Poderá haver no Brasil uma lei de anistia geral na Lava Jato? Embora ética, moral, política e socialmente seja inaceitável, é previsível. Por quê? Brasil e Itália são duas famosas cleptocracias dirigidas por elites nefastamente corruptas e extrativistas (elites econômicas, políticas, financeiras, jurídicas e sociais).
Elas odeiam a verdadeira democracia e colocam o bem comum (o bem coletivo, o interesse geral) em segundo plano, porque priorizam, acima de tudo, o enriquecimento delas mesmas, assim como a preservação do poder. A grande mídia é, em regra, cleptodependente desse sistema viciado.
A Itália ocupa a 61ª posição no ranking de percepção da corrupção da Transparência Internacional (enquanto o Brasil está no 76º lugar). São dois países muito corruptos. Sistemicamente corruptos. Em ambos eclodiram as duas maiores operações policiais/judiciais contra a corrupção das elites dominantes e governantes.
Mas os números revelam (por ora) que a operação brasileira está perdendo longe. A operação Mãos Limpas na Itália (1992-1994) surgiu num momento de grande fraqueza da classe política e dos partidos (que se dividiam em democráticos e comunistas).
Queda do muro de Berlim, força incontrolável das máfias (que mataram dois juízes: Paolo Borsellino e Giovanni Falcone) e um sistema de financiamento empresarial degeneradamente corrupto (semelhante ao brasileiro) jogaram na lona as forças das elites dominantes e governantes. No poder, no entanto, não existe vácuo: diante da fraqueza das forças poderosas das elites, ganhou energia o poder jurídico de controle.
Eis um breve balanço da Mãos Limpas: “Mais de seis mil pessoas foram investigadas, dentre elas 872 empresários, 1.978 administradores e 438 parlamentares, dos quais quatro haviam sido primeiros-ministros na Itália e 2.993 mandados de prisão. Além da condenação do governador da região da Sicília, Salvatore Cuffaro, em 2008” (Cristiane Mancini, Valor Econômico).
Comparando-se os números impressionantes do funcionamento rápido da operação Mãos Limpas (na Itália) com os da Lava Jato, não há como deixar de concluir: a Lava Jato, teoricamente, tem espaço para ir muito mais longe.
A operação Lava Jato “começou em março/14 e, segundo a Procuradoria Geral da República (até o início de julho/16), já firmou 61 acordos de colaboração premiada com pessoas físicas, 5 acordos de leniência com empresas e um Termo de Ajustamento de Conduta (TAC) com uma instituição financeira. Já foram instaurados 1.291 procedimentos em 32 fases até o momento, sendo 643 buscas e apreensões, 175 mandados de condução coercitiva, 74 prisões preventivas e 91 prisões temporárias. Já foram iniciados 44 processos criminais, contra 216 pessoas, pelos crimes de corrupção (ativa e passiva), organização criminosa e lavagem de dinheiro, dentre outros. As propinas apuradas já chegaram a R$ 6,4 bilhões. Já se conseguiu bloquear R$ 2,4 bilhões em bens de réus e recuperar, por meio de acordos de colaboração premiada e de leniência, R$ 2,9 bilhões. Deste total, R$ 2,3 bilhões se referem à multas, renúncia e indenização; e outros R$ 659 milhões foram objeto de repatriação” (ver A. Matais, Estadão). Já são 106 condenações em 1º grau, com 1.150 anos de prisão. Já foram 108 pedidos de cooperação internacional (com 36 países).
Nas cleptocracias, essas operações gigantescas (da polícia e da Justiça) somente se tornam possíveis diante da fraqueza do poder das elites dominantes e governantes. Isso ocorreu no Brasil com o governo Dilma. As elites se dividiram (ver o resultado das eleições de 2014), o índice de aceitação da Dilma despencou e, no 2º trimestre daquele ano, começou a Grande Recessão (que dura até hoje). Crise econômica + crise política (que se agravou com a eleição de Eduardo Cunha para presidente da Câmara) + divisão do clube da cleptocracia (das roubalheiras do dinheiro público). A Lava Jato veio com tudo, emulando sua congênere italiana.
Na península itálica, a Mãos Limpas, em um ano e pouco, liquidou o sistema político-partidário (fechou os partidos). Nesse período sua força popular era incrível. A lua de mel da Mãos Limpas com a população durou de 1992 a 1994, quando o sistema partidário foi reorganizado, com Berlusconi (e seu novo partido, massivamente votado) na liderança. Houve reaglutinação de todas as forças das elites econômicas, financeiras, políticas e sociais, que começaram a aprovar várias leis de anistia.
Elas massacraram a operação Mãos Limpas, que perdeu completamente o apoio popular (seja por causa dos suicídios, seja porque começou a investigar a corrupção e a sonegação de impostos das camadas sociais abaixo das elites). Todo mundo começou a dizer: “basta, chega, vamos passar uma régua” (do contrário, milhões de italianos iriam para a cadeia).
No Brasil, os partidos políticos não foram fechados. Mesmo com baixíssimo apoio popular, continuam em pé entre os escombros do meio político depauperado. A presidente Dilma foi afastada do poder, que foi assumido pelo PMDB (comandado por Temer, Renan, Jucá, Sarney, Lobão, Henrique Alves, Padilha, Gedel etc.).
O papel de reaglutinação das forças das elites (econômicas, financeiras, políticas e sociais) – que o Berlusconi cumpriu na Itália – está sendo desempenhado por esse seleto grupo, que tem todo interesse em “passar a régua em tudo que for possível” (da Lava Jato).
Um ou outro do clube da cleptocracia, naturalmente, “vai para o sacrifício”. Isso faz parte do jogo. “Para exercer o poder, é necessário procurar um inimigo [ou um bode expiatório]” (um assessor de Néstor Kirchner, 2004).
Os diversos grupos oligárquicos (os partidos, os políticos, os setores econômicos e financeiros etc.) disputam o governo a cada quatro anos ou até mesmo o impeachment de um presidente, mas sabem se unir quando o poder das elites é enfrentado (como agora, com a Lava Jato).
Poderá, então, sair uma lei de anistia geral? Olhando o descaramento e a histórica falta de ética das elites brasileiras que comandam o país, é previsível – embora inaceitável -, com apoio inclusive do grupo lulopetista. Lula, Aécio, Serra, Alckmin etc.: todos esses investigados, processados ou citados em delações – particularmente da OAS e da Odebrecht – têm interesse em disputar as eleições de 2018. Logo, uma vergonhosa lei de anistia geral poderá possibilitar o conchavão.
Só não podemos afirmar que todas essas manobras representarão a desmoralização completa das elites brasileiras dominantes e governantes, porque é impossível desmoralizar quem coletivamente já não possui nenhuma moral.
“Aqueles que quiserem tratar separadamente a política e a moral jamais entenderão nada de nenhuma das duas” (Rousseau, 1712-1778, filósofo suíço). Maquiavel não concorda com a advertência: a preservação do poder está acima da ética. Essa é a lógica que tem que mudar, depois de 200 anos de Brasil independente. Vamos encarar?