Na Idade Média, Index Librorum Prohibitorum, consistia num catálogo de livros apontados pela Igreja Católica como proibidos de acesso, fornecimento e leitura à sociedade. Após muitos séculos de inquisição, o Brasil volta a adotar práticas similares, claro, sempre da forma mais travestida de institucionalidade possível, nos limites pretensos de uma legalidade mais próxima da moral do que da própria lei. Entram na lista brasileira biografias de políticos e, entre outras obras, a mais recente: o “Mein Kampf” (Minha Luta, traduzido), livro que foi a bíblia do nazismo, de autoria de Adolf Hitler. (http://www.conjur.com.br/2016-fev-03/justica-rio-proibe-livrarias-vender-livro-adolf-hitler)
A proibição se deu a pedido do Ministério Público e foi atendida, em primeiro grau, pelo juiz Alberto Salomão Junior, sob o pretexto jurídico de que a “venda de livros que veiculam ideias nazistas ferem gravemente a ordem pública, pois afronta a norma penal insculpida no artigo 20, parágrafo 2º, da Lei 77168/89. Dessa forma, estão demonstrados o fumus boni iuris e o periculum in mora. O primeiro, na própria demonstração da existência da obra que apregoa o nazismo; o segundo, considerando a urgência em evitar a disseminação do livro com ideias contrárias aos direitos humanos, que é fundamento e objetivo fundamental da República Federativa do Brasil".
A polêmica vem à tona porque a obra de Hitler “caiu em domínio público”, isto é, faz parte daquele conjunto de obras sobre os quais não existem mais a proteção inerente dos direitos autorais, podendo ser usada agora pela sociedade independente de licença dos autores da obra, seus sucessores ou detentores de tais direitos. Sendo assim, a proibição do livro não é uma questão patrimonial de direito autoral, mas uma restrição estatal fundamentada numa suposta proteção coletiva de direitos contra uma exposição e incitação ao crime.
Por mais que a decisão cite famigerado precedente do STF, não se mostra razoável identificar o julgamento à questão do livro nazista, mesmo porque não se está falando numa obra publicada neste momento para fins de lucro. A obra foi produzida há décadas e, verdade se diga, tinha mesmo como objetivo a propagação de uma conduta intolerável de discriminação e violação aos direitos humanos, hoje assim reconhecidos.
Todavia, a proibição esquece alguns detalhes peculiares da obra. A primeira é a de que mais do que mero culto ao nazismo, a obra de Hitler, em virtude mesmo das consequências fáticas da tentativa de concretização teórica, tal como se pode ver na 2ª Guerra Mundial, faz da obra um documento de cunho nitidamente histórico. Não é uma leitura apenas por prazer que se pode extrair da obra, mas uma chance analítica de observar um documento que levou milhares de pessoas a seguir um entendimento assassino e discriminatório. E a pesquisa também envolve avaliar as raízes dos piores males da civilização humana.
E, embora muito se diga sobre o mal do nazismo, do fascismo e suas correntes similares, pouco se sabe sobre as razões de sua criação, proliferação e força de propagação. Leandro Konder adverte que “até hoje, não conseguiram elaborar nenhuma interpretação coerente e digna de discussão das origens do fascismo” (2009, p. 125). Nessa vã tentativa de compreender o mal que se assolou há décadas, temos falhado miseravelmente como sociedade apta a combater o nazismo e o fascismo, haja vista que tais correntes se mostram até hoje vivas e ferozes em diversas partes do globo, inclusive no Brasil.
O grande problema do combate desse e de qualquer outro entendimento pernicioso à paz pode ser demonstrado na fala de Yves Michaud (1989, p. 62): “tentamos o tempo inteiro controlar situações das quais não conhecemos todos os fatores e utilizamos meios que não conhecemos nem dominamos completamente”.
Correntes como o nazismo não se apagarão da história até que compreendamos seu aparecimento. E essa pesquisa envolve analisar tudo que temos disponíveis sobre tal execração – incluindo aí a obra aqui mencionada.
Mas se o fator pesquisa ou riqueza do material em valor histórico não for suficiente, o problema da restrição do livro talvez esteja com você, caro leitor. Sim, porque a proibição se deu para proteger os valores da sociedade, de forma a afastar a propagação das ideias da obra de sua leitura.
Ao fazer isso, em outras palavras, o Estado disse que o leitor não tem capacidade para ler a referida obra e permanecer ileso às ideias ali difundidas.
“Sociedade de mente fraca”?
Convenhamos que se o risco está no mal que a leitura da obra pode provocar, de modo que é necessário restringir uma obra para proteger a coletividade, somos forçados a concluir que um leitor que, desavisadamente leia o livro hitleriano e aceite tais ideias como concebíveis e dignas de serem seguidas, não foi de modo algum vítima da magia das palavras. O problema está no leitor, e, talvez, sempre esteve, implantada numa semente de ódio recrudescido que encontrou no livro a água para brotar sua manifestação discriminatória.
Ora, se leio um livro de Agatha Christie (adorável autora), não sou movido pela sanha homicida de matar meus rivais porque o vilão da história assim o fez. Não há mal na exposição de violência contida na obra de suspense desta maravilhosa autora. O problema da exposição está exatamente no leitor. Assim, a atuação judicial de restrição da obra se aproxima a uma tutela para loucos, incapazes, pessoas sem discernimento para avaliar um documento histórico, sob risco de sermos influenciados a marchar para um novo Holocausto.
A decisão é mais do que lamentável. É uma ofensa ao seu juízo. E isso quem diz é Ronald Dworkin ao afirmar que “o Estado insulta os seus cidadãos e nega a eles responsabilidade moral, quando decreta que não se pode confiar neles para ouvir opiniões que possam persuadi-los a adotar convicções perigosas ou ofensivas”.
Se alguém quer mesmo proteger o juízo de valor da coletividade, o melhor é que se dê educação qualificada aos cidadãos para que exerçam, por si sós, sua avaliação pessoal diante da exposição de determinado dado ou narração de violência.
Mas educação é cara demais. Mais barata parece ser uma decisão de gabinete judicial, redigida em um confortável ambiente climatizado, estofado e ao custo de alguns milhares de reais (somados a outros auxílios, como o de moradia, afinal, o salário às vezes não dá conta de uma casa digna).
Mas e a sociedade? Ah, esta é formada de cidadãos que trabalham sob um sol ardente para ganhar um salário que sequer supre suas necessidades. Se o sol não queimar os juízos desses cidadãos, as contas do final do mês provavelmente se encarregarão de enlouquecê-los. Talvez por isso necessitem mesmo de uma tutela sobre aquilo que leem. Com uma educação tão atabalhoada e a mente ocupada da rotina escrava, é melhor ressuscitar o Index Librorum Prohibitorum brasiliens.
Amém (?)
REFERÊNCIAS
DWORKIN, Ronald. O direito de liberdade: a leitura moral da Constituição americana. Trad. Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2006, p. 319.
KONDER, L. Introdução ao Fascismo. São Paulo: Editora Expressão Popular, 2009.
MICHAUD, Y. A violência. Trad. L. Garcia. São Paulo: Editora Ática, 1989.