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A audiência de custódia como controle jurisdicional da prisão em flagrante

Agenda 18/08/2016 às 22:02

O presente artigo objetiva analisar o controle jurisdicional da prisão em flagrante feito através da audiência de custódia, explorando a natureza jurídica do instituto, bem como sua garantia legal.

  1. INTRODUÇÃO

A audiência de custódia encontra-se prevista em tratados internacionais em que o Brasil é signatário há mais de 20 anos, etimologicamente a palavra ‘custódia’ está relacionada ao ‘ato de guardar’, ‘de proteger’, desta forma, o procedimento adotado na audiência de custódia consiste na apresentação sem demora do cidadão preso à presença de um juiz competente que deverá analisar a legalidade da prisão e também se realmente é necessário manter a custódia.

Assim, a audiência de custódia garante ao indivíduo preso o direito de ter sua prisão reexaminada de forma célere pelo Poder Judiciário, este por outro lado, exerce real controle jurisdicional sobre a prisão.

Ressalta-se que o procedimento adotado no Brasil é feito apenas como controle das prisões em flagrante, todavia, os pactos internacionais que regulamentam a audiência de custódia não restringem sua aplicabilidade apenas a essa medida cautelar, pelo contrário, o efetivo controle jurisdicional da prisão deve ser pautado analisando a situação carcerária, e, assim, reprimindo eventuais prisões desnecessárias, sejam elas temporárias, preventivas ou em flagrante delito.

Embora o Brasil tenha ratificado e promulgado os tratados internacionais que regulamentam a audiência de custódia hámais de duas décadas, no ordenamento jurídico pátrio, não existe nenhuma legislação específica que trate do procedimento, apenas há uma resolução editada pelo Conselho Nacional de Justiça que uniformizou a realização da audiência no território nacional.

Destaca-se que a audiência de custódia é um procedimento adotado há pouco tempo no país, muitas questões processuais ainda suscitam dúvidas, porém o que se observa no primeiro ano de sua realização é que os avanços humanitários estão gerando impacto positivo no caótico sistema carcerário nacional.

  1. A PRISÃO EM FLAGRANTE NO PROCESSO PENAL BRASILEIRO

A palavra flagrante possui origem no latim flagrans, flagrantis, flagrare, que significa, segundo o Dicionário Aurélio, ‘aquilo que está em chamas’, ‘queimar’, ‘abrasador’, ‘incandescente’, no sentido jurídico, o flagrante é definido como a prisão que dispensa a ordem judicial, justificando-se pela possibilidade de reação imediata à prática de um ilícito penal, ou seja, a rápida necessidade de reprimir a agressão.

Paulo Rangel entende a prisão em flagrante como:

No sentido jurídico, é o delito no momento de seu cometimento, no instante em que o sujeito percorre os elementos objetivos (descritivos e normativos) e subjetivos do tipo penal. É o delito patente, visível, irrecusável do ponto de vista de sua ocorrência. A prisão em flagrante dá-se no momento em que o indivíduo é surpreendido no cometimento da infração penal, sendo ela tentada ou consumada. (RANGEL, 2014, p. 771).

Nessa mesma acepção assevera Renato Brasileiro de Lima:

Flagrante seria uma característica do delito, é a infração que está queimando, ou seja, que está sendo cometida ou acabou de sê-lo, autorizando-se a prisão do agente mesmo sem autorização judicial em virtude de certeza visual do crime. Funciona, pois, como mecanismo de autodefesa da própria sociedade. (LIMA, 2011, p. 177).

A natureza da prisão em flagrante não se confronta com o princípio constitucional da presunção de inocência, visto que, a origem dessa espécie de custódia também dispõe de fundamento expresso no art. 5 °, LXI do texto constitucional que prevê a possibilidade da prisão em flagrante delito sem a necessidade de ordem por escrito ou fundamentada pela autoridade judiciária.

O aprisionamento em flagrante delito está legalmente prevista no artigo 302 do Código de Processo Penal dispondo que pode ser preso em flagrante não só quem está cometendo um crime ou acabou de cometê-lo, mas traz outras hipóteses de incidência da prisão em flagrante.

Ressalta-se que esse rol é taxativo, isto é, só haverá flagrante delito se a conduta do individuo estiver tipificada nesse dispositivo.

Art. 302.  Considera-se em flagrante delito quem:

I - está cometendo a infração penal;

II - acaba de cometê-la;

III - é perseguido, logo após, pela autoridade, pelo ofendido ou por qualquer pessoa, em situação que faça presumir ser autor da infração;

IV - é encontrado, logo depois, com instrumentos, armas, objetos ou papéis que façam presumir ser ele autor da infração.

O inciso I do respectivo dispositivo legal expõe o que a doutrina descreve como flagrante próprio perfeito, caracterizado pela situação em que o individuo é apanhado no instante do cometimento do delito.

A hipótese do inciso II especifica o flagrante próprio imperfeito, isto é, o indivíduo acabou de cometer o delito, contudo, ainda não se deligou da cena do crime.

A possibilidade no inciso III diz respeito ao denominado flagrante impróprio, particularizado pela situação em que o agente é perseguido pela autoridade, pelo ofendido, ou por qualquer outra pessoa em decorrência dos vestígios deixados logo após o cometimento do delito.

Por fim, o inciso IV, traz a hipótese do flagrante presumido, ou seja, o agente é encontrado logo depois do delito, com instrumentos, objetos, documentos etc., que possam indicar que ele foi o autor da infração penal (presunção de culpabilidade).

Nessa sequência, ainda associando o flagrante na acepção jurídica do termo com a sua natureza etimológica, Rangel leciona:

Tem o início com o fogo ardendo (está cometendo a infração penal – inc. I), passa por uma diminuição de chama (acaba de cometê-la – inc. II), depois para a perseguição direcionada pela fumaça deixada pela infração penal (inc. – III) e, por último, termina com o encontro das cinzas ocasionadas pela infração penal (é encontrado logo depois – inc. IV). (RANGEL, 2014, p. 778).

Em virtude da sua particularidade de não exigência da ordem por escrito ou fundamentação da autoridade judiciária para sua realização, o flagrante delito deve ser visto com cautela, pois conforme leciona Aury Lopes Junior, a prisão em flagrante “é uma medida precária, que não é dirigida para garantir o resultado final do processo, e que pode ser praticado por um particular ou pela autoridade policial”. (2014, p. 822).

Às prisões de um modo geral são medidas excepcionais, principalmente após o advento da Lei 12.403/2011 a prisão passou a ser considerada como ultima ratio entre as medidas cautelares a ser imposta ao indivíduo, assim, para que ocorra controle das detenções é necessário que todas as prisões oriundas de flagrante delito sejam submetidas ao crivo judicial em até 24 horas para que se verifique a legalidade da prisão, conforme expressa o Código de Processo Penal.

  1. A AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA COMO CONTROLE JURISDICIONAL DA PRISÃO

Através da audiência de custódia, basicamente, pretende-se assegurar que todo cidadão preso seja conduzido à presença da autoridade judicial competente que deverá analisar a legalidade do flagrante, do mesmo modo que, examinar eventuais maus tratos cometidos no momento da prisão ou no cárcere contra o custodiado.

 Quanto à audiência de custódia leciona Caio Paiva:

A audiência de custódia consiste, portanto, na condução do preso, sem demora, à presença de uma autoridade judicial que deverá, a partir do prévio contraditório estabelecido entre o Ministério Público e a Defesa, exercer um controle imediato da legalidade e da necessidade da prisão, assim, como apreciar questões relativas à pessoa do cidadão conduzido, notadamente a presença de maus tratos ou tortura. Assim, a audiência de custódia pode ser considerada como uma relevantíssima hipótese de acesso à jurisdição penal, tratando-se de uma das garantias da liberdade pessoal que se traduz em obrigações positivas a cargo do Estado. (PAIVA, 2015, p. 31).

Complementando o pensamento de Paiva, anota, Carlos Weis a respeito da necessária mudança do sistema de justiça criminal para a implementação da audiência de custódia no ordenamento jurídico pátrio:

A realização da audiência de custódia aumenta o poder, mas também a responsabilidade dos juízes, promotores e defensores (públicos ou privados) de exigir que os demais elos do sistema de justiça criminal passem a trabalhar em padrões de legalidade e eficiência. (WEIS, 2013, Online).

Não restam dúvidas que a audiência de custódia objetiva garantir as plenas liberdades fundamentais do cidadão preso, pois, trata-se de procedimento célere destinado a inibir as prisões ilegais e efetivamente controlar o inconstitucional sistema carcerário do país, uma vez que, no Brasil, “mais da metade dos presos são provisórios, ou seja, contra eles há apenas uma suspeita ou uma acusação formalmente apresentada” (CANINEU, 2013, Online), o que significa dizer que, segundo o princípio da presunção de inocência, mais da metade dos presos no Brasil são inocentes.

Há que se ressaltar que o Código de Processo Penal brasileiro, em seu artigo 306, discorre que “a prisão de qualquer pessoa e o local onde se encontre serão comunicados imediatamente ao juiz competente em até 24 horas após a realização da prisão”, assim, após a detenção em flagrante do indivíduo, os autos da prisão serão encaminhados à autoridade judiciária, salienta-se que tal dispositivo é ineficaz, pois, o auto de prisão em flagrante é um documento genérico que apenas comunica o magistrado da existência de uma prisão, dessa forma, cria uma barreira formal entre magistrado e custodiado, sobre essa asserção lecionam Aury Lopes Junior e Caio Paiva:

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São inúmeras as vantagens da implementação da audiência de custódia no Brasil, a começar pela mais básica: ajustar o processo penal brasileiro aos Tratados Internacionais de Direitos Humanos. Confia-se, também, à audiência de custódia a importante missão de reduzir o encarceramento em massa no país, porquanto através dela se promove um encontro do juiz com o preso, superando-se, desta forma, a “fronteira do papel” estabelecida no artigo 306, parágrafo 1º, do CPP, que se satisfaz com o mero envio do auto de prisão em flagrante para o magistrado. (LOPES JR, PAIVA, 2014, Online).

Deste modo, a audiência de custódia além de ajustar o Processo Penal aos tratados internacionais ratificados pelo país, possui o intuito de aproximar o magistrado do drama sofrido pelo custodiado e verdadeiramente realizar o controle da prisão, a Corte Interamericana de Direitos Humanos, em seus precedentes tem ressaltado que a audiência de custódia se traduz em procedimento legítimo e idôneo para evitar prisões ilegais.

Verifica-se que através da audiência de custódia, o juiz adentra pessoalmente na tragédia carcerária brasileira, essa caracterizada por prisões feitas de forma arbitrária, pois, conforme já mencionado no presente trabalho, a prisão em flagrante não requer qualquer fundamentação pela autoridade judiciária.

Destaca-se ainda a necessidade da rápida apresentação do custodiado à presença do juiz para que seja verificado o estado físico do preso e se o mesmo não sofreu qualquer forma de maus tratos cometidos por agentes públicos.

  1. PREVISÃO NORMATIVA DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

O texto da Constituição de 1988 estabelece que os direitos e garantias internas não ignoram as garantias previstas em convenções internacionais, pois as normas externas, quando devidamente ratificadas e promulgadas, são inclusas no ordenamento jurídico pátrio sendo consideradas como se estivessem escritas na própria Constituição.

Em vista disso, os tratados internacionais que se referem aos direitos humanos são considerados fontes constitucionais, possuindo a mesma força normativa dos direitos já consagrados implicitamente no texto constitucional.

Não há como dissociar a audiência de custódia das normas de direitos humanos, uma vez que, tal procedimento é uma forma de garantia que o custodiado possui de que terá, eventualmente, a legalidade e necessidade de sua prisão revista por uma autoridade competente, assim garantindo a preservação da sua liberdade e dignidade.

A realização da audiência de custódia está prevista em pactos internacionais que tratam de direitos humanos, do qual o Estado brasileiro é signatário, entretanto, embora o país tenha ratificado os tratados em 1992, verificou-se, que de fato a implantação do procedimento no processo penal nacional ocorreu apenas em 2015.

4.1 TRATADOS INTERNACIONAIS DE DIREITOS HUMANOS

A audiência de custódia encontra-se amparada por tratados internacionais de direitos humanos, como a Convenção Americana de Direitos Humanos (Pacto de San José da Costa Rica) e o Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos.

Determina o artigo 7.5 da Convenção Americana de Direitos Humanos:

Toda pessoa detida ou retida deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais e tem direito a ser julgada dentro de um prazo razoável ou a ser posta em liberdade, sem prejuízo de que prossiga o processo.  Sua liberdade pode ser condicionada a garantias que assegurem o seu comparecimento em juízo.

Na mesma percepção, prevê o artigo 9.3 do Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos:

Qualquer pessoa presa ou encarcerada em virtude de infração penal deverá ser conduzida, sem demora, à presença do juiz ou de outra autoridade habilitada por lei a exercer funções judiciais e terá o direito de ser julgada em prazo razoável ou de ser posta em liberdade. A prisão preventiva de pessoas que aguardam julgamento não deverá constituir a regra geral, mas a soltura poderá estar condicionada a garantias que assegurem o comparecimento da pessoa em questão à audiência, a todos os atos do processo e, se necessário for, para a execução da sentença.

Ambos os tratados deixam em aberto a quem o preso deverá ser apresentado, pois, a expressão “à presença de um juiz ou outra autoridade autorizada pela lei a exercer funções judiciais”, de forma conceitual, estende a competência da autoridade encarregada para conduzir a audiência de custódia.

Doutrinariamente o assunto é abertamente discutido, contudo, na prática, não parece lógico que outra autoridade além do juiz possa ser competente para conduzir o procedimento, de modo que, a audiência de custódia é um mecanismo de controle das prisões, assim, sua legalidade somente pode ser decidida pelo magistrado, responsável também por investigar eventuais torturas. Nessa mesma percepção leciona Paiva:

Se a apresentação do preso cumpre finalidades relacionadas à prevenção da tortura e de repressão a prisões arbitrárias, ilegais ou desnecessárias, a autoridade responsável pela audiência de custódia deve ter independência, imparcialidade e, sobretudo, poder para fazer cessar imediatamente qualquer tipo de ilegalidade. (PAIVA, 2015, p. 47).

Outra expressão, passível de debate, presente nos dispositivos internacionais é a locução “sem demora”, em razão dos tratados internacionais não especificarem de forma precisa o prazo para a apresentação do preso.

A questão interpretativa nesse caso é mais complicada, destarte, para que se consiga interpretar esse aspecto temporal é necessário analisar precedentes das Cortes Internacionais para solucionar o debate, Caio Paiva, considera que:

[...] pode-se concluir, por ora, isto é, até que surjam outros precedentes, que a Corte IDH (Corte Interamericana de Direitos Humanos) considera que a expressão “sem demora” prevista no art. 7.5 da Convenção não é violada quando o preso é apresentado à autoridade judicial no prazo de um dia após a prisão. (PAIVA, 2015, p. 45).

Nesse entendimento tem prevalecido o precedente que o preso deve ser apresentado ao juiz no máximo um dia (24 horas) após sua prisão.

Como ressaltado a rápida apresentação do detido à presença da autoridade judicial é uma recomendação internacional, que possui o intuito de prevenir e combater a tortura sofrida pela pessoa presa, de maneira que, a ratificação das Convenções internacionais que regulamentam a audiência de custódia obriga o Brasil a adequar sua legislação em conformidade com os tratados, nesse sentido entende Eugênio Pacelli:

[...] a adesão às normas internacionais firmadas em tratados e convenções internacionais, subscritas, ratificadas e promulgadas pelo Brasil (por meio de Decreto Legislativo e Decreto Executivo), implicará a adoção de regras processuais penais eventualmente ali previstas [...]. (PACELLI, 2013, p. 19).

Contudo, mesmo com a ratificação e promulgação através dos Decretos 678/92 e 592/92 referentes, respectivamente, à Convenção Americana de Direitos Humanos e Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, ambos em 1992, o Brasil continuou descumprindo as relações internacionais assumidas.

Apenas em fevereiro de 2015, o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), em parceria com o Ministério da Justiça e o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), lançou o projeto Audiência de Custódia no estado de São Paulo.

4.2.RESOLUÇÃO DO CNJ Nº 213 DE 15/12/2015

Passados mais de 20 anos desde a ratificação, por parte do Brasil, dos tratados internacionais que versam sobre a audiência de custódia e após o sucesso do projeto do CNJ em parceria com o TJSP, o próprio Conselho Nacional de Justiça regulou as audiências através da resolução n. 213 de 2015.

A Resolução detalha o procedimento para apresentação de presos em flagrante à autoridade judicial competente e possui dois protocolos de atuação, o primeiro para verificar a legalidade e necessidade da prisão, e o segundo sobre os procedimentos para apuração de denúncias de tortura.

           O CNJ estipulou, também, o prazo de 90 dias contados a partir de um fevereiro de 2016 para que os Tribunais de todo o país implantem o procedimento, a fim de garantir que o convencionado nos tratados internacionais atinja todo território nacional.

Ainda em 2015, em julgamento da medida cautelar na Arguição de Descumprimento de Preceito Fundamental (ADPF) 347, ajuizada pelo PSOL, o Supremo Tribunal Federal determinou a adoção de providências para sanar violação de direitos fundamentais dos presos.

Por maioria, os Ministros da Corte deram provimento parcial à medida cautelar reconhecendo que existem graves violação aos direitos humanos dentro do sistema penitenciário brasileiro e considerando o sistema como um “estado de coisas inconstitucional.”

Ao julgar essa ADPF, a Suprema Corte brasileira determinou que os juízes e Tribunais passassem a realizar a audiência de custódia, no prazo máximo de 90 dias a partir da decisão, confirmando, desse modo, a legalidade do procedimento.

Atualmente, tramita no Senado Federal o Projeto de Lei 554/ 2011, apresentado pelo Senador Antônio Carlos Valadares propondo a introdução da audiência de custódia no processo penal brasileiro, assim, alterando o artigo 306 do Código de Processo Penal, garantido a obrigatoriedade que o preso seja conduzido em até 24 horas depois da prisão à presença do juiz competente.

  1. A GARANTIA DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NAS OUTRAS FORMAS DE PRISÃO CAUTELAR

Ao se falar de prisão cautelar oportuno observar que tal medida deve ser utilizada em caráter excepcional (ultima ratio), atentando-se que a privação de liberdade do individuo deve objetivar-se na cautelaridade social, ou seja, resguardando os interesses da sociedade e na cautelaridade processual, asseverando-se que o processo se desenvolva em busca de uma eventual sanção da lei penal, nesse sentido também compreende Edilson Mougenot Bonfim:

As prisões cautelares têm por finalidade resguardar a sociedade ou o processo com a segregação do indivíduo. Daí falar em cautelaridade social, cujo escopo é proteger a sociedade de indivíduo perigoso, e cautelaridade processual, que garante o normal iter procedimental, fazendo com que o feito transcorra conforme a lei e que eventual sanção penal seja cumprida. (BONFIM, 2015, p. 567).

A prisão cautelar não decorre de sentença condenatória transitada em julgado, todavia, busca proteger em sentido amplo a sociedade e mais especificamente o processo penal em que o individuo está envolvido, isto posto, por se tratar de medida com caráter excepcional a sua aplicação exige a presença de determinados requisitos, quais sejam: indícios suficientes de autoria, ou, como a doutrina clássica prefere definir, fumus comissi delicti,é indispensável, também, que o indivíduo apresente risco para a sociedade ou para o curso do processo se permanecer em liberdade, isto é, possua a existência do periculum libertatis.

Em relação à audiência de custódia, embora sua aplicabilidade venha sendo observada apenas nos casos de flagrante delito, os tratados internacionais que versam sobre o procedimento não delimitam a sua garantia somente às prisões em flagrante, pelo contrário, estabelecem que toda “pessoa presa” deve ser submetida à presença da autoridade judicial.

No caso da prisão temporária, a Lei 7960/80 já faculta ao magistrado determinar que o preso lhe seja apresentado, todavia, como mencionado, não se trata de obrigação do magistrado, assim, tornando disponíveis as garantias do custodiado.

Acerca da prisão temporária vale ressaltar que para sua decretação é necessário a imprescindibilidade da medida cautelar para as investigações do inquérito policial; a falta de residência fixa ou não fornecimento dos elementos necessários ao esclarecimento de  identidade do indiciado; quando houver fundadas razões de autoria ou participação do indiciado em crimes gravosos.

A realização da audiência de custódia após a decretação da prisão temporária importaria na humanização dessa medida cautelar, uma vez que, o juiz ouviria pessoalmente o cidadão preso sobre os fatos que deram origem à sua detenção, analisando os fundamentos da custódia e, caso haja ilegalidade, a concessão da liberdade ao indivíduo.

Igualmente, a realização da audiência de custódia traria ao processo penal a sensação de justiça na aplicabilidade da prisão preventiva, pois as causas que ensejaram a fundamentação do pedido de prisão poderiam ser esclarecidas durante a audiência e assim cessando o motivo da custódia, como por exemplo, no caso de prisão preventiva decretada em desfavor de acusado que se encontre em lugar incerto. Neste caso poderia ocorrer sua imediata soltura após o fornecimento do endereço pelo preso na audiência de custódia.

5.1. APLICABILIDADE NA APREENSÃO DE ADOLESCENTES INFRATORES

O artigo 37, b da Convenção sobre os Direitos da Criança ratificado pelo Brasil e promulgada através do Decreto 99710/90 dispõe:

Os Estados Partes zelarão para que:

b) nenhuma criança seja privada de sua liberdade de forma ilegal ou arbitrária. A detenção, a reclusão ou a prisão de uma criança será efetuada em conformidade com a lei e apenas como último recurso, e durante o mais breve período de tempo que for apropriado.

Ao se analisar o contexto constitucional de proteção à criança e ao adolescente, fica evidente que a audiência de custódia deve ser garantia de forma ainda mais célere, hodiernamente, a extensão da audiência de custódia aos menores infratores começa a ser verificada em alguns Estados.

Uma portaria editada pela 2ª Vara da Infância e Juventude de São Luís/MA regulamenta a audiência de custódia de adolescente apreendido em flagrante, para que no prazo de 24 horas seja levado à presença de um juiz.

Da mesma forma o Tribunal de Justiça do Estado do Mato Grosso do Sul (TJMS) criou um projeto para implementação da audiência de custódia aos menores infratores no Estado.

Por fim, no Estado de São Paulo, algumas comarcas do interior começaram a adotar o projeto para as apreensões de adolescentes infratores.

No mesmo formato das audiências de custódia dos adultos, o procedimento com os menores infratores possui a finalidade de verificar a legalidade e necessidade da prisão, bem como investigação de eventuais maus tratos.

  1. FINALIDADES DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA

A principal finalidade da audiência de custódia é humanizar a relação entre o custodiado e o Estado, há que se observar que a efetiva realização da audiência rompe a barreira fria do papel, estabelecida através do auto de prisão em flagrante, pois é no curso da audiência que o juiz pode olhar com os próprios olhos as mazelas de um sistema penal expansionista e arbitrário.

Uma das intenções da audiência de custódia é combater a ilegalidade e arbitrariedade das prisões, tal como, verificar a necessidade da aplicação dessa medida excepcionale agravar ainda mais o já cronicamente ineficaz sistema carcerário brasileiro, coadunando-se, assim, ao objetivo do processo penal em conter a ânsia punitiva estatal, conforme expressa Rubens Casara:

Não se pode esquecer que, ao menos no Estado Democrático de Direito, a função das ciências penais, e do processo penal em particular, é a de contenção do poder. O processo penal só se justifica como óbice e à opressão. O desafio é fazer com que sempre, e sempre, as ciências penais atuem como instrumento de democratização do sistema de justiça criminal. (CASARA, 2014, p. 9-10).

Outra finalidade da audiência de custódia está relacionada à prevenção de tortura e maus tratos por parte de agentes públicos, assegurando o direito à integridade pessoal das pessoas privadas de liberdade garantido no artigo 5.2 da Convenção Americana de Direitos Humanos:

Ninguém deve ser submetido a torturas, nem a penas ou tratos cruéis, desumanos ou degradantes.  Toda pessoa privada da liberdade deve ser tratada com o respeito devido à dignidade inerente ao ser humano.

Tal intuito da rápida apresentação do detido à presença do juiz e realização da audiência de custódia objetiva preservar e proteger a integridade física e psíquica do preso, haja vista que o risco de maus tratos é muito maior durante o momento da prisão do indivíduo ou no curso do seu interrogatório, conforme discorre Maria Laura Canineu:

O risco de maus-tratos é frequentemente maior durante os primeiro momentos que seguem a detenção quando a polícia questiona o suspeito. Esse atraso torna os detento mais vulneráveis à tortura e outras formas graves de maus-tratos cometidos por policiais abusivos. (CANINEU, 2013, Online)

 Isto posto, a audiência de custódia busca eliminar tratamentos desumanos por parte do Estado durante o período de maior fragilidade do cidadão que é submetido ao cárcere, pois, com a certeza da audiência de custódia, os riscos de tratamentos degradantes diminuem drasticamente.

  1. RESULTADOS DO PRIMEIRO ANO DA AUDIÊNCIA DE CUSTÓDIA NO BRASIL

A realização da audiência de custódia no país efetivamente teve início em fevereiro de 2015 no estado de São Paulo, através de parceria realizada entre o CNJ e o TJSP, o projeto paulista chegou ser questionado no Supremo Tribunal Federal, através de ação direta de inconstitucionalidade ajuizada por delegados de polícia que alegavam que a norma administrativa do Tribunal legislou matéria de competência reservada da União, contudo, em agosto do mesmo ano, o Supremo decidiu que o provimento do TJSP apenas disciplinou direitos fundamentais do preso.

No transcorrer do passado ano o procedimento começou a ser implantado em todas as capitais do país, e, em cidades do interior, Londrina (PR), por exemplo, foi a primeira cidade do interior a adotar a realização da audiência como controle jurisdicional das prisões em flagrante.

O saldo desse primeiro ano é extremamente positivo, o CNJ calcula ter evitado aproximadamente 15 mil ingressos de novos presos no sistema carcerário através da realização da audiência de custódia, além do expressivo número, ressalta-se, que outra finalidade da audiência foi atingida, pois, o órgão diz que a medida auxiliou no combate a maus tratos e abuso policial.

Através da adoção das audiências de custódia, o mesmo CNJ calcula ter economizado R$ 40 milhões aos cofres públicos gerados com o menor número de prisões.

  1. CONSIDERAÇÕES FINAIS

A efetiva aplicabilidade das normas internacionais que originam as garantias fundamentais dos seres humanos somente será concretizada quando houver a inversão dos rumos punitivistas que a cada momento se expandem mais.

Há que se romper o velho pensamento vingativo que confunde a defesa das garantias fundamentais com a proteção da impunidade, visto que, o Estado Democrático de Direito é fundado na observância, principalmente, da dignidade da pessoa humana, e justamente por isso o processo penal deve ser visto como instrumento limitador do poder e garantidor dos cidadãos submetidos a ele, porém, o que se observa é que não existe o mínimo de condições dignas no atual sistema penal.

Os dados carcerários do país mostram que há muito tempo o processo perdeu o sentido da sua existência, pois hoje ele é usado como forma de repressão, afinal, para o juiz é muito mais cômodo converter um flagrante em prisão preventiva, utilizando-se do famigerado fundamento de garantia da ordem pública, do que de fato analisar o caso exposto a sua frente.

 No entanto, o direito não pode ser visto apenas pela ótica fria e punitivista da lei, pois, se trata de relações humanas, de vidas que podem ser perdidas para que se ‘estabeleça a ordem pública’, no entanto, qual ordem há na segregação carcerária realizada rotineiramente no país?

A realidade da audiência de custódia instrumentaliza o processo penal humanitário, aproximando o Estado do cidadão preso, através dessa audiência o magistrado pode experimentar, mesmo que obrigado, a tragédia humana vivida diariamente no país, na audiência de custódia o juiz enxerga os desprazeres sociais existentes ficando frente a frente com os indivíduos indesejados pela sociedade.

O simples fato de se realizar a audiência de custódia, não irá, de forma isolada, resolver o problema da expansão punitiva, contudo, ela é uma luz no fim do túnel, que ilumina a esperança e faz reacender o sentimento de resistência dos defensores de direitos humanos.

REFERÊNCIAS

BRASIL. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. Brasília, Senado Federal, Coordenação de Edições Técnicas, 2013.

BRASIL. Decreto-Lei nº 3.689, de 3 de outubro de 1941. Código de Processo Penal. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto-lei/Del3689Compilado.htm>. Acesso em 17/05/2016.

BRASIL. Lei nº 7.960, de 21 de dezembro de 1989. Dispões sobre prisão temporária. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/L7960.htm>. Acesso em 21/05/2016.

BRASIL. Lei nº 12.403, de 4 de maio de 2011. Altera dispositivos do Decreto-Lei no 3.689, de 3 de outubro de 1941 - Código de Processo Penal, relativos à prisão processual, fiança, liberdade provisória, demais medidas cautelares, e dá outras providências.

BRASIL. Decreto nº 99.719, de 21 de novembro de 1990. Promulga a Convenção sobre os Direitos da Criança. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/D99710.htm>. Acesso em 21/05/2016.

BRASIL. Decreto nº 592, de 6 de julho de 1992. Atos Internacionais. Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos. Promulgação. Disponível em: < http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/1990-1994/d0592.htm>. Acesso em 20/05/2016.

BRASIL. Decreto nº 678, de 6 de novembro de 1992. Promulga a Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica), de 22 de novembro de 1969. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/decreto/D0678.htm>. Acesso em 20/05/2016.

BRASIL. Conselho Nacional de Justiça. Resolução nº 213, de 15 de maio de 2015. Dispõe sobre a apresentação de toda pessoa presa à autoridade judicial no prazo de 24 horas. Disponível em: <http://www.cnj.jus.br/busca-atosadm?documento=3059>. Acesso em 21/05/2016.

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Sobre o autor
Leonardo Martins Felix

Advogado, Sócio-Fundador do Almeida, Barbosa & Felix Advocacia.

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