(iv) Repercussão da decisão do STF no RPPS
O Supremo Tribunal Federal decidiu, por maioria, que a desaposentação é figura inaplicável no campo do RGPS ante a inexistência de sua previsão na legislação previdenciária[17]. Esse fundamento foi permeado por outros que o circundaram[18], a saber:
- no RGPS, a criação de qualquer benefício somente pode ocorrer mediante lei, haja vista que a Constituição (Arts. 194 e 195) remete à “legislação ordinária as hipóteses em que as contribuições vertidas ao sistema previdenciário repercutem, de forma direta, na concessão dos benefícios.”
- existência de contraposição entre a desaposentação e o fator previdenciário, este enquanto instrumento criado para combater as aposentadorias precoces acabaria por ficar limitado diante do estímulo à inatividade ocasionado pela desaposentação.
- a feição contributiva e solidária do sistema significa que todos devem arcar com a sua sustentabilidade, de modo que o equilíbrio do sistema não se dá entre a contribuição e o financiamento do benefício;
- a feição estatutária ou institucional e não contratual do RGPS, inteiramente regrado por lei, não confere espaço para intervenção individual, de modo que a ausência de previsão legal do direito equivale à inexistência de dever de prestação por parte da Previdência Social;
- a Constituição não estabelece vínculo entre o recolhimento da contribuição previdenciária e o benefício recebido e que a regra da contrapartida, prevista no § 5º do seu art. 195, significa que não se pode criar um benefício ou serviço da Seguridade Social sem a correspondente fonte de custeio.
A par dos fundamentos, percebe-se que o direito à desaposentação foi tratado como um benefício e não propriamente como um direito à renúncia de um bem jurídico disponível, consoante jurisprudência até então pacífica dos tribunais pátrios.
Sob tal ótica, o benefício deveria estar previsto em lei para assim autorizar o seu exercício pelo titular e, em contrapartida, o dever de ser satisfeito pelo órgão gestor de previdência. Essa é, na verdade, a regra para a concessão de todo benefício previdenciário, seja ele do setor público ou privado: previsão legal.
Mas a desaposentação não é um benefício previdenciário. A desaposentação é um direito de renúncia a um benefício –benefício a que tem jus o segurado por conta do implemento das condições dispostas nas regras previdenciárias conjugadas com a vontade dele usufruir. A vontade do segurado é o elemento que se agrega à concessão do benefício. E o sentido de renunciar está diretamente relacionado com a essa vontade. É a vontade invertida.
Essa conotação parte da premissa de que a aposentadoria, no modelo brasileiro, passou a assentar-se, preponderantemente, no que se convencionou chamar de a lógica do seguro[19], erigindo-se como uma propriedade social de seu titular e enquanto tal, disponível ao exercício de renúncia ou dispensa. Essa dimensão, todavia, não foi acolhida pelo Excelso Pretório que assentou os fundamentos de sua decisão na solidariedade do regime, cuja base – escorada principalmente na lógica da assistência – também não parece se contrapor à atuação da desaposentação.
A saber:
É importante deixar claro que, a aposentadoria, no Brasil, seja a prevista no RGPS, seja a regrada pelo RPPS, passou a assumir, após as ondas de reformas da Previdência, um contexto efetivamente contributivo. Ou melhor, as contribuições vertidas ao sistema condicionam a sua concessão. Não existe benefício previdenciário, no Brasil, sem contribuição. Já passamos da época do tempo de serviço. Hoje estamos no tempo de contribuição, o que não significa estarmos diante de um sistema de capitalização, pois faltam as bases fundantes para tanto. Mas o caminho que se está seguindo é da capitalização escritural, porque, sem dúvida, no sistema brasileiro atual, se condiciona o benefício à contribuição, de modo que a solidariedade invocada como alicerce de sustentação dos regimes de previdência merece ser interpretada à luz do contexto em que se insere a Previdência no âmbito da Seguridade Social.
Em outras palavras, tomam-se os fundamentos da Seguridade Social, que alberga a saúde, a previdência e a assistência, cuja diversidade das bases de financiamento é efetivamente solidária, assim traduzida pelo escopo do Art. 195 da Constituição, e os transferem isoladamente para Previdência Social, não obstante a efetiva especialização da fonte de custeio a ela destinada e intensificada pós-reformas[20].
Ademais, confunde-se solidariedade com o regime de financiamento do sistema. Não que não exista vínculo entre um e outro, mas o formato de financiamento do regime de previdência não significa solidariedade, conforme acaba sendo assimilado. Pelo menos em um contexto jus-político. Adote como exemplo a aposentadoria no RPPS antes das reformas: a sua base de financiamento era totalmente orçamentária, sustentada por tributos gerais, mediante cotização obrigatória de toda coletividade. Dessa constatação, pode-se dizer que todos contribuíam para a aposentadoria do RPPS e, como tal, imanente a solidariedade do regime. Com as reformas, a especialização da fonte de custeio, patente na introdução do caráter contributivo e atuarial do sistema, se impôs a lógica do seguro, aproximando o RPPS do RGPS, onde as contribuições importam efetivamente para cobertura dos benefícios, materializando o deslocamento da previdência do escopo da solidariedade agasalhada pela Seguridade Social.
No regime de repartição simples, consubstanciado na cotização obrigatória de todos que dele participam, inclusive, dos próprios aposentados e pensionistas, a sua base, no contexto pós-reforma, não deixa de denotar feição agregada a um seguro social institucionalizado, onde a especialização de contribuições para fazer face ao seu custeio empresta ao regime o formato de capitalização escritural, mediante o qual a contribuição é registrada em contas individuais que servem de base para a concessão dos benefícios[21].
Nesse contexto, fácil é perceber que a solidariedade que se diz imanente ao RGPS não confere fundamento para desconstituir a intitulada desaposentação, mormente porque a desaposentação não deve ser tida como benefício previdenciário, mas um direito dele decorrente e, como tal, pode ser exercido sem que esteja em lei previsto, pois se cuida de um direito vinculado à disponibilidade desse bem social. Ademais, a opção atual pela aposentadoria com o fator previdenciário[22], ainda presente no RGPS, somente reforça a tese da desaposentação e não o contrário, pois deixa evidenciar que o segurado pode dispor acerca do benefício que lhe for mais vantajoso.
Outro aspecto importante a ser elucidado diz respeito aos efeitos do tempo de contribuição do segurado aposentado que retorna à atividade, conforme previsto no § 2º do Art. 18 da Lei nº 8.213/91. Ora, a vedação ali disposta é destinada ao segurado aposentado e não ao desaposentado. Ao segurado que renuncia deve ser dado o direito de dispor do seu tempo de contribuição em igualdade de condições com qualquer outro segurado, posto que a renúncia rompe com o benefício de cunho continuado, a liberar o referido tempo para cômputo de uma aposentadoria mais vantajosa[23]. Nada a inviabilizar a sustentabilidade do sistema, ante a vinculação causal entre a contribuição e o benefício, como dito alhures[24] e que, também como dito, não desnatura a solidariedade do sistema, pois uma situação não invalida a outra.
Nesse cotejo, resta evidenciado que os alicerces utilizados para negar o direito à desaposentação no RGPS trazem elementos de conflito sob o prisma conceitual, mormente em relação à ótica da sustentabilidade, cuja visão eminentemente jurídico-financeira acabou por anuviar a balança da justiça do Tribunal Constitucional Brasileiro. No bojo desses contrapontos, cabe a indagação: _a decisão exarada pelo STF que nega o direito à desaposentação no RGPS tem repercussão junto ao RPPS?
A resposta deve ser negativa. Não haverá, pelo menos neste primeiro momento, repercussão da decisão junto ao RPPS. E são muitos os fatores que levam a essa constatação. Cabe enumerar:
- diferentemente do RGPS, não existe dispositivo legal equivalente ao Art. 18, § 2º, da Lei nº 8.213/91, na disciplina do RPPS;
- o aposentado pelo RPPS ainda se encontra amarrado às ingerências do regime jurídico-administrativo que, dentre outras limitações, veda a acumulação de proventos oriundos do RPPS com vencimentos de cargos ou empregos públicos e, como tal, submete o retorno à atividade desse segurado à reversão ao cargo antes ocupado, na forma do art. 25, II, da Lei nº 8.112/90[25]; ou à renúncia à aposentadoria para provimento em cargo efetivo decorrente de aprovação em concurso público; em ambos os casos com a possibilidade de concessão de nova aposentadoria pelas regras vigentes no momento da concessão;
- nos estatutos jurídicos que vinculam o servidor ao ente federado existem regras que autorizam o cômputo do tempo de serviço público para efeito de aposentadoria, a exemplo da prevista nos Arts. 100 e 103, da Lei nº 8.112/90, sem discriminação quanto à qualidade do segurado, se aposentado ou não;
- a concessão do benefício da aposentadoria está vinculada ao tempo de contribuição, a exemplo do que ocorre no RGPS, de modo que não existe benefício sem contribuição e nem contribuição sem benefício;
Não se vislumbra, portanto, repercussão da decisão do STF, que negou a figura da desaposentação em sede do RGPS, no campo do RPPS.
Sob tal perspectiva, entende-se inexistir impedimento para que o INSS expeça certidão de tempo de contribuição em favor de segurado do RPPS que renuncie ao benefício previdenciário concedido pelo RGPS[26], haja vista que a vedação do Art. 18, § 2º, da Lei nº 8.213/91 é destinada ao segurado aposentado do RGPS e não do RPPS. Ademais, a aposentadoria que vier a ser concedida, com o aproveitamento do tempo de contribuição antes utilizado para o RGPS, observará as regras do RPPS, observada a compensação financeira entre os regimes.
(v) Conclusões
No momento em que se anuncia a proposta de reforma da Previdência Social, consubstanciada na PEC 287/2016, eis que a desaposentação fenece como direito imanente ao segurado do RGPS, caminho do qual não está imune o RPPS, muito embora a decisão do STF sobre ele não tenha repercussão.
Poderia se cogitar que a igualdade que se pretende implantar entre os regimes, por efeito de eventual aprovação da PEC 287/2016, seria a base para acolher a tese da existência de repercussão da decisão do STF sobre a desaposentação em sede do RPPS. Mas nem seria preciso buscar tal motivação, posto que a desaposentação não se mostrará vantajosa sob às regras propostas na PEC nº 287/2016 para quaisquer regimes, salvo em relação a possíveis contemplados com as regras de transição.
É que a renúncia à aposentadoria, tenha sido esta concedida pelo RPPS ou pelo RGPS, não opera efeitos retroativos, de modo que as regras vigentes no momento da aposentadoria (pós-desaposentação) são as que devem ser aplicadas ao destinatário do direito. Logo, se as regras advindas dessa onda de reforma forem aprovadas e estiverem em vigência no momento da aposentadoria, não haverá vantagem na desaposentação para qualquer segurado. Pelo menos em tese.
Em outras palavras, ainda que se tenha chegado à conclusão de que a desaposentação permanece incólume, até então, em favor do servidor público vinculado ao RPPS, o horizonte cinzento se avizinha para extirpar o brilho da vantagem.
No mais, não se pode deixar de criticar a atuação do Poder Judiciário diante da grande ilusão criada em torno da desaposentação. Todos acreditaram na sua conformidade jurídica avalizada pelo seu órgão de cúpula, competente para dizer o direito em sede infraconstitucional – o Superior Tribunal de Justiça. E, mais uma vez, o Supremo Tribunal Federal põe por terra a última palavra[27]. Muito preocupante.