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O poder regulamentar da ANATEL e a proposta de limitação da internet

Serão discutidos os aspectos jurídicos envolvendo a proposta da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) de limitar a navegação dos usuários de internet com base na franquia de dados.

INTRODUÇÃO

O presente artigo analisa os aspectos jurídicos envolvendo a proposta da Agência Nacional de Telecomunicações (ANATEL) de limitar a navegação dos usuários de internet com base na franquia de dados.  A análise levará em consideração a presença ou não de situação nova que provoque prejuízo aos consumidores, para auferir se a agência exorbitou ou não de seu poder regulamentar. Para esse empreendimento, faremos uma análise comparada com experiências estrangeiras na comercialização dos pacotes de internet. Além disso, levaremos em conta os princípios inerentes ao Código de Defesa do Consumidor e às relações consumeristas, o marco civil da internet, bem como as atribuições das agências reguladoras, de seus limites em face da Constituição Federal.

BREVE ESCORÇO DA SITUAÇÃO ATUAL DA PROPOSTA DA ANATEL

Em sede de resolução, a agência reguladora ANATEL tornou possível que empresas de telecomunicação limitem os pacotes de internet, passando a cobrar pelo modelo de franquia, como ocorre com os pacotes de celular. Melhor dizendo, o cliente compra  determinado volume de dados e velocidade de conexão e, assim que terminam os megabytes do pacote, a empresa para de fornecer o serviço ou reduz a velocidade da conexão.

Tal proposta da ANATEL gerou intenso clamor e resistência nas redes sociais. A crítica geral é a de que a agência estaria criando um ônus maior aos consumidores e defendendo somente os interesses das empresas que oferecem os serviços de internet.

Diante desse clamor, a Anatel suspendeu a mudança proposta e anunciou que irá  realizar consultas públicas em relação ao novo limite. Além da consulta, serão organizadas reuniões públicas com entidades e especialistas para subsidiar a futura deliberação do Conselho Diretor do órgão sobre a discussão. As medidas atendem solicitações feitas por diversas entidades, entre elas o Comitê de Defesa dos Usuários dos Serviços de Telecomunicações (CDUST).

Durante o período de 60 dias aberto às contribuições da sociedade civil, a Anatel solicitará subsídios sobre o tema ao Ministério de Ciência, Tecnologia, Inovações e Comunicações, Ministério Público Federal, Secretaria Nacional do Consumidor, Instituto Brasileiro de Defesa do Consumidor (IDEC), Secretária de Acompanhamento Econômico, Associação Brasileira de Defesa do Consumidor Proteste, Conselho Federal da OAB, Comitê Gestor da Internet (CGI.Br), Associação Brasileira de Internet (Abranet), Associação Brasileira de Provedores de Internet (Abrint) e a outras entidades e pessoas interessadas em contribuir para a regulação do serviço de banda larga.

Serão realizados também debates e estudos com convidados especialistas em Direito, Economia e Tecnologia de universidades e centros de pesquisas para um maior embasamento do que será analisado pelo Conselho Diretor. Concluídas estas etapas, todo o material compilado será encaminhado a um grupo executivo da ANATEL encarregado de realizar a Análise de Impacto Regulatório das ações propostas. Enquanto isso, continua em vigor por prazo indeterminado a medida da ANATEL que proíbe prestadoras com mais de 50 mil assinantes de praticar a redução de velocidade de transmissão de dados, suspensão do serviço e cobrança de tráfego excedente após o esgotamento da franquia de banda larga fixa, ainda que tais medidas constem do contrato ou do plano de serviço.

A Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) já manifestou insatisfação com a atuação da ANATEL em relação à referida limitação. O presidente da OAB afirma que a possibilidade de limitar o acesso à internet aumentaria as desigualdades no Brasil e só geraria mais lucro para as operadoras de telefonia. Além disso, a limitação contraria ao Marco Civil da Internet. A medida de limitar os dados da internet fixa dos usuários também é questionada por instituições de defesa do consumidor, como o Idec, que ingressou com uma Ação Civil Pública contra os maiores provedores de internet do Brasil para barrar a fixação de limite de tráfego de dados nos serviços de banda larga. A entidade considera que a estratégia das empresas ao limitar a navegação na internet fixa força os usuários a reduzir o uso de serviços de streaming, como Netflix, que consomem muitos dados.

Os representantes do Legislativo também se debruçam sobre a questão. Na Câmara dos Deputados, parlamentares criticaram a adoção da franquia limitada de internet banda larga e o líder do PSDB, Antonio Imbassahy (BA), chegou a apresentar um projeto de lei (5050/16) que proíbe a inclusão de franquia de consumo nos contratos de prestação de serviços de comunicação multimídia. No Senado, as comissões de Serviços de Infraestrutura (CI); de Meio Ambiente, Defesa do Consumidor e Fiscalização e Controle (CMA); e de Ciência, Tecnologia, Inovação, Comunicação e Informática (CCT) promovem audiências públicas para discutir as providências que devem ser tomadas para evitar os problemas apontados pelos consumidores.

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         ANALISE COMPARADA COM A EXPERIÊNCIA INTERNACIONAL

A utilização de limites de dados na internet fixa, como propõe a ANATEL, não seria algo exclusivo do Brasil. Em nações mais desenvolvidas tecnologicamente, a exemplo dos Estados Unidos e do Reino Unido, há igualmente tais franquias,  entretanto, elas são duramente criticadas.

No mercado estadunidense, 7 dentre as 13 principais companhias do setor têm essa estratégia em algum nível, conforme o GAO- Government Accountabillity Office (órgão do Congresso Americano).

Nos EUA há quem entenda que os clientes ainda não se adaptaram ao modelo. No ano de 2014, o GAO consultou os americanos e constatou que eles não tinham noção sobre seu uso de dados, além de não saberem o quanto consomem.

Isso impede que o consumidor usufrua efetivamente da rede, com receio de ultrapassar o pacote. "Limites restritos de dados e o clima de escassez que eles promovem podem afetar o comportamento on-line de modo negativo, especialmente para comunidades de baixa renda", afirma no relatório "Artificial Scarcity" de 2015  o centro de estudos americano Open Technology Institute.’’De repente, um curso virtual grátis gera o risco de uma taxa adicional significativa’’.

Frise-se, também, que os limites que as operadoras brasileiras impõem à internet fixa são maiores em comparação aos do exterior. Ao passo que o limite aos brasileiros poderá ser de 30 GB a 50 GB ao mês em planos econômicos, clientes da Alemanha, EUA e Chile provavelmente terão capacidades bem maiores.

Informações fornecidas pelas páginas das duas maiores operadoras brasileiras retratam que os planos de banda larga fixa mais acessíveis têm limite de 30 GB na NET e 50 GB na Vivo. São esses os limites cuja velocidade de transmissão é de  2 Mbps e 4 Mbps, respectivamente em cada operadora, comercializados em São Paulo, capital.

Por outro lado, os chilenos possuem 500 GB mensais no plano econômico, pela empresa Movistar, que compõe o grupo da Vivo. O teto é de 16 vezes acima do ofertado pela NET, ou 10 vezes superior ao da Vivo.

 A O2, empresa da Alemanha sob controle da espanhola Telefônica, disponibiliza 100 GB a título de plano econômico. E, nos Estados Unidos da América, a franquia mínima ofertada pela ST&T é de 250 GB mensais, a despeito da Comcast, que, embora pratique limites distintos de acordo com a localidade, tem como média 300 GB mensais.

O artifício de limitar a banda larga fixa teve início em 2008, nos Estados Unidos, com a pioneira Comcast. Dificilmente os clientes eram comunicados do uso, ainda nos primeiros anos. Entretanto, no quadro atual, cresce a quantidade de reivindicações de consumidores que têm que pagar mais quando chegam ao limite do serviço.

DA VEDAÇÃO ÀS AGÊNCIAS REGULADORAS AO EXERCÍCIO DE FUNÇÃO NORMATIVA PRIMÁRIA

As agências reguladoras não podem exercer função normativa primária.  Esse é um pressuposto geral já delineado pela Constituição Federal, que  reserva essa função ao Congresso Nacional (arts. 48 e 49). Não podem, portanto, inovar no ordenamento jurídico em relação aos setores que elas regulam. Elas são bem mais limitadas em sua atuação do que as agências americanas, que lhes serviram de inspiração. A competência delas é, como o próprio nome indica, meramente regulamentadora.

Para a análise da violação desses limites, serve de complemento a leitura dos dispositivos regentes no Marco Civil da internet e do CDC, bem como de seus princípios regentes.

ANÁLISE EM FACE DO MARCO CIVIL DA INTERNET

Vejamos. O Marco Civil da internet, quando trata dos direitos e garantias dos usuários, estabelece, em seu art. 7, inciso IV, a “não suspensão da conexão à internet, salvo por débito diretamente decorrente de sua utilização”. Ou seja, por este dispositivo, fica estabelecido que o serviço é contínuo, não pode ser suspenso.

Quando o consumidor fica limitado à utilização de dados, o serviço pode ser interrompido imediatamente com o esgotamento da franquia.  O fornecedor, para se adequar ao art. 7, inciso IV, e com o modelo de internet por franquia de dados, teria que estabelecer eficientes instrumentos de comunicação ao consumidor, para que ele soubesse do seu consumo e interviesse antes de ter seu serviço suspenso. Tal implementação é completamente incompatível e utópica em comparação ao tratamento que as fornecedoras desse serviço conferem atualmente aos consumidores no Brasil. Ademais, como já demonstramos, mesmo nos EUA, há uma dificuldade para que os consumidores tenham acesso a tal informação.

Portanto, a limitação da internet por franquia de dados estaria em frontal discordância com o princípio da continuidade do acesso à internet estabelecido no marco civil. Uma agência reguladora jamais poderia editar ato normativo primário, como já demonstramos, e nesse caso, há frontal desacordo da proposta da ANATEL com uma lei, o que é incompatível com a função regulamentadora.

ANÁLISE EM FACE DO CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR

 O CDC tem como um de seus princípios vertentes a vulnerabilidade do consumidor no mercado de consumo, sendo necessária a garantia de produtos e serviços com padrões adequados de qualidade, segurança, durabilidade e desempenho.  O código assevera, portanto, a importância da harmonização dos interesses dos participantes das relações de consumo com o imprescindível desenvolvimento tecnológico e econômico, de forma a manter a ordem econômica.

O art. 22 do CDC delineia que “os órgãos públicos, por si ou suas empresas, concessionárias, permissionárias ou sob qualquer outra forma de empreendimento, são obrigados a fornecer serviços adequados, eficientes, seguros e, quanto aos essenciais, contínuos.”

Ou seja, o código é oposto a uma prestação de serviço ineficiente e reafirma a importância da continuidade do serviço.

A limitação proposta pela ANATEL é oposta ao princípio da continuidade estatuído no CDC, mormente pelas dificuldades de informação do consumo de dados que já destacamos e também porque é uma barreira que não existe no modelo vigente.

CONCLUSÃO

Pela análise da proposta de limitação, bem como pela experiência internacional nesse assunto, fica evidente que a ANATEL está prestes a normatizar situação jurídica nova e, além disso, diametralmente oposta aos dispositivos legais regentes da matéria, com destaque para o Marco Civil da internet e o Código de Defesa do Consumidor. A ANATEL está, portanto, a exorbitar dos estritos limites a que está submetida no ordenamento jurídico brasileiro. Qualquer ato nesse sentido é passível de controle pelo legislativo e, em face do art. 5, inciso XXXV, de controle judicial, sem prejuízo de controle de constitucionalidade, pois ato normativo nesse sentido configuraria patente violação aos arts. 48 e 49 da Constituição Federal.

Ademais, uma limitação nesse sentido, por inovar no ordenamento jurídico e por estabelecer condição mais gravosa ao consumidor deve ser veiculada por lei, pelo órgão que detém legitimidade constitucional para fazê-lo, e não por uma agência reguladora.

REFERÊNCIAS

LOPES, Tomás Jobin Coutinho. Agências reguladoras: históriaRevista Jus Navigandi, Teresina, ano 18n. 37196 set. 2013. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/25229>. Acesso em: 12 jun. 2016.

http://jcrs.uol.com.br/_conteudo/2016/04/geral/494748-web-limitada-e-atacada-tambem-no-exterior.html

http://noticias.r7.com/tecnologia-e-ciencia/franquia-de-dados-na-internet-fixa-e-pratica-comum-no-exterior-22042016

http://canaltech.com.br/noticia/banda-larga/anatel-vai-abrir-consulta-publica-sobre-limite-de-dados-na-banda-larga-69063/< acesso em 10 de junho de 2016>

http://canaltech.com.br/noticia/banda-larga/presidente-da-oab-critica-atuacao-da-anatel-no-embate-da-banda-larga-limitada-68713/<acesso em 10 de junho de 2016>

http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/noticia/2016/03/planos-de-banda-larga-serao-por-limite-de-uso-de-dados-em-2017-5113400.html<acesso em 10 de junho de 2016>

http://zh.clicrbs.com.br/rs/vida-e-estilo/noticia/2016/03/planos-de-banda-larga-serao-por-limite-de-uso-de-dados-em-2017-5113400.html< acesso em 10 de junho de 2016>

http://www.proteste.org.br/dinheiro/imoveis/noticia/limitar-a-internet-fixa-contraria-o-codigo-de-defesa-do-consumidor-defende-proteste-no-senado

Sobre os autores
Tomás Jobin Coutinho Lopes

Mestrando em Filosofia pela Universidade Federal do Piauí - UFPI; Graduado em Direito pela Universidade Estadual do Piauí - UESPI.

Raiane Almeida

Acadêmico de Direito da Universidade Estadual do Piauí - Campus Clóvis Moura. Estagiária no Tribunal Regional do Trabalho em Teresina-PI. Servidora da Prefeitura Municipal de Teresina.

Informações sobre o texto

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