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A universalização do ensino superior brasileiro:direito de todos ou privilégio de alguns?

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Agenda 11/07/2016 às 17:16

4- FUNÇÃO SOCIAL DA ESCOLA – PANACEIA VS. REPRODUTIVISMO PERVERSO

A função social da educação tem sido fortemente questionada  por teorias críticas nos últimos 30 anos. A sociedade tem acreditado cegamente na escola como se esta fosse à panacéia para resolver toda a problemática social.

Dois sociólogos franceses na década dos anos 70 foram pioneiros na elaboração de teorias educativas que mudaram a visão tradicional da escola. As teorias “reprodutivistas” visualizam a escola como mera reprodutora das classes sociais. Baudelot e Establet e Bourdieu Passeron elaboraram  teorias que rapidamente se espalharam pelo mundo.  Estas denunciavam o reprodutivismo de classes existentes nas escolas e descreveram casos isolados de alunos de contexto sócio-econômico desfavorável que através do sistema escolar  e das suas qualidades pessoais conseguiram ascender socialmente. São casos muito raros e estes indivíduos são chamados pelos experts da sociologia como “mutantes” ou também “miraculados”. O doutrinador e educador francês Georges Snyders em seu livro “Escola, classe e luta de classes”  explica que nem todo é um mar de rosas para estes indivíduos já que na realidade:

A classe dominante conserva ciosamente nas suas mãos o controle desta seleção, que não faz perigar de forma alguma o conjunto das hierarquias estabelecidas.  Precisamente por se tratar de “casos”, esses poucos vão ser absorvidos pelo meio ambiente, moderlar-se segundo regras instituídas, arriscam-se mesmo a ficar fortemente algemados a um sistema que lhes permitiu, a eles, vencer, “sair-se bem”.  Estas probabilidades de ascensão social denunciam-nas Bourdieu-Passeron como meio de tornar verossímil a ideologia de uma escola que a todos oferece iguais oportunidades; um meio de mascarar o peso da origem social, e finalmente de negar a existência de classes.  Os “miraculados”constituem a caução do sistema e apesar das aparências lisonjeiras, não passam na realidade de reféns... “a organização e o funcionamento do sistema escolar retraduzem continuamente e segundo códigos múltiplos as desigualdades de nível social por desigualdades de nível escolar. (SNYDERS, 1997, p.21-22)

Segundo Pierre Bourdieu, o indivíduo adquire a cultura através de duas formas: mediante a “educação familiar”que inclui as práticas de socialização da primeira infância  (são espontâneas, implícitas, incluem hábitos, valores, princípios), e mediante a “a ação da escola”, que seria uma continuidade da primeira educação recebida no seio familiar.  Este autor introduz o conceito de “capital cultural” na sua teoria educativa para fundamentar a importância vital que possui a família como agente primário na socialização do indivíduo.

Snyders coincide com Bourdieu neste ponto e afirma que:

A ação da escola exerce-se sobre crianças cujo modo de vida, educação familiar são extremadamente diversos: a cultura das classes privilegiadas aproxima-se da cultura escolar, os seus hábitos assemelham-se aos hábitos e aos ritos escolares [...] Para os outros, trata-se de “uma conquista muito cara” tem de consegui-la laboriosamente, através de uma espécie de conversão imensamente difícil [...] é um empreendimento de adaptação a um grupo social. (SNYDERS, 1997, p.23)

As teorias reprodutivistas castigaram duramente a função social da escola e deixaram um sabor amargo. De certa forma começou a reinar uma espécie de pessimismo entre a comunidade educativa já que segundo esta teoria “nada poderia ser feito”, portanto,  a classe social de origem do indivíduo determinaria seu futuro, seu êxito ou o seu fracasso escolar. A escola estaria ao serviço da classe dominante perpetuando a estrutura das relações de classe e legitimando as diferenças, a escola seria uma perversa máquina que consegue dissimular a aparente função social que desempenha.

Apesar destas teorias educativas estarem ainda vigentes em grande parte do mundo, a visão que predomina é positiva e esperançosa. Se não fosse assim, muitos países socialistas não teriam aplicado reformas educativas profundas que mudaram significativamente a realidade social.

Após a segunda guerra mundial a antiga U.R.S.S. e Hungria depois de analisar as taxas de disparidades sociais, decidiram implantar  ações compensatórias no ensino superior. Em  1950 uma portaria ministerial polaca impôs às universidades uma proporção mínima de reserva de 60% das vagas para estudantes provenientes de famílias operarias e camponesas. As mesmas medidas foram implementadas por outros países e obtiveram resultados significativos em 30 anos. Snyders explica que esta medida compensatória implantada em países do leste europeu obteve resultados positivos e afirma que entre 1931 e 1963 na Hungria a taxa de disparidade entre a classe superior-operários baixou de 17 para 5. Desta forma podemos apreciar que as primeiras ações afirmativas implementadas há quase um século atrás tiveram resultados esperançosos.


5- CRITÉRIO - ÉTNICO-RACIAL + CRITÉRIO SOCIAL

O conteúdo da lei federal nº 12.711 de 2012 em seus artigos 3º, 4º e 5º  faz referencia a três itens fundamentais que são os critérios de seleção e distribuição das vagas: a origem em escola pública, a Renda e o Critério étnico-racial.

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Como mencionamos anteriormente, a grande crítica desta ação afirmativa através da lei de cotas radica no critério étnico-racial e a forma em que este opera na prática.

 Os dois primeiros critérios de seleção podem ser efetivamente comprovados pelos candidatos através de documentos:  histórico escolar fornecido pela instuição de ensino médio de egresso e no caso do critério “renda” mediante comprovantes dos ingressos familiares ou da declaração anual de IRPF. Já o terceiro critério não tem esta modalidade probatória pois, a modalidade probatória exigida na lei é uma simples documento fornecido antes da prova onde o candidato se autodeclarará negro ou integrante de uma minoria étnica.

Caberá então, às universidades e num segundo momento fiscalizar este procedimento para evitar possíveis fraudes.

Surge aqui então o problema central da discussão que tem sido fonte de inspiração da média para divulgar matérias a este respeito.

Na edição 2011 da Revista Veja de junho de 2007 foi publicada uma matéria sobre este assunto. Dois irmãos, gêmeos univitelinos, filhos de pai negro e mãe branca se inscreveram para prestar vestibular na Universidade de Brasília.  Porem, após analisar cada requerimento com fotografia anexa, um foi classificado como preto na subcategoria dos pardos e o outro como branco.  Esta antagônica classificação demonstra a dificuldade que representa tentar diferenciar as pessoas pela tonalidade da pele ou pelos rasgos fisionômicos.

A miscigenação étnica no país dificulta ainda mais este processo de classificação nada científico que está sendo feito nas universidades do país.  Para que a categorização destes requerentes tivesse rigor científico deveriam submeter a cada candidato autodeclarado a uma análise de DNA  para saber qual é a etnia predominante em seu mapa genético.  Porém, ao ser este  tipo de exame muito oneroso e, ao ter cada universidade autonomia suficiente[2] para instrumentar as medidas de combate a fraude no processo de seleção; erros e injustiças deste tipo poderão ocorrer.

O termo “raça” é utilizado popularmente para classificar aos indivíduos de acordo a características físicas como: cor da pele, rasgos faciais, tipo de cabelo, cor dos olhos.  Esta designação é cientificamente incorreta já que todas as raças humanas pertencem a uma única espécie (homo sapiens sapiens) e somente possuem pequenas variações genéticas de menos de 1%.  Os investigadores científicos dividiram a espécie humana em três grandes troncos étnicos: negroide, ameríndio e caucasiano e estudos genéticos demonstraram que estes  se misturaram ao longo do tempo e, portanto não existiriam etnias puras.  As variações seriam fenotípicas,  quer dizer adaptações genéticas dos indivíduos de acordo com o ambiente onde habitam.  A matéria publicada na revista Veja realizou um estúdio genético de pessoas famosas e públicas e os resultados publicados no artigo utilizando gráficos surpreendem até os leitores mais céticos.

Com referencia  a este critério de classificação utilizado pelas universidades é importante destacar que a UNICAMP  no Estado de São Paulo, foi pioneira  muito antes da criação da atual Lei 12.711 de 2012 quando ainda não era tido em consideração o critério de seleção “renda”, inovou criando um critério de seleção diferente ao o previsto no sistema de cotas nesse momento. O programa PAAIS instituido em 2004 foi o primeiro programa de ação afirmativa sem cotas numa universidade brasileira. Este programa de inclusão social foi desenhado a partir de um estudo feito pela comissão de vestibular desta universidade, a COMVEST.  Foi comprovado que os alunos universitários provenientes do ensino médio público melhoravam seu desempenho acadêmico sensivelmente em relação aos resultados da prova de ingresso.  A UNICAMP era contrária a lei de cotas com base em critérios étnico-raciais por considerar esta política compensatória ineficiente para o combate à discriminação racial.  Portanto, decidiram que  o aluno proveniente do ensino público teria um bônus de  pontos na prova do vestibular. Aqueles que cumprissem o primeiro requisito e se autodeclarassem negros, pardos, pretos ou índios, teriam um bônus extrasomado ao primeiro.   De esta forma, a UNICAMP está aplicando uma política mais focada no social e não tanto no racial.

A UNICAMP no jornal Folha de São Paulo no ano 2006 divulgou resultados satisfatórios.  Em 31 dos 56 cursos oferecidos, os alunos beneficiados pelo PAAIS após um ano na universidade, mostraram melhor rendimento acadêmico que os demais estudantes.

Está previsto no art.4º da lei ordinária nº 4151/03  que o Estado deve prover os recursos financeiros suficientes para a implementação do programa de cotas assim como também para garantir a permanência dos alunos beneficiados dentro do sistema universitário. A permanência do aluno na escola também é previsto no art.206, I da CF/88. Portanto, as universidades podem prover bolsas de permanência estudantil:  bolsas de monitoria, assistência estudantil,  auxílio-transporte e auxílio- moradia para alunos  em situação de vulnerabilidade socioeconômica e para estudantes indígenas e quilombolas.

Seria muito ingênuo acreditar que aquele aluno carente que não tem recursos paracustear uma faculdade poderia permanecer dentro do sistema só com passar na prova do vestibular. É necessário contar com recursos suficientes para custear alimentação, moradia, despesas com transporte, material escolar, livros, etc.  Um curso universitário numa faculdade pública não é 100% gratuito, as despesas anteriormente citadas formão parte do investimento que é feito no momento em que o indivíduo começa seu curso superior.  Todos estes itens adicionam um custo extra ao curso universitário e deverão são custeados pela família do aluno que na maioria dos casos não possui os meios econômicos necessários para a permanência do aluno no sistema.

Sobre a autora
Alison Bibiana Autino Cabrera

Advogada Trilingue (Esp/Port/Ing) com vivência internacional acadêmica e profissional.<br>Licenciada em Letras pelo CERP del Norte, Uruguai<br>Bacharel em Direito pela URCAMP, RS<br>Pôsgraduanda em Direito Público pela FURB<br>Aluna do Módulo II da ESMESC<br>Atua nas diversas áreas do Direito, ênfase: Direito Internacional Privado, negócios internacionais e Direito Penal. <br>Consultoria e assessoria jurídica para Estrangeiros (Pessoa Física e Jurídica).

Informações sobre o texto

Este texto foi publicado diretamente pelos autores. Sua divulgação não depende de prévia aprovação pelo conselho editorial do site. Quando selecionados, os textos são divulgados na Revista Jus Navigandi

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