Introdução
O presente trabalho científico tem como tema a ação penal nos crimes de lesão corporal de natureza leve e culposa, praticada no contexto da Lei Maria da Penha (Lei nº 11.340/2006).
Sendo assim, alguns questionamentos nortearão este trabalho, sendo eles:
- A lesão corporal leve ou culposa, praticada no contexto da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), aplica-se o disposto no artigo 88 da Lei nº 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais)?
- Qual a natureza da ação penal concernente à lesão corporal leve ou culposa praticada no contexto da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha)?
A grande celeuma acerca do tema surgiu ao confrontar alguns dispositivos da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) com outros da Lei nº 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais Criminais), pois a Lei Maria da Penha, em seu artigo 41, prevê que a Lei 9.099/1995 não se aplica aos crimes praticados no contexto da violência doméstica e familiar contra a mulher. Já o artigo 88 da Lei nº 9.099/1995, versa que as lesões corporais leves ou culposas dependerão de representação, ou seja, a ação penal será de natureza pública condicionada à representação. Por isso, era grande a dúvida se a ação penal nesses casos seria pública condicionada à representação ou ação pública incondicionada.
O assunto foi amplamente discutido, tendo entendimentos diversos tanto na doutrina, quanto na jurisprudência. O tema foi levado ao Supremo Tribunal Federal, através da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 4.424/DF e da ADC (Ação Direta de Constitucionalidade) nº 19/DF.
As decisões das referidas ações serão amplamente expostas neste artigo, vez que foram de suma importância para dirimir a discussão.
Para alcançar os objetivos propostos no presente artigo, utilizou-se, como recurso metodológico, a pesquisa bibliográfica, realizada a partir da análise pormenorizada de materiais já publicados na literatura e em decisões dos Tribunais Superiores (STJ e STF), disponíveis no meio eletrônico.
O texto final foi fundamentado nas ideias e concepções de autores como: Lima, Renato Brasileiro (2014); Lenza, Pedro (2012); Bitencourt, Cezar Roberto (2014); Greco, Rogério (2012).
Desenvolvimento
A Lei nº 11.340/2006, conhecida como Lei Maria da Penha, foi criada com o escopo de proporcionar proteção mais efetiva à mulher, vítima de violência doméstica ou familiar. A referida lei, em seu artigo 7º, inciso I, elenca as várias formas em que a violência contra a mulher pode ser praticada, dentre elas cita a violência física, senão vejamos:
“Art. 7º São formas de violência doméstica e familiar contra a mulher, entre outras:
I - a violência física, entendida como qualquer conduta que ofenda sua integridade ou saúde corporal;” (BRASIL, 2006)
A violência física pode ou não resultar em lesão corporal. Quando a agressão ocorre sem deixar lesões aparentes, em tese, estamos diante de uma contravenção penal de vias de fato / agressão, conforme previsto no artigo 21, do Decreto-Lei nº 3.688/1941 (Lei das Contravenções Penais), cuja natureza da ação penal é pública incondicionada, conforme previsto no artigo 17 da mesma lei.
As agressões que redundam em lesões corporais, em regra, são punidas tendo como referencial o artigo 129 do Decreto-Lei 2.848/1940 (Código Penal), embora exista também a lesão corporal prevista em outras leis, como, por exemplo, o Código Penal Militar e Código de Trânsito Brasileiro.
Segundo o Código Penal, as lesões corporais são classificadas quanto à gravidade em: lesão corporal leve – artigo 129, caput; lesão corporal grave – artigo 129, § 1º; lesão corporal gravíssima – artigo 129, § 2º; lesão corporal seguida de morte – artigo 129, 3º; lesão corporal culposa – artigo 129, § 6º. Com o advento da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), o artigo 129 do Código Penal teve acrescido ao seu texto o parágrafo 9º, in verbis:
“§ 9º Se a lesão for praticada contra ascendente, descendente, irmão, cônjuge ou companheiro, ou com quem conviva ou tenha convivido, ou, ainda, prevalecendo-se o agente das relações domésticas, de coabitação ou de hospitalidade: (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)
Pena - detenção, de 3 (três) meses a 3 (três) anos. (Redação dada pela Lei nº 11.340, de 2006)” (BRASIL, 2006)
O conceito de ação penal, segundo o Professor Renato Brasileiro de Lima (2014, p.185) é: “De acordo com a doutrina majoritária, ação penal é o direito público subjetivo de pedir ao Estado-Juiz a aplicação do direito penal objetivo a um caso concreto.”. A ação penal classifica-se em pública e privada, sendo a ação pública dividida em ação pública condicionada e ação pública incondicionada. Já a ação privada se subdivide em exclusivamente privada e privada subsidiária da pública. O Ministério Público é o titular da ação penal pública, conforme prevê o artigo 129, inciso I, da Constituição Federal.
A ação penal pública incondicionada é a regra, pois o Ministério Público não necessita de representação da vítima/ofendido para oferecer a denúncia.
Já a ação pública condicionada também tem como titular o Ministério Público, porém necessita de uma condição de procedibilidade, que no caso é a representação da vítima/ofendido ou a requisição do Ministro da Justiça, a depender do caso.
Conceituadas e estabelecidas as diferentes espécies de ação penal, verificamos que todas as lesões corporais descritas no artigo 129 do Código Penal eram processadas mediante ação de natureza pública incondicionada.
Ocorre que a Lei nº 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais Criminais), buscando dar um rito mais célere aos crimes de menor potencial ofensivo, passou a prever, em seu artigo 88, que os crimes de lesão corporal leve e lesão corporal culposa deixassem de ser crimes processados através de ação pública incondicionada, para serem processados através de ação pública condicionada à representação da vítima/ofendido, medida essa que, segundo o professor Renato Brasileiro de Lima, passou a ser considerada uma medida despenalizadora, haja vista que: “ o não oferecimento da representação dentro do prazo de 6 (seis) meses a contar do conhecimento da autoria acarreta a decadência e consequente extinção da punibilidade (art.88)” (Legislação Criminal Comentada, 2014, pag. 188).
A mudança foi salutar, porém, no ano de 2006, com o advento da Lei nº 11.340/2006, surgiu nova discussão doutrinária e jurisprudencial acerca da natureza da lesão corporal leve ou culposa, agora quando praticada no contexto da violência doméstica ou familiar, pois a própria Lei nº 11.340/2006 criou e estabeleceu uma controvérsia entre os artigos nºs 16 e 41. Ei-la:
“Art. 16. Nas ações penais públicas condicionadas à representação da ofendida de que trata esta Lei, só será admitida a renúncia à representação perante o juiz, em audiência especialmente designada com tal finalidade, antes do recebimento da denúncia e ouvido o Ministério Público”. (BRASIL, 2006)
[...]
Art. 41. Aos crimes praticados com violência doméstica e familiar contra a mulher, independentemente da pena prevista, não se aplica a Lei no 9.099, de 26 de setembro de 1995. (BRASIL, 2006)
Alicerçado no artigo 16 da Lei nº 11.430/2006, alguns doutrinadores e juízes entendiam que a lesão corporal leve ou a culposa, no contexto da violência doméstica e familiar, deveriam continuar sendo de ação pública condicionada, pois a representação era prevista nesse artigo, no qual se dispõe que a renúncia à representação somente ocorreria em audiência especial, perante o juiz.
Os que filiavam quanto à natureza incondicionada da ação penal da lesão corporal leve ou a culposa, praticada no contexto da Lei Maria da Penha, tinham como parâmetro o artigo 41 da Lei nº 11.340/2006, que vedava de forma expressa a aplicação da Lei nº 9.099/1995 aos crimes praticados no contexto da violência doméstica e familiar contra a mulher. Não obstante, para essa corrente, o próprio artigo 9º, acrescentado ao artigo 129 do Código Penal pela Lei Maria da Penha, por si só, era um impeditivo à aplicação dos juizados especiais criminais aos crimes de lesão corporal leve ou culposa, pois o novel artigo aumentou a pena para 03 anos de detenção, no caso de a lesão ocorrer no contexto da violência doméstica ou familiar, que no caso também engloba a mulher.
Impediu-se com isso a aplicação da Lei dos Juizados Especiais ao caso, pois o limite de pena máximo para a aplicação da Lei dos Juizados Especiais Criminais é de 02 (dois) anos, conforme prevê o artigo 61, da Lei nº 9.099/1995.
A maioria dos doutrinadores criticava a necessidade de representação da vítima/ofendida, ou seja, a condição de procedibilidade para a ação penal pública condicionada, pois entendia que isso causava grande impunidade ao agressor e tornava a mulher, vítima de agressão, mais exposta e vulnerável. O eminente doutrinador Cezar Roberto Bitencourt teceu grande critica a essa situação:
“Condicionar a punibilidade dessa espécie de “violência doméstica” à representação da vítima significa, ainda que indiretamente, dificultar-lhe o alcance da tutela penal, na medida em que, quando não por outras razões, pela simples coabitação com o agressor (normalmente mais forte, quase sempre temido ou respeitado), a vítima não tem coragem nem independência suficientes para manifestar livremente de requerer/autorizar a coerção estatal”. (Tratado de Direito Penal, Parte Especial 2 – 2014, pag. 215)
A necessidade de representação por parte da vítima também era impeditivo para a instauração do inquérito policial, vejamos: “O inquérito, nos crimes em que a ação pública depender de representação, não poderá sem ela ser iniciado” (CPP, art. 5, § 4º).
Em decorrência disso, a efetividade da proteção da mulher vítima de violência doméstica e familiar passou a ser mitigada, pois muitos autores de lesão leve e culposa eram presos em flagrante delito e encaminhados à delegacia, porém o inquérito não era instaurado, pois a vítima, muitas vezes, com medo, não procedia à representação em desfavor do autor. Em juízo, muitas vezes, ocorria a mesma situação, uma vez que por diversos motivos a vítima renunciava à representação e o autor ficava impune, fazendo aumentar ainda mais o ciclo da violência doméstica.
Essa discussão chegou ao Supremo Tribunal Federal, através da ADC (Ação Declaratória de Constitucionalidade) nº 19 – Distrito Federal e da ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) nº 4.424 – Distrito Federal.
A ADC nº 19 - DF acompanhou o posicionamento da doutrina majoritária e decidiu, dentre outras situações, que aos crimes praticados no contexto da violência doméstica e familiar (Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha), não se aplica a Lei nº 9.099/1995 (Lei dos Juizados Especiais Criminais), ou seja, a nenhum crime praticado nessas condições, o que engloba também a lesão corporal leve e culposa.
Vejamos trecho do acórdão do Supremo Tribunal Federal publicado em 29/04/2014:
“VIOLÊNCIA DOMÉSTICA E FAMILIAR CONTRA A MULHER – REGÊNCIA – LEI Nº 9.099/95 – AFASTAMENTO.
O artigo 41 da Lei nº 11.340/06, a afastar, nos crimes de violência doméstica contra a mulher, a Lei nº 9.099/95, mostra-se em consonância com o disposto no § 8º do artigo 226 da Carta da República, a prever a obrigatoriedade de o Estado adotar mecanismos que coíbam a violência no âmbito das relações familiares”. (Acórdão da ADC nº 19, STF, DJE nº 80, divulgado em 28/04/2014, pag. 02)
Para pôr fim a qualquer dúvida quanto à natureza da ação penal nos crimes de lesão corporal praticados no contexto da Lei Maria da Penha, ou seja, nos casos de violência doméstica e familiar, os Excelentíssimos Ministros do Supremo Tribunal Federal, no julgamento da ADI nº 4.424 – DF, deram interpretação à Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), conforme a Constituição Federal e declararam que a ação penal nos casos de violência doméstica é de natureza pública incondicionada, independente do grau da lesão. Eis um trecho do acórdão:
“09/02/2012 PLENÁRIO AÇÃO DIRETA DE INCONSTITUCIONALIDADE 4.424 DISTRITO FEDERAL RELATOR: MIN. MARCO AURÉLIO REQTE.(S) :PROCURADOR-GERAL DA REPÚBLICA INTDO.(A/S) :PRESIDENTE DA REPÚBLICA ADV.(A/S) :ADVOGADO-GERAL DA UNIÃO INTDO.(A/S) :CONGRESSO NACIONAL AÇÃO PENAL – VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER – LESÃO CORPORAL – NATUREZA. A ação penal relativa a lesão corporal resultante de violência doméstica contra a mulher é pública incondicionada – considerações. A C Ó R D Ã O Vistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo Tribunal Federal em julgar procedente a ação direta para, dando interpretação conforme aos artigos 12, inciso I, e 16, ambos da Lei nº 11.340/2006, assentar a natureza incondicionada da ação penal em caso de crime de lesão corporal, pouco importando a extensão desta, praticado contra a mulher no ambiente doméstico, nos termos do voto do relator e por maioria, em sessão presidida pelo Ministro Cezar Peluso, na conformidade da ata do julgamento e das respectivas notas taquigráficas. Brasília, 9 de fevereiro de 2012. MINISTRO MARCO AURÉLIO – RELATOR.”
(STF, Acórdão da ADI nº 4424, DATA DE PUBLICAÇÃO DJE 01/08/2014 - ATA Nº 98/2014. DJE nº 148, divulgado em 31/07/2014 – pag. 01)
A decisão da Suprema Corte brasileira quanto à incondicionalidade da ação penal nos crimes de lesão corporal leve e culposa, no âmbito da Lei Maria da Penha tem caráter vinculante e efeito erga omnes. Sendo assim, o posicionamento do STF já está sedimentado, servindo de norte para demais decisões.
Vejamos alguns trechos de julgados recentes do Supremo Tribunal Federal reafirmando tal posicionamento
“EMENTA: DIREITO PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. LESÃO CORPORAL. NATUREZA DA AÇÃO PENAL. AÇÃO PÚBLICA INCONDICIONADA. 1. A ação penal nos crimes de lesão corporal leve cometidos em detrimento da mulher, no âmbito doméstico e familiar, é pública incondicionada. Precedentes: ADC 19/DF e ADI 4.424/DF. 2. Agravo regimental a que se nega provimento.”
(STF, RE/691135 - AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO -DJ Nr. 84 do dia 07/05/2015)
[...]
“Ementa: PROCESSUAL PENAL. AGRAVO REGIMENTAL EM RECURSO EXTRAORDINÁRIO. LEI 11.340/2006. VIOLÊNCIA DOMÉSTICA CONTRA A MULHER. LESÃO CORPORAL. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA (ADI 4424, REL. MIN. MARCO AURÉLIO). AGRAVO REGIMENTAL A QUE SE NEGA PROVIMENTO”
(STF, RE/826760 - AG.REG. NO RECURSO EXTRAORDINÁRIO -DJ Nr. 224 do dia 14/11/2014)
O Superior Tribunal Justiça (STJ), acompanhado o posicionamento do Supremo Tribunal Federal (STF), recentemente, mais precisamente no dia 15/06/2015, publicou a Súmula nº 536, que proíbe a aplicação dos institutos despenalizadores, da suspensão condicional do processo e da transação penal, previstos na Lei nº 9.099/1995, aos crimes praticados no contexto da Lei nº 11.340/2006 (Lei Maria da Penha), verbis: “A suspensão condicional do processo e a transação penal não se aplicam na hipótese de delitos sujeitos ao rito da Lei Maria da Penha” (STJ, DJe 15/06/2015).