido do Ministério Público e da Autoridade Policial. O texto, praticamente repetindo os termos da Lei de Interceptações Telefônicas, estabelece obrigações ao Juiz que ordenar a quebra de sigilo ou que mandar interceptar o telefone de investigados e acusados, determinando ao Magistrado que consigne, na decisão, os indícios de autoria do crime, as diligências feitas antes do pedido de quebra de sigilo ou da interceptação e os motivos pelos quais não seria possível obter a prova por outros meios.
Também está obrigado a indicar o nome dos policiais e membros do Ministério Público responsáveis pela investigação, bem como dos servidores, peritos, tradutores, escrivães e demais técnicos que tenham acesso a ela.
O procedimento em que foi discutida a nova Resolução foi aberto pelo Presidente do Conselho Nacional de Justiça, Ministro Ricardo Lewandowski, a pedido do Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (Processo 0000467-47.2016.2.00.0000).
Lamentavelmente foi preciso uma Resolução do Conselho Nacional de Justiça para tentar coibir uma prática criminosa que se propaga em nosso País, em que atores estatais proativos estão, muitas vezes, a serviço de determinada parte da imprensa para atacar a reputação alheia e não para trabalhar e fazer jus ao salário que recebem do Estado.
Atores processuais que imaginam, ingenuamente (ou não), estar em uma cruzada pelo bem contra o mal, sem perceberem que fazem parte de um sistema (jurídico) incapaz de gerir as mazelas próprias de outros sistemas (econômico e político). Aqui, na verdade, há um misto de arrogância, oportunismo e infantilismo (no sentido em que Freud escrevia sobre a religião, tratando-a como uma ilusão).
Esquecem da cláusula da inviolabilidade da intimidade, da vida privada, da honra e da imagem das pessoas, tal como assegurado no art. 5º., X da Constituição e no art. 13 da Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica).
Como já escrevi em outra oportunidade, tornou-se lugar comum a publicação na imprensa de trechos de delações premiadas que deveriam estar, por força de lei, sob absoluto sigilo nos autos da investigação criminal, partes de depoimentos de testemunhas, de interrogatórios de indiciados, fragmentos de interceptações telefônicas e escutas ambientais também cobertas pelo sigilo. E sempre material seletivamente fornecido pelos órgãos do Estado que têm a guarda dos documentos. Isso é fato. Réus (mais) pobres e ricos. Brancos e (mais) negros. Incluídos e (mais) excluídos.
E há algo ainda mais grave. Se tais fatos não fossem um agravo absurdo do ponto de vista da vida privada e da intimidade da pessoa (que na esmagadora maioria das vezes ainda nem foi julgada), o prejuízo do ponto de vista processual é imenso, incomensurável, pois esta exposição midiática põe e expõe o julgador (e também o acusador) em uma situação de pressão junto à opinião pública da qual dificilmente ele se libertará corajosamente. O ato de acusar e o de julgar já estão viciados, contaminados pela pressão da mídia, pelo fato noticiado, pela capa da revista, pela manchete do jornal, pelos comentários dos amigos, enfim...
Ao final e ao cabo, condena-se não em razão das provas, mas em virtude das evidências noticiadas. A condenação impõe-se, não porque o Direito assim o exige, mas porque é preciso que o leitor e o telespectador tenham uma resposta (de preferência rápida, daí a razão das prisões provisórias infindas) acerca da informação dada, pois não é possível que depois de tantos fatos postos, tantas fotos postadas, não haja uma sentença dada, um castigo imposto!
Não dá para admitir que trechos de uma delação premiada documentada em autos de uma investigação criminal esteja no dia seguinte estampada em uma folha de um jornal de circulação nacional ou em telejornal de grande audiência. Diga-se o mesmo em relação às interceptações telefônicas ou escutas ambientais. Não é possível! É óbvio que isso gera um sentimento negativo que seguramente implicará, também negativamente, no momento de se fazer o juízo de acusação e, mais tarde, o juízo de condenação. Não, não é chegada a hora. Já passou o momento de repensarmos este modo de atuar. Nós que fazemos parte desta engrenagem chamada Justiça criminal: integrantes da Polícia, do Ministério Público, Magistrados e todos os outros.
Nós estamos lidando com gente e não estamos mais no século XVIII, quando “o povo reivindicava seu direito de constatar o suplício e quem era supliciado”, pois o “condenado era oferecido aos insultos, às vezes aos ataques dos espectadores.” Afinal de contas, “as pessoas não só tinham que saber, mas também ver com seus próprios olhos. Porque era necessário que tivessem medo; mas também porque deviam ser testemunhas e garantias da punição, e porque até certo ponto deviam tomar parte nela. Ser testemunhas era um direito que eles tinham e reivindicavam; um suplício escondido é um suplício de privilegiado, e muitas vezes suspeitava-se que não se realizasse em toda a sua severidade. Todos protestavam quando no último instante se retirava a vítima aos olhares dos espectadores.” Tudo muito parecido com o momento atual, só que este é um relato de Michel Foucault, da França, do século XVIII (Vigiar e Punir – História da Violência nas Prisões, Petrópolis: Vozes, 1998, p. 49).