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As audiências de custódia e a necessária mudança de paradigmas no sistema de justiça criminal

Agenda 09/10/2016 às 10:42

A audiência de custódia é de salutar importância diante da deplorável realidade do sistema penitenciário no Brasil, uma de nossas grandes vergonhas como sociedade. Com qual objetivo algumas pessoas se empenham tanto em difundir inverdades sobre esse instituto?

A manipulação de fatos é uma artimanha muito recorrente por aqueles que, de alguma maneira, desejam prosseguir obtendo vantagens com a desinformação. O manipulador é aquele que está sempre inquieto com a possibilidade de suas farsas emergirem, como os detritos transbordam do esgoto. Sempre que percebemos pessoas atuando de forma obsessiva, numa árdua sanha de ludibriar a opinião pública com flagrantes mentiras, a prudência recomenda perquirir-se sobre quais são as intenções ocultas. Quando se trata de agentes públicos, com funções relevantes, o cuidado deve ser ainda maior.

Partindo dessa assertiva, pergunta-se: com qual objetivo algumas pessoas se empenham tanto em difundir inverdades sobre as audiências de custódia? O que há por trás de tamanha sanha a ponto de arcar com altíssimo custo, uma vez que, a cada manifestação pública, fatalmente publica-se inequívoca demonstração de tolice, ignorância jurídica, alheamento da realidade social e do próprio sistema penitenciário? Difundir nos jornais que as audiências de custódia vêm contribuindo para com o aumento da criminalidade coloca o seu propagador em lados fatalmente deploráveis, seja ele qual for. Se, ao difundir anátemas, o faz por má-fé, visando à defesa de interesses espúrios, tal ato é visceralmente abominável; se o faz por ignorância, por estupidez de quem não sabe ao certo o que diz, isso é, por seu turno, extremamente lamentável. Pois, não se pode esperar que pessoas que ocupam funções tão relevantes e que afetam a vida das pessoas, em todos os seus aspectos, demonstração pública de total desconhecimento da realidade social e das garantias e princípios que norteiam e justificam o nosso ordenamento jurídico.

Quando uma magistrada se empenha, como fervor, a dardejar toda forma de ignomínias contra aquilo que é um direito objetivo e subjetivo do preso, e que é recepcionado em nosso sistema jurídico como sendo um instrumento de significado que simboliza avanço civilizatório e evolução teleológica do sistema de justiça criminal, então algo de muito grave está acontecendo. Dizer que o reconhecimento de direitos constitucionais, disponíveis para a prevenção dos arbítrios e para o resguardo das garantias individuais, trata-se de algo que deve ser extinguido, é o prenúncio de que algo muito grave está acontecendo nas entranhas do poder judiciário. Cultuam tanto a prisão, como se fosse a panaceia para todos os males da criminalidade e, entretanto, omitem que a quase totalidade dos crimes violentos que tanto nos atemorizam partem de dentro dos presídios. Omitem, ainda, os positivos resultados proporcionados com as Audiências de Custódia, que tanto têm diminuído a reincidência criminal.

Talvez, suponha-se, já está sedimentada na mentalidade de alguns juízes a ideia segundo a qual eles não devem ser responsabilizados por seus atos negligentes. Suponha-se que alguns juízes ainda pensam que podem tudo, inclusive praticar abusos e vilipêndios, tripudiando sobre a vida e os corpos das pessoas e nada, absolutamente nada, pode lhe acontecer no sentido de responsabilizá-los. É preciso, isso sim, que a população tenha mais consciência e passe a fazer uso dos instrumentos jurídicos disponíveis, como a lei n.º 4.898/1965 que, em seu artigo 4º preceitua o seguinte: “constitui também abuso de autoridade: alínea a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder; alínea c) deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa; alínea d) deixar o Juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada; e) levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei; f) cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à espécie quer quanto ao seu valor; i) prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade. Art. 6º O abuso de autoridade sujeitará o seu autor à sanção administrativa civil e penal”.

Em relação ao tema, este missivista já se manifestou, em artigos anteriores, aduzindo que a Audiência de Custódia consiste na garantia de toda pessoa que for presa dever ser apresentada, imediatamente, a um juiz que analisará se deverá continuar presa ou se poderá aguardar o julgamento da ação penal ou a condução do inquérito policial em liberdade, através do benefício da liberdade provisória ou outras medidas cautelares alternativas à prisão, como uso de tornozeleira eletrônica, pagamento de fiança, proibição de ausentar-se da comarca, recolhimento noturno, etc. Essa medida, que prevê o prazo de vinte e quatro horas para que o preso seja apresentado ao juiz, é de salutar importância diante da deplorável realidade do sistema penitenciário no Brasil, uma de nossas grandes vergonhas e que nos deprimem como sociedade. Nossas prisões são masmorras medievais, superlotadas, fétidas, contando com um corpo de funcionários despreparados e corruptos, funcionando como verdadeiras incubadoras de criminosos recrudescidos. Naturalmente, o Projeto Audiência de Custódia desagrada uma parcela de delegados de polícia, pois, imporá uma diminuição às famigeradas e abjetas “prisões para averiguação” e, ainda, intimidará as torturas e vilipêndios físicos contra os presos; desagradará promotores de justiça, pois terão que se fazer presentes com maior assiduidade a essas audiências, impedindo que seus atos sejam delegados a assessores, estagiários, ou que se limitem a repetir procedimentos valendo-se de “modelos prontos” guardados em seus arquivos de computador; desagradará a juízes, que, do alto dos seus pedestais, consideram ser um acinte ter diante de si um mero e reles preso, um pária, um proscrito. Isso, segundo muitos magistrados no Brasil, trata-se de uma profanação às suas auras divinas. Para alguns deles, o salário e privilégios – inclusive os vergonhosos como o “auxílio moradia” – são, em verdade, oferendas dadas pelos jurisdicionados, em adoração e louvor às dádivas de ter-se na Terra a divindade em forma de juízes.

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Quanto a isso, nenhuma surpresa. Esses segmentos das funções do Estado são, ainda e desgraçadamente, infestados de pessoas elitistas, preconceituosas, segregacionistas e, principalmente, de mentalidades retrógradas, obtusas e reacionárias.  Não por acaso, suas respectivas associações de interesses corporativistas insurgiram-se e impetraram ações judiciais alegando que a Audiência de Custódia é “inconstitucional”. Na verdade, os interesses e as razões das recalcitrâncias são meramente corporativistas, egocêntricos, alheios aos interesses sociais e calcados em absoluta falta de consciência acerca do que são as legítimas finalidades das funções que ocupam, onde predominam, meramente, os interesses pessoais, com deplorável apego à vaidade, aos privilégios corporativistas, ao hedonismo e à relegação do jurisdicionado e do cidadão como um mero detalhe, secundário ou irrelevante. Uma demonstração cabal dessa estultice corporificada e falante foram as declarações de uma magistrada, curiosamente lotada em uma vara criminal, alegando que a Audiência de Custódia iria “ocupar desnecessariamente os magistrados”. Oras, qual seria, afinal, a função de um juiz criminal senão tratar da condução dos procedimentos processuais e das garantias do acusado inerentes ao devido processo legal? O preso é, sim, o principal sujeito de direitos, é o protagonista em um procedimento penal persecutório. No Brasil, infelizmente, há uma protagonização e um despiciendo culto à prisão. Talvez isso deriva, em parte, de um sentimento sádico preservado em muitas mentalidades de juízes e promotores. O processo penal é uma garantia constitucional do preso, não um instrumento de açoite à disposição dos talantes de nenhum aspirante à déspota. Quando uma magistrada declara que atendê-lo seria “perder tempo desnecessariamente” está a admitir que não sabe ao certo o porquê de ser tão onerosamente remunerada pelo contribuinte. Causa perplexidade ver juízes, promotores e delegados em histérica polvorosa diante de uma natural e óbvia medida de garantia processual penal. Alegar que o Judiciário não possui estrutura para ouvir os presos que o próprio sistema persegue e aprisiona só pode levar-nos a uma única conclusão: o Judiciário é inútil, inservível, imprestável e onerosamente desnecessário. Se não consegue desempenhar com a sua finalidade, feche-o. O contribuinte e o já tão desesperançado de justiça, o jurisdicionado, agradecem.

Defendo um novo paradigma de solução de conflitos. Investiremos na criação e ampliação dos centros de pacificação social ou qualquer outra forma de resolução de conflitos com ampla participação da sociedade ou de iniciativa civil, como as cortes de conciliação e a atuação preventiva por parte dos centros comunitários nos bairros. Se os representantes do Judiciário acham que cumprir com suas obrigações é “perda de tempo” e “trabalho desnecessário”, cerrem-se as portas dessa estrutura capenga e, de imediato, produzam dois benefícios, só para começar: deixa de fazer de conta que serve para alguma coisa e, por outro, desonera o contribuinte de fardo tão inútil e demasiado desperdício de dinheiro público que é destinado a servir como pilar de uma estrutura à beira de ruir e prestes à falência em todos os sentidos – deontológico e teleológico. Um misto de ignorância, arrogância e anacronismo permeia a reação contra as audiências de custódia. Esses fenômenos não são novidades. As mentalidades de alguns juízes, promotores e delegados ainda se encontram aprisionadas em um passado, no mínimo, anterior à Idade Média. As audiências de custódia é um sucedâneo da Magna Carta libertatum, de 1215, imposta pelos nobres ao rei da Inglaterra, como exigência do controle legal da prisão de qualquer cidadão. A expressão completa é habeas corpus ad subjiciendum e tem como significado etimológico em latim “que tenhas o teu corpo”. Neste ano de 2015 está completando, portanto, 800 anos desse instituto. Essa garantia foi prevista, também, ainda que implicitamente, com a Revolução Francesa, através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789. Posteriormente, erigiu-se à condição de preceito universal fundamental, através da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948. É, também, estabelecido pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, das Nações Unidas, de 16 de dezembro de 1966, com força de lei no Brasil através do Decreto 592, de 6 de julho de 1992. Antes disso, a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, em seu artigo 7º, item 5, assim preceitua: “toda pessoa presa deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”. Vale ressaltar que os tratados internacionais sobre direitos humanos possuem forças equivalentes às emendas constitucionais, de acordo com a Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004.

Como se percebe, no aspecto legislativo não existe nenhuma novidade capaz de causar surpresas ou a falácia de “inconstitucionalidade”. As audiências de custódia são previstas há séculos. Talvez o grande problema resida na mentalidade retrógrada de alguns promotores e juízes que, não obstante as aspirações civilizatórias e evolutivas dos povos, em diferentes fases da história das civilizações, ainda teimam em manter-se aprisionados na escuridão primitiva de suas ignorâncias herdadas de tempos que imaginávamos não existirem mais.

Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROCHA, Manoel L Bezerra. As audiências de custódia e a necessária mudança de paradigmas no sistema de justiça criminal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4848, 9 out. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/52386. Acesso em: 22 dez. 2024.

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