RESUMO: Este artigo científico foi produzido com o escopo de discutir a discriminação que ocorre no ambiente de trabalho em relação às pessoas homossexuais. Como tônica da discussão, foi feita uma análise do filme “Filadélfia”, que traz a figura de um promissor advogado, Andrew Beckett, interpretado por Tom Hanks, que é portador do Vírus HIV e homossexual, funcionário de um famigerado escritório da Filadélfia. Após ser demitido pela firma, Andrew contrata os serviços de seu colega de profissão, Joe Miller (Denzel Washington), que era homofóbico. A produção artística explora a batalha entre o preconceito de Joe e seu desejo de justiça em favor de Andrew. O presente trabalho demonstrará durante suas linhas dados que apontam para a fatídica exclusão de pessoas que possuem orientação homossexual, como ocorre no filme, propondo uma solução não tão incomum, mas extremamente libertadora para acabar com todo e qualquer preconceito: o conhecimento.
Palavras Chave: Homofobia;Preconceito; Justiça; Dignidade da Pessoa Humana; Igualdade; Não-Discriminação.
1. Introdução – Breve leitura de Filadélfia
Produzido no ano de 1993 por Jonathan Demme, Filadélfia é um filme norte-americano do gênero drama, pioneiro em Hollywood no tratamento de questões relacionadas à Homossexualidade, Homofobia e HIV/AIDS, e teve, entre outros prêmios, o Oscar de melhor ator, no ano de 1994, para Tom Hanks, pelo papel principal da trama.
O filme inicia com uma disputa entre Joe Miller e Andrew Beckett numa causa envolvendo um bairro da Filadélfia contra uma construtora, neste momento os protagonistas fazem uso de sua oratória perante uma magistrada. Na cena seguinte, Andrew se dirige a um ambulatório que tratava de pessoas portadoras do vírus HIV e faz uma transfusão de sangue. Percebe-se que ele está na fase inicial da doença.
Outro fato perceptível era sua facilidade de se relacionar com seus colegas de trabalho, sejam eles os seus superiores hierárquicos ou mesmo seus subordinados. Isso fez com que, numa noite, enquanto trabalhava até mais tarde, Andrew fosse chamado por um dos sócios do Escritório Wyant, Wheeler, Hellerman, Tetlow & Brown para uma reunião com Charles, que comandava de fato a firma.
Após uma instigante conversa sobre o fato da Sanders Systems ter copiado um programa financeiro da Highline, ambas as empresas do ramo da informática, Charles anunciou que, por mérito, Andrew representaria a Highline, sendo esse um dos processos de maior repercussão já patrocinados pela firma. De imediato foi anunciado o prazo de dez dias para apresentação da peça inicial. Ainda na reunião, Walter Kenton, outro sócio do escritório, percebeu uma lesão na testa de Andy, como o chamavam, que disse ser resultado de uma raquetada numa partida de tênis.
Andrew começou então a trabalhar em casa devido ao agravamento das lesões, que já começavam a se espalhar pelo seu corpo juntamente com a doença. No nono dia do prazo, conclui a petição e a deixa em cima de sua mesa no escritório, pronta para ser protocolada no Tribunal, avisando a Shelby, sua secretária, para que Jamey fizesse o restante do procedimento.
Andy tentou, com o uso de maquiagem, esconder as lesões que já estavam muito aparentes. Foi nesse momento, enquanto estava na casa de seus amigos, que se sentiu mal e precisou se dirigir ao hospital urgentemente. Seu companheiro, Miguel, interpretado por Antonio Banderas, acompanhou-o durante os procedimentos médicos e retrucou quando o clínico sugeriu que Andrew fizesse uma retoscopia, pois não acreditava ser o avanço da doença que causou o mal-estar, mas a reação ao AZT (antirretroviral utilizado no tratamento da AIDS), ou mesmo alguma infecção. O médico ameaçou expulsar Miguel das dependências do Hospital.
Ainda no Hospital, Andrew ligou para Shelby e foi informado de que o processo deixado em cima da mesa havia sumido. Faltando apenas 75 minutos para o fim do prazo, Andy correu até o escritório para imprimir uma cópia que havia deixado em seu computador, que, sem explicação, também havia sumido. Quase findo o prazo, por poucos minutos, o processo milagrosamente apareceu no arquivo do escritório.
Após o incidente, Andrew foi demitido, numa reunião que ocorreu no dia seguinte com todos os sócios, sob a alegação de incompetência de Andrew e problemas de comportamento que não foram claramente explicados.
Um mês após o ocorrido e já aparentemente afetado pelo vírus HIV e pela AIDS, Andrew procurou Joe Miller, que acabara de ganhar sua filha, por telefone. Após uma semana, foi até o escritório do colega de profissão e contou sua história, narrando que, segundo o escritório, havia perdido a cópia dos autos da ação Highline x Sanders Systems. Mesmo informando que já havia procurado nove advogados, Andrew recebeu resposta negativa de Joe quanto à possibilidade do patrocínio de sua causa contra a firma de advogados. Especialmente motivado pelo preconceito contra homossexuais, por ser homofóbico, e com medo de ser infectado por uma doença da qual não tinha conhecimento algum. Joe ficou todo o tempo se esquivando durante a visita de Andy.
Logo que Andrew se retira do escritório, Joe, tomado pelo medo de ter sido infectado pelo HIV, posto que acreditava ser transmitida por outros meios que não o contato sexual, dirigiu-se imediatamente ao consultório do médico que lhe atendia desde criança. Nesse momento do filme são esclarecidos muitos tabus sobre a doença. O clínico então pega uma agulha para fazer o teste em Joe, que se nega por puro preconceito.
Duas semanas depois, Joe presencia uma cena de preconceito sofrida por Andrew Beckett enquanto estava numa biblioteca local e chega a intervir, de maneira sutil, por estar comovido. Nessa hora, Joe inicia uma conversa com Andy que muda os rumos do filme. Andrew apresenta a Joe um precedente que lhe daria causa ganha no processo. Dentre as linhas da decisão se encontrava o pressuposto da não discriminação contra as pessoas portadoras do vírus HIV no ambiente de trabalho, pessoas estas que sofrem a morte social antes mesmo da morte física, pela situação de rejeição por vezes sofrida.
Seis semanas depois, durante uma partida de basquete, Joe levou a notificação a Charles, informando-o da propositura da ação por Andrew Beckett. Desde esse momento, a firma de advogados inicia uma pesquisa da vida pregressa de Andy, a fim de descobrir fatos que levassem a sua derrota no Tribunal.
Sabendo de toda a repercussão social que o processo traria, Andrew alertou sua família sobre os possíveis fatos que seriam levantados na Corte, momento em que recebe o apoio dos seus.
Sete meses depois o julgamento então se inicia. Num bar, ao assistir manchetes dos jornais locais com amigos sobre o processo que patrocinava, Joe é alvo de deboche por defender Andrew. Mesmo envolvido com toda a história, Joe diz ter nojo de gays, mas que luta contra a violação da lei que ocorreu no caso.
Uma das testemunhas ouvidas foi uma secretária que trabalhou com Walter Kenton, o sócio que percebeu as lesões na pele de Andrew. Ela disse que adquiriu a doença através de uma transfusão de sangue, mas que também havia sofrido preconceito e que, por isso, não se considerava diferente de nenhuma das pessoas que eram portadoras do HIV, assim como Andy.
Numa das falas de Joe, na Corte, é levantada a hipótese de discriminação por questões relativas à opção sexual de Andrew, que disse ter ouvido durante os anos de trabalho, muitas piadas que depreciavam homossexuais, tornando, assim, o ambiente de trabalho um lugar onde ele não podia expressar de fato quem era, por medo de retaliações.
A defesa, com o intuito de manchar a reputação do autor da causa, começa a indagá-lo sobre questões de sua vida privada. Andrew foi questionado, inclusive, sobre os lugares que frequentava, ocasião em que confessou ter sido infectado pelo vírus no ano de 1984/1985, num cinema que exibia filmes gays, quando já vivia com o companheiro Miguel, que não era portador da doença.
O momento crucial da produção é o depoimento de Charles, que descreveu Andrew como um advogado promissor, mas que apresentava comportamento variável, em algumas horas, excelente, em outras, desprezível. O advogado falou, ainda, que sentia pena de Andrew, mas que ele mesmo havia causado tudo que estava sofrendo. Nesse momento, tomado pela euforia e já muito debilitado, Andy cai no Tribunal e é socorrido às pressas para o Hospital.
Joe fica na Corte para encerrar a audiência. Os jurados votam pela condenação do escritório, que teria de pagar U$$ 143.000,00 por salários e benefícios perdidos, U$$ 100.000,00 pela angustia e humilhação sofrida e U$$ 4.782.000,00 como punição aos réus.
Encerrados os trabalhos, Joe vai até o hospital e informa a Andrew, que já está nas últimas horas de vida, a vitória na demanda, concretização da Justiça!
2. Percepção jurídica dos temas tratados em “Filadélfia”
2.1. A homofobia e a discriminação no ambiente de trabalho
A homofobia é o termo utilizado para designar uma espécie de medo irracional diante da homossexualidade ou da pessoa homossexual, colocando este em posição de inferioridade e se utilizando, muitas vezes, para isso, de violência física e/ou verbal[1].
Dois aspectos principais são enxergados através da análise da homofobia[2]. O primeiro é a hierarquização de sexos, por meio da ideia de heteronormatividade. Já o segundo é a projeção, pois, segundo a psicologia, o homem tem a tendência de exteriorizar seu medo, tornando algo alheio a ele mesmo.
Muitos comportamentos homofóbicos também são fruto de questões públicas, resultantes do medo da equivalência de direitos entre as populações hétero e homoafetiva. Mesmo com o reconhecimento das uniões homoafetivas pelo Supremo Tribunal Federal em 2011, com o acolhimento da Ação Direta de Inconstitucionalidade n.º 4277[3] e a Ação de Descumprimento de Preceito Fundamental n.º 132[4], que confere os mesmos direitos e deveres das uniões estáveis às uniões homoafetivas, a luta pela aceitação social da pessoa homossexual está longe de acabar, como veremos adiante, nas questões relativas ao seu ingresso e permanência no ambiente de trabalho.
Um estudo realizado pela consultoria de engajamento Santo Caos, com a participação de duzentos e trinta profissionais LGBT (lésbicas, gays, bissexuais, transgêneros e travestis), entre dezoito e cinquenta anos, provenientes de segmentos diversos, incluindo administração, comunicação, cinema, design, direito, educação, engenharia, finanças, marketing e TI, em quatorze estados brasileiros, constatou que quarenta por cento dos participantes já sofreram discriminação direta.
Jean Soldatelli[5], Sócio-Diretor da Santo Caos, menciona que “todos relataram ter sofrido discriminação velada no trabalho”. A discriminação velada, por vezes, manifesta-se por meio da dificuldade do empregado em expor detalhes de sua vida íntima no ambiente de trabalho, mascarando informações quando questionado, por exemplo, sobre sua vida sexual, posto que percebe uma postura dos colegas de trabalho ou mesmo de seus superiores contrária a sua realidade de vida, o que dificulta sua interação com os demais, prejudicando até, em algumas situações, sua produtividade.
O levantamento[6], de maio de 2015, observou, ainda, que quarenta e sete por cento dos homossexuais alvos da pesquisa se assumem no trabalho. Destes, trinta e dois por cento falam para o Chefe direto e apenas dois por cento para o Departamento de Recursos Humanos, responsável pela contratação.
Os manuais das empresas entrevistadas tratam das questões levantadas de maneira muito genérica[7]. Há apenas um ‘apoio à diversidade’, sem que um trabalho efetivo de engajamento inclusivo seja realizado, por meio da capacitação de funcionários, treinamentos e outras ações positivas. Para Jean Soldatelli[8], “isso mostra o despreparo das empresas com relação à diversidade. Eles não percebem que têm um papel importante na sociedade”.
A empresa da área de sistemas e recrutamento e seleção Elancers[9] demonstrou que onze por cento das empresas não contratariam homossexuais para determinados cargos, referindo-se a posições de liderança e nível executivo.
Cezar Tegon[10], presidente da Elancers, explica que os “funcionários executivos representam a imagem para o público e a empresa não quer sofrer com o preconceito”. Alertou, ainda, que sete por cento dos entrevistados ainda disseram que não empregariam homossexuais em cargo algum.
Assim, parece-nos cristalina a ideia que as empresas afirmam que apoiam a diversidade sexual para fins midiáticos, mas, quando se trata de contratar, o preconceito reassume a sua força.
2.2. HIV/AIDS
O HIV[11] é a sigla em inglês do vírus da imunodeficiência humana. É o causador da AIDS (Síndrome da imunodeficiência adquirida) e ataca o sistema imunológico, responsável por defender o organismo de doenças. As células mais atingidas são os linfócitos TCD4+, e é alterando o DNA (ácido desoxirribonucléico) dessa célula que o HIV faz cópias de si mesmo. E, depois de se multiplicar, rompe os linfócitos em busca de outros para continuar a infecção.
“Ter o HIV não é a mesma coisa que ter a AIDS. Há muitos soropositivos que vivem anos sem apresentar sintomas e sem desenvolver a doença. Mas, podem transmitir o vírus a outros pelas relações sexuais desprotegidas, pelo compartilhamento de seringas contaminadas ou de mãe para filho durante a gravidez e a amamentação[12]”, conforme dados retirados do sítio eletrônico do Governo Federal, que traz informações sobre a AIDS.
Desde a descoberta da doença, mais de seiscentos e cinquenta mil casos foram notificados no Brasil, atualmente tendo uma taxa de aproximados quarenta mil novos casos por ano.
Homens que praticam sexo com outros homens têm dez vezes mais chances de ter a doença. Conforme levantamento realizado pelo Ministério da Saúde em Janeiro de 2015[13],quarenta e cinco por cento dos brasileiros afirmam não usar preservativo regularmente, mesmo com parceiros eventuais.
No Brasil, desde 1996[14], de acordo com o Site que informa sobre a AIDS, o acesso gratuito de todas as pessoas vivendo com HIV aos antirretrovirais é garantido por lei. Os medicamentos são distribuídos em diversas unidades de saúde, sempre sob acompanhamento profissional.
Como tratamento prévio à infecção pelo vírus existe hoje a PEP (Profilaxia Pós-Exposição) e a PrEP (Profilaxia Pré-exposição).
A Profilaxia Pós-Exposição (PEP)[15] é autorizada pelo Ministério da Saúde desde 2010. É um medicamento antirretroviral e previne o HIV. A profilaxia pós-exposição consiste na prescrição desses medicamentos em até setenta e duas horas após o contato do paciente com o vírus. O tratamento dura vinte e oito dias e o atendimento é considerado de emergência pelo Ministério da Saúde, conforme prevê o Protocolo Clínico e Diretrizes Terapêuticas para Profilaxia Antirretroviral Pós-Exposição de Risco à Infecção pelo HIV.
Já a Profilaxia Pré-exposição (PrEP)[16] reúne dois medicamentos antirretrovirais – o tenofovir e a emtricitabina – em uma única pílula. O tratamento consiste na ingestão de um comprimido de PrEP antes da relação sexual ou de forma rotineira, diariamente, para se prevenir contra a infecção por HIV.
A Organização Mundial da Saúde[17] entende que a PrEP deve ser considerada pelos países, em suas políticas públicas, como alternativa de prevenção voltada a populações com “risco substancial de infecção pelo HIV”. O Brasil chama esses segmentos de populações-chave,: homens que fazem sexo com homens, pessoas trans (transexuais e travestis), gays, profissionais do sexo e pessoas que usam drogas.
A combinação de medicamentos utilizada na PrEP pode custar até dois mil e quinhentos dólares por usuário, ao ano, nos EUA. Já no Brasil, existe a estimativa que o medicamento poderá custar cem dólares por usuário, anualmente[18].
Importante frisar que em nosso país existem quatro estudos de PrEP sendo desenvolvidos na Fiocruz, na Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP), na UFMG e na UFBA[19].
O Brasil tem empregado diversas novas estratégias de prevenção no enfrentamento à epidemia de HIV, sempre oferecidas como alternativa ou complemento ao uso do preservativo. As opções atuais da prevenção combinada, além da camisinha masculina e feminina, consistem no tratamento como prevenção, a testagem regular e no pré-natal do HIV, a Profilaxia Pós-Exposição (PEP), o tratamento de outras DSTs e ações de redução de danos.
“O portador do vírus tem o direito de manter em sigilo a sua condição sorológica no ambiente de trabalho, como também em exames admissionais, periódicos ou demissionais, até porque ninguém é obrigado a contar a sua sorologia, senão em virtude da lei, e, por sua vez a lei, só obriga a realização do teste nos casos de doação de sangue, órgãos e esperma[20]”.
“A exigência de exame para admissão, permanência ou demissão por razão da sorologia positiva para o HIV é ilegal e constitui ato de discriminação[21]”, de acordo com a Súmula n.º 443 do Tribunal Superior do Trabalho, editada em setembro de 2012, que garantiu a estabilidade de emprego do portador do vírus HIV, que será reintegrado caso seja dispensado sem justo motivo. Vejamos:
DISPENSA DISCRIMINATÓRIA. PRESUNÇÃO. EMPREGADO PORTADOR DE DOENÇA GRAVE. ESTIGMA OU PRECONCEITO. DIREITO À REINTEGRAÇÃO. Presume-se discriminatória a despedida de empregado portador do vírus HIV ou de outra doença grave que suscite estigma ou preconceito. Inválido o ato, o empregado tem direito à reintegração no emprego. (BRASIL, 2012).
Assim, fica evidente que as empresas que prejudicarem os portadores do HIV apenas por sê-lo, devem ser punidas judicialmente na tentativa de nosso Estado não perpetuar a discriminação em nosso país.