A manipulação de fatos é uma artimanha muito recorrente por aqueles que, de alguma maneira, desejam prosseguir obtendo vantagens com a desinformação. O manipulador é aquele que está sempre inquieto com a possibilidade de suas farsas emergirem, como os detritos transbordam do esgoto. Sempre que percebemos pessoas atuando de forma obsessiva, numa árdua sanha de ludibriar a opinião pública com flagrantes mentiras, a prudência recomenda perquirir-se sobre quais são as intenções ocultas. Quando se trata de agentes públicos, com funções relevantes, o cuidado deve ser ainda maior.
Partindo dessa assertiva, pergunta-se: com qual objetivo algumas pessoas se empenham tanto em difundir inverdades sobre as audiências de custódia? O que há por trás de tamanha sanha a ponto de arcar com altíssimo custo, uma vez que, a cada manifestação pública, fatalmente publica-se inequívoca demonstração de tolice, ignorância jurídica, alheamento da realidade social e do próprio sistema penitenciário? Difundir nos jornais que as audiências de custódia vêm contribuindo para com o aumento da criminalidade coloca o seu propagador em lados fatalmente deploráveis, seja ele qual for. Se, ao difundir anátemas, o faz por má-fé, visando à defesa de interesses espúrios, tal ato é visceralmente abominável; se o faz por ignorância, por estupidez de quem não sabe ao certo o que diz, isso é, por seu turno, extremamente lamentável. Pois, não se pode esperar que pessoas que ocupam funções tão relevantes e que afetam a vida das pessoas, em todos os seus aspectos, demonstração pública de total desconhecimento da realidade social e das garantias e princípios que norteiam e justificam o nosso ordenamento jurídico.
Quando uma magistrada se empenha, como fervor, a dardejar toda forma de ignomínias contra aquilo que é um direito objetivo e subjetivo do preso, e que é recepcionado em nosso sistema jurídico como sendo um instrumento de significado que simboliza avanço civilizatório e evolução teleológica do sistema de justiça criminal, então algo de muito grave está acontecendo. Dizer que o reconhecimento de direitos constitucionais, disponíveis para a prevenção dos arbítrios e para o resguardo das garantias individuais, trata-se de algo que deve ser extinguido, é o prenúncio de que algo muito grave está acontecendo nas entranhas do poder judiciário. Cultuam tanto a prisão, como se fosse a panaceia para todos os males da criminalidade e, entretanto, omitem que a quase totalidade dos crimes violentos que tanto nos atemorizam partem de dentro dos presídios. Omitem, ainda, os positivos resultados proporcionados com as Audiências de Custódia, que tanto têm diminuído a reincidência criminal.
Talvez, suponha-se, já está sedimentada na mentalidade de alguns juízes a ideia segundo a qual eles não devem ser responsabilizados por seus atos negligentes. Suponha-se que alguns juízes ainda pensam que podem tudo, inclusive praticar abusos e vilipêndios, tripudiando sobre a vida e os corpos das pessoas e nada, absolutamente nada, pode lhe acontecer no sentido de responsabilizá-los. É preciso, isso sim, que a população tenha mais consciência e passe a fazer uso dos instrumentos jurídicos disponíveis, como a lei n.º 4.898/1965 que, em seu artigo 4º preceitua o seguinte: “constitui também abuso de autoridade: alínea a) ordenar ou executar medida privativa da liberdade individual, sem as formalidades legais ou com abuso de poder; alínea c) deixar de comunicar, imediatamente, ao juiz competente a prisão ou detenção de qualquer pessoa; alínea d) deixar o Juiz de ordenar o relaxamento de prisão ou detenção ilegal que lhe seja comunicada; e) levar à prisão e nela deter quem quer que se proponha a prestar fiança, permitida em lei; f) cobrar o carcereiro ou agente de autoridade policial carceragem, custas, emolumentos ou qualquer outra despesa, desde que a cobrança não tenha apoio em lei, quer quanto à espécie quer quanto ao seu valor; i) prolongar a execução de prisão temporária, de pena ou de medida de segurança, deixando de expedir em tempo oportuno ou de cumprir imediatamente ordem de liberdade. Art. 6º O abuso de autoridade sujeitará o seu autor à sanção administrativa civil e penal”.
Em relação ao tema, este missivista já se manifestou, em artigos anteriores, aduzindo que a Audiência de Custódia consiste na garantia de toda pessoa que for presa dever ser apresentada, imediatamente, a um juiz que analisará se deverá continuar presa ou se poderá aguardar o julgamento da ação penal ou a condução do inquérito policial em liberdade, através do benefício da liberdade provisória ou outras medidas cautelares alternativas à prisão, como uso de tornozeleira eletrônica, pagamento de fiança, proibição de ausentar-se da comarca, recolhimento noturno, etc. Essa medida, que prevê o prazo de vinte e quatro horas para que o preso seja apresentado ao juiz, é de salutar importância diante da deplorável realidade do sistema penitenciário no Brasil, uma de nossas grandes vergonhas e que nos deprimem como sociedade. Nossas prisões são masmorras medievais, superlotadas, fétidas, contando com um corpo de funcionários despreparados e corruptos, funcionando como verdadeiras incubadoras de criminosos recrudescidos. Naturalmente, o Projeto Audiência de Custódia desagrada uma parcela de delegados de polícia, pois, imporá uma diminuição às famigeradas e abjetas “prisões para averiguação” e, ainda, intimidará as torturas e vilipêndios físicos contra os presos; desagradará promotores de justiça, pois terão que se fazer presentes com maior assiduidade a essas audiências, impedindo que seus atos sejam delegados a assessores, estagiários, ou que se limitem a repetir procedimentos valendo-se de “modelos prontos” guardados em seus arquivos de computador; desagradará a juízes, que, do alto dos seus pedestais, consideram ser um acinte ter diante de si um mero e reles preso, um pária, um proscrito. Isso, segundo muitos magistrados no Brasil, trata-se de uma profanação às suas auras divinas. Para alguns deles, o salário e privilégios – inclusive os vergonhosos como o “auxílio moradia” – são, em verdade, oferendas dadas pelos jurisdicionados, em adoração e louvor às dádivas de ter-se na Terra a divindade em forma de juízes.
Quanto a isso, nenhuma surpresa. Esses segmentos das funções do Estado são, ainda e desgraçadamente, infestados de pessoas elitistas, preconceituosas, segregacionistas e, principalmente, de mentalidades retrógradas, obtusas e reacionárias. Não por acaso, suas respectivas associações de interesses corporativistas insurgiram-se e impetraram ações judiciais alegando que a Audiência de Custódia é “inconstitucional”. Na verdade, os interesses e as razões das recalcitrâncias são meramente corporativistas, egocêntricos, alheios aos interesses sociais e calcados em absoluta falta de consciência acerca do que são as legítimas finalidades das funções que ocupam, onde predominam, meramente, os interesses pessoais, com deplorável apego à vaidade, aos privilégios corporativistas, ao hedonismo e à relegação do jurisdicionado e do cidadão como um mero detalhe, secundário ou irrelevante. Uma demonstração cabal dessa estultice corporificada e falante foram as declarações de uma magistrada, curiosamente lotada em uma vara criminal, alegando que a Audiência de Custódia iria “ocupar desnecessariamente os magistrados”. Oras, qual seria, afinal, a função de um juiz criminal senão tratar da condução dos procedimentos processuais e das garantias do acusado inerentes ao devido processo legal? O preso é, sim, o principal sujeito de direitos, é o protagonista em um procedimento penal persecutório. No Brasil, infelizmente, há uma protagonização e um despiciendo culto à prisão. Talvez isso deriva, em parte, de um sentimento sádico preservado em muitas mentalidades de juízes e promotores. O processo penal é uma garantia constitucional do preso, não um instrumento de açoite à disposição dos talantes de nenhum aspirante à déspota. Quando uma magistrada declara que atendê-lo seria “perder tempo desnecessariamente” está a admitir que não sabe ao certo o porquê de ser tão onerosamente remunerada pelo contribuinte. Causa perplexidade ver juízes, promotores e delegados em histérica polvorosa diante de uma natural e óbvia medida de garantia processual penal. Alegar que o Judiciário não possui estrutura para ouvir os presos que o próprio sistema persegue e aprisiona só pode levar-nos a uma única conclusão: o Judiciário é inútil, inservível, imprestável e onerosamente desnecessário. Se não consegue desempenhar com a sua finalidade, feche-o. O contribuinte e o já tão desesperançado de justiça, o jurisdicionado, agradecem.
Defendo um novo paradigma de solução de conflitos. Investiremos na criação e ampliação dos centros de pacificação social ou qualquer outra forma de resolução de conflitos com ampla participação da sociedade ou de iniciativa civil, como as cortes de conciliação e a atuação preventiva por parte dos centros comunitários nos bairros. Se os representantes do Judiciário acham que cumprir com suas obrigações é “perda de tempo” e “trabalho desnecessário”, cerrem-se as portas dessa estrutura capenga e, de imediato, produzam dois benefícios, só para começar: deixa de fazer de conta que serve para alguma coisa e, por outro, desonera o contribuinte de fardo tão inútil e demasiado desperdício de dinheiro público que é destinado a servir como pilar de uma estrutura à beira de ruir e prestes à falência em todos os sentidos – deontológico e teleológico. Um misto de ignorância, arrogância e anacronismo permeia a reação contra as audiências de custódia. Esses fenômenos não são novidades. As mentalidades de alguns juízes, promotores e delegados ainda se encontram aprisionadas em um passado, no mínimo, anterior à Idade Média. As audiências de custódia é um sucedâneo da Magna Carta libertatum, de 1215, imposta pelos nobres ao rei da Inglaterra, como exigência do controle legal da prisão de qualquer cidadão. A expressão completa é habeas corpus ad subjiciendum e tem como significado etimológico em latim “que tenhas o teu corpo”. Neste ano de 2015 está completando, portanto, 800 anos desse instituto. Essa garantia foi prevista, também, ainda que implicitamente, com a Revolução Francesa, através da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão, de 26 de agosto de 1789. Posteriormente, erigiu-se à condição de preceito universal fundamental, através da Declaração Universal dos Direitos do Homem, da Organização das Nações Unidas (ONU), em 1948. É, também, estabelecido pelo Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos, das Nações Unidas, de 16 de dezembro de 1966, com força de lei no Brasil através do Decreto 592, de 6 de julho de 1992. Antes disso, a Convenção Interamericana dos Direitos Humanos, conhecida como Pacto de San José da Costa Rica, de 1969, em seu artigo 7º, item 5, assim preceitua: “toda pessoa presa deve ser conduzida, sem demora, à presença de um juiz”. Vale ressaltar que os tratados internacionais sobre direitos humanos possuem forças equivalentes às emendas constitucionais, de acordo com a Emenda Constitucional 45, de 30 de dezembro de 2004.
Como se percebe, no aspecto legislativo não existe nenhuma novidade capaz de causar surpresas ou a falácia de “inconstitucionalidade”. As audiências de custódia são previstas há séculos. Talvez o grande problema resida na mentalidade retrógrada de alguns promotores e juízes que, não obstante as aspirações civilizatórias e evolutivas dos povos, em diferentes fases da história das civilizações, ainda teimam em manter-se aprisionados na escuridão primitiva de suas ignorâncias herdadas de tempos que imaginávamos não existirem mais.