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Relativizando a tortura ou o retorno da barbárie

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Agenda 17/03/2017 às 11:10

Trata da relativização da garantia de não ser torturado na contemporaneidade e de sua insustentabilidade ética e jurídica.

Realmente não é possível conceber a História como uma sucessão linear de fatos e muito menos dividi-la, a não ser para fins didáticos e esquemáticos, em fases estanques.

A tortura, que já foi legitimada como meio de obtenção de prova, mormente a confissão, há bastante tempo tem sido rechaçada, seja pela sua desumanidade (relativa não somente ao torturado, mas até mesmo ao torturador), seja pela sua inépcia, especialmente quanto a uma suposta “confissão”. Parecia que as lições de Beccaria[1] e Verri[2] haviam sido absorvidas em definitivo e que somente marginais do intelecto e da humanidade ainda poderiam recorrer a esse tipo de conduta, mesmo assim sem amparo legal, muito ao reverso, cometendo crime grave, seja nos ordenamentos jurídicos internos ou internacionais.

Entretanto, como já explicitado acima, a tortura, enquanto fenômeno histórico também não comporta divisões em fases estanques e muito menos a ilusão de seu fim, ainda que sob o aspecto legalizado. Em sua análise estritamente histórica da tortura, Peters demonstra como essa prática infame se estende pelos séculos e chega à contemporaneidade. [3]

Sempre é bom lembrar o que poeticamente nos ensina Quintana:

“A História não é uma série de slides parados, separados uns dos outros, como nos antigos compêndios de História”. [4]

O fato é que em pleno século XXI e mesmo no seio de supostas democracias consolidadas, vão surgindo defensores da prática da tortura institucionalizada (nem é preciso falar de sua tolerância marginal). Como sempre não faltam as invocações das famigeradas “razões de Estado”, que em todos os tempos têm surgido para os homens como justificação admissível para qualquer crime ou barbaridade. [5]

Greco expõe a discussão atual sobre o tema e seu acirramento em face do terror global:

“Por conta disso tudo, novas discussões têm sido realizadas sobre a possibilidade/necessidade do uso oficial da tortura como mais um instrumento de ‘defesa’ contra o terrorismo. Essas discussões ocorrem, principalmente, em países que vivem, ou pelo menos já vivenciaram, as consequências dos atos terroristas, e entendem que o uso  oficial da tortura terá o condão de auxiliar o combate a essas células criminosas, que contam, cada dia mais, com a simpatia de jovens, cujas mentes vêm sendo ‘lavadas’ com discursos mentirosos e doentios.

É comum, durante as discussões jurídicas, o argumento de que nãoexistem direitos absolutos, e, hoje, a utilização da tortura, como forma não somente de obter a confissão pela prática de determinados crimes mas, principalmente,  como meio de investigação, a fim de identificar agentes terroristas, evitando-se o cometimento de atentados, tem sido corriqueiramente mencionada, principalmente na Europa e nos Estados Unidos”. [6]

Há uma espécie de polarização dos entendimentos acerca dessa questão. Uns entendem que a tortura deveria ser regulada e aplicada novamente de forma institucional para certos casos graves. Outros (a nosso ver com plena razão e sanidade mental) advogam a tese de que a tortura não é jamais admissível em quaisquer circunstâncias e nunca mais deve ser institucionalizada.

Retornando a Greco vale explicitar o exemplo mais usado para defender a tese da “redescoberta” da tortura como meio de investigação:

“Um dos exemplos mais utilizados para justificar a discussão sobre o uso legítimo da tortura diz respeito à chamada bomba – relógio. Assim,de acordo com a discussão mais atual, se um terrorista, v.g.,  for surpreendido numa escuta telefônica, dizendo que havia colocado a bomba – relógio no local acordado e, em razão desse contato telefônico, que estava sendo monitorado em tempo real, é descoberto seu endereço e sua prisão realizada antes da detonação do explosivo, pergunta-se: Seria possível o uso da tortura, com o fim de descobrir o local onde havia sido colocado o artefato explosivo e, consequentemente, salvar a vida ou preservar a integridade física de inúmeras pessoas”? [7]

O próprio Greco cita como resposta o escólio de Terestchenko ao qual temos acesso:

“Pressupõe (a questão da bomba – relógio) que os serviços de informação ou a polícia saibam com absoluta certeza, que detiveram um terrorista prestes a cometer um atentado. Mas este pressuposto é extremamente improvável. Trata-se de descobrir somente a localização da bomba e a hora exata de seu disparo iminente, porque o resto já é conhecido? As coisas não são bem assim. Em todos os casos conhecidos, a iminência do ato – que deve ser questão de horas, talvez de dias - é ignorada: no máximo é considerada uma eventualidade. É possível que a tortura possa revelar essa informação, mas, como não existe um conhecimento prévio, qual a razão da tortura neste prisioneiro? Podemos ter certeza de que milhares de indivíduos não serão entregues a semelhantes sevícias porque um ou mais deles poderiam estar informados de um futuro projeto de atentado? Na falta de informações prévias, devidamente comprovadas e confirmadas, a hipótese da ‘bomba – relógio’ traz o risco de abrir precedentes a abusos, em contradição com suas premissas, que são extremamente rigorosas” (interpolação nossa). [8]

E com ainda mais ênfase prossegue o autor:

“Ora, a justificativa da tortura implica que as autoridades tenham absoluta certeza, caso contrário é de fato uma porta aberta para todos os excessos. Qualquer um poderá ser suspeito de dispor de informações sobre possíveis futuros atentados.Lembremos, correndo o risco de nos repetir, que o argumento da ‘bomba – relógio’ exige que o atentado seja iminente, e que se tenha conhecimento dele. Esta dupla condição do conhecimento seguro da iminência da explosão e da oportunidade da tortura é exigida pelo paradigma, mas na realidade o que as autoridades avaliam é a possibilidade, maior ou menor, deste acontecimento. Portanto, tratar-se-ia de um simples risco; a tortura não pode ser considerada legítima de acordo com os próprios requisitos desse paradigma. Em situação de incerteza, milhares de inocentes é que serão entregues nas mãos dos carrascos”. [9]

Ademais, retomando os ensinamentos de Greco:

“Liberar o uso oficial da tortura seria igualar o Estado do criminoso, decretando-se, consequentemente, a sua total falência na obrigação de proteger a população em geral, com a preservação de seus direitos fundamentais”. [10]

Isso porque

“A tortura, não importando a situação,, não se considerando a sua motivação, é uma abominação que não deve ser tolerada pelo Estado e este deve punir com rigor os funcionários públicos que a praticam”. [11]

Mas, não poderia a tortura, ainda que afastada a tese da proporcionalidade, ser acobertada por uma excludente de antijuridicidade de acordo com a análise de algum caso concreto, tais como a legítima defesa de terceiro ou o estado de necessidade?

Em estudo monográfico sobre o tema, Sabrina Kim esclarece, após apresentar farta discussão, que as duas excludentes aventadas “só podem ser arguidas pelo cidadão, e não pelo Estado”. [12] Por seu turno, Roxin afirma claramente a antijuridicidade de qualquer conduta de tortura e somente considera “pensável” eventual “exculpação” supralegal em situações – limite. E isso não significa jamais admitir a regulamentação legal da tortura ou mesmo sua “justificação”. O autor se refere a mera “exculpação”, não afastando a configuração do “injusto penal”. [13] Resta claro que

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“ele também rechaça, de modo decidido, certos recentes esforços em aplicar o estado de necessidade ou a legítima defesa à tortura, quando ela seja o único meio para salvar vidas ameaçadas, e releva que, no máximo, pode-se cogitar de uma exculpação”.[14]

Embora a argumentação de Terestchenko seja relevante porque não se pode basear uma regra jurídica, ainda mais uma norma restritiva dos direitos individuais, num simples exemplo hipotético, até mesmo possível, mas que sequer chega à casa da probabilidade. [15]Inobstante tal assertiva seja importante sob o aspecto pragmático, tem razão também Luís Greco ao afirmar que é preciso aprofundar as razões para o rechaço absoluto da tortura em argumentos sólidos sob o ponto de vista do conteúdo intrínseco. Em suas palavras, somente com a análise dessa espécie de argumentos se pode “testar a firmeza da convicção” contra a tortura, ainda que em casos extremos hipotéticos. E, neste aspecto, a atitude de esquiva do caso da “bomba – relógio”, com referência à sua “diminuta probabilidade de ocorrência”, não é suficiente, embora não seja desprezível. [16]

Há implicações de fundo ético inadmissíveis numa pretensa relativização da prática da tortura. O autor observa, por exemplo, que a admissão da tortura em certos casos de forma legalmente sustentável significa a proposição implícita de que “a dignidade é algo que se pode perder em razão de um comportamento prévio”, o que se pode denominar de “regra da decadência” da dignidade humana. Ou seja, um ser humano simplesmente pode “decair” de seu “status dignitatis” devido ao seu comportamento. A dignidade humana se tornaria algo “disponível”, inexistindo uma “dignidade per se”, sustentada no “mero fato de ser um ser humano”. Essa dignidade humana precária

“seria uma qualidade externa que se agrega aos seres humanos que a merecem, e que, por isso, também pode ser deles retirada ou sujeita a uma condição resolutiva cuja verificação transformaria o afetado num indivíduo de segunda categoria”. [17]

Neste ponto é impossível não perceber que o renascimento da malfadada ideia da tortura institucionalizada tem enorme afinidade com a chamada “Teoria do Direito Penal do Inimigo”. Nesse pensamento “um indivíduo que não admite ser obrigado a entrar em um estado de cidadania não pode participar dos benefícios de pessoa”. Ora, então é claro e evidente que a pessoalidade, a condição humana é algo descartável, opcional, seja para o indivíduo, seja para a sociedade ou o Estado. Abre-se a brecha para a classificação de pessoas e não – pessoas, o que já provocou tantas atrocidades na História (v.g. nazismo, escravidão etc.). [18]

Além disso, Luís Greco chama a atenção para o fato de que também está implícito que “a dignidade é algo que apenas se tem de respeitar na medida em que os custos desse respeito não ultrapassem um determinado limite”. É o que o autor chama de “regra dos custos”. A questão fica em um plano de cálculo utilitário que enseja a possibilidade de instrumentalização das pessoas “para fins alheios”. Note-se que, ao se admitir tal regra, a tortura não precisa mais se limitar a terroristas e criminosos, mas pode se estender a terceiros (v.g. os filhos e entes queridos desses criminosos ou terroristas). Afinal, tudo está submetido a um simples cálculo de custo – benefício e não erigido sobre uma base principiológica consistente. [19]

Acontece que, na verdade, a proibição da tortura se dá porque ela consiste em um ato de exclusão espúrio; com ela se “exclui o indivíduo do círculo de cidadãos em cujo nome o Estado pode pretender atuar”. [20]

Efetivamente

“Submeter a dignidade humana a uma reserva de custos é, na verdade, renunciar à dignidade, vez que dignidade significa, primariamente, um valor intrínseco completamente independente dos interesses dos demais. Em outras palavras, o respeito à dignidade humana é uma consideração deontológica (em sentido kantiano), cuja obrigatoriedade é de todo independente das boas e más consequências que o atendimento dessa exigência pode ter”. [21]

E conclui o autor em destaque com extremado acerto:

“Uma proibição de tortura inviolável quaisquer que sejam as circunstâncias e, assim, absoluta, somente pode ser fundamentada por quem argumente de uma perspectiva deontológica e, por isso, independente de qualquer empirismo”. [22]

Não bastasse isso, a admissão da tortura para casos excepcionais se apresenta como uma porta aberta para a expansão de outras quebras de direitos fundamentais e a transmutação da excepcionalidade em regra. Há o iminente risco de uma ladeira ou “declive escorregadio” (slipperyslope). [23] Na realidade, não há como saber quem será a vítima da aplicação da tortura. O próprio defensor da tese de sua aplicação ou seus parentes e amigos mais íntimos, amanhã podem ser os sujeitos passivos dessa barbaridade, tal como aconteceu com a guilhotina na Revolução Francesa.

A História já comprovou que não é correta a assertiva segundo a qual “se deve temer mais os particulares do que o Estado”. [24] O Estado, dotado de poderes exorbitantes, sem os limites do garantismo negativo, pode facilmente se convolar, essa é, na verdade, sua tendência, em um enorme carrasco cego e sanguinário.

A realidade, sob o prisma normativo interno e externo, é que a Constituição Federal abomina a prática da tortura e não prevê qualquer exceção a essa regra (inteligência do artigo 5º., III e XLIII, CF). Por seu turno, a Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, ratificada em solo pátrio em 20 de julho de 1989, assim estatui em seu artigo 5º.:

“Não se invocará nem admitirá como justificativa do delito de tortura a existência de circunstâncias tais como o estado de guerra, a ameaça de guerra, o estado de sítio ou de emergência, a comoção ou conflito interno, a suspensão das garantias constitucionais, a instabilidade política interna, ou outras emergências ou calamidades públicas.

Nem a periculosidade do detido ou condenado, nem a insegurança do estabelecimento carcerário ou penitenciário podem justificar a tortura”.

Ora, em estreito resumo o que a normativa convencional está a dizer é que simplesmente não existe “desculpa” para a tortura. Não há, em suma, motivação que se preste como idônea para a admissão da prática da tortura.

Trata-se de um “direito absoluto” que não comporta exceções ou aplicação de proporcionalidade ou razoabilidade. Em geral se parte para a defesa da tortura institucionalizada exatamente afirmando a relatividade dos direitos fundamentais individuais, mas se olvida que essa assertiva não é válida nem para a tortura nem para o direito de não ser escravizado. Esses são direitos fundamentais inalienáveis e inquebrantáveis, seja por qualquer pretexto ou circunstância.

Imprescindível o ensinamento de Bobbio:

“Inicialmente cabe dizer que, entre os direitos humanos, como já se observou várias vezes, há direitos com estatutos muito diversos entre si. Há alguns que valem em qualquer situação e para todos os homens indistintamente: são os direitos acerca dos quais há exigência de não serem limitados nemdiante de casos excepcionais, nem com relação a esta ou àquela categoria, mesmo restrita, de membros do gênero humano (é o caso, por exemplo,  do direito de não ser escravizado e de não sofrer tortura). Esses direitos são privilegiados porque não são postos em concorrência com outros direitos, ainda que também fundamentais” (grifo nosso). [25]

É preciso ter em mente que liberar a tortura com base em qualquer ideia de proporcionalidade, legislar a tortura, ainda que para limitá-la a certos casos excepcionais, significa esgarçar o tecido social civilizatório e ingressar na barbárie mais profunda e obscura. Nas palavras bem postas de Terestchenko:

“Legalizar a tortura, seja positivamente, autorizando certos métodos, seja negativamente,deixando-os escapar à sanção do juiz, significa mais do que votar uma ‘lei abominável’ ou uma ‘lei criminosa’: é fazer da lei um germe destruidor do vínculo social, ou seja,  armar a lei contra a  sociedade  que o Estado tem como finalidade regular. Na realidade, é uma espécie de suicídio político”. [26]

Nas palavras conclusivas de Mellor em sua obra sobre a Tortura ao longo dos tempos:

  “no hayorden humano construido sobre elenvilecimientodelHombre, ni triunfo de classe sobre las ruinas delEspíritu, niJusticia levantada sobre elCrimen, aunqueéstesea policial”. [27]

Não se olvide ainda que qualquer legislação no Brasil que pretenda oficializar a prática de tortura constituiria um “retrocesso social”. E sobre o tema, como assenta Cambi, existe a chamada “cláusula de proibição de retrocesso social”, segundo a qual os direitos fundamentais “já consolidados não podem ser suprimidos” nem mesmo “por via de novas Constituições ou Convenções Internacionais”. Essa “cláusula de proibição de retrocesso social” é prevista no “Pacto Internacional sobre Direitos Civis e Políticos” (artigo 5º., § 1º.) e no “Pacto Internacional sobre Direitos Econômicos, Sociais e Culturais” (artigo 5º., § 1º.). A Constituição Portuguesa prevê expressamente a “proibição de retrocesso social” em seu artigo 18.3. No Brasil, afora as normativas internacionais ratificadas, tal proibição pode ser inferida da “garantia do devido processo legal em sentido substancial”, da “noção de Estado Democrático de Direito” (artigo 1º., “caput”, CF) e também da “cláusula pétrea contida no art. 60, § 4º., IV, CF”. [28]

Como salienta Lage, o Estado Democrático de Direito se caracteriza por uma abertura à internacionalização, ao mundo, ao cosmopolitismo. E isso está mais do evidenciado no artigo 4º. e incisos da CF, especialmente os incisos II e IX, que tratam, respectivamente, da “prevalência dos direitos humanos” e da “cooperação entre os povos para o progresso da humanidade”. [29] Ora, como se pode falar em “prevalência dos Direitos Humanos” e “cooperação para o progresso da humanidade” quando se admita um tamanho “retrocesso” que seria a admissão da tortura institucionalizada? Percebe-se claramente que nesse contexto a “cláusula de proibição de retrocesso social” de que se tratou acima está, no mínimo, implícita na ordem constitucional brasileira, para não dizer propriamente explícita ao reger-se o país nas relações internacionais por uma busca pelo “progresso” da humanidade.Até pelo Princípio Lógico da Não – Contradição, se conclui que a busca de “progresso” humano não se pode realizar por via de “retrocessos” sociais.

E o retrocesso é mais que óbvio, pois como expõe Wolkmer, as chamadas “revoluções liberais” são marcadas por três pontos essenciais: a)o aspecto econômico (mercado livre, propriedade privada e liberdade de iniciativa); b)o aspecto político – jurídico (Estado de  Direito, soberania do povo, supremacia da Constituição, separação de poderes e direitos civis e políticos) e c)o aspecto ético – filosófico (liberdade individual, tolerância, otimismo vital e individualismo). [30] Ora, tais “revoluções” já se operaram e trouxeram conquistas constitucionais e convencionais no Brasil e no mundo, embasadas nesses pontos essenciais (com maior ênfase no caso da tortura para os itens destacados em itálico). Portanto, mais que óbvia é a conclusão de que de uma “revolução” ou de várias “revoluções” ocorridas ao longo dos séculos e suas conquistas, estar-se-ia promovendo uma “involução” evidente com o retorno da tortura institucional.

Além disso, não se pode deixar de lado a influência dos tratados e convenções internacionais no âmbito interno. As normas que estabelecem internacionalmente, conforme acima demonstrado, a “proibição de retrocesso”, vedam o bárbaro retorno à prática da tortura no sistema processual penal. E mais, a norma cogente e inflexível do artigo 5º. da Convenção Interamericana para Prevenir e Punir a Tortura, não admite exceções ou justificativas para sua prática, de modo que não há espaço argumentativo em contrário.

Ainda tratando do artigo 4º., CF, Lage assim se manifesta, trazendo em reforço o escólio de Lafer:

“O referido artigo é indicativo da abertura ao Direito Internacional como uma das dimensões caracterizadoras do Estado Democrático de Direito, vez que os princípios nele positivados estão próximos daqueles que regem a comunidade internacional. (...). O art. 4º. demonstra, assim, a complementaridade entre o Direito Internacional Público e o Direito Constitucional e também a irradiação de conceitos presentes no âmbito dos Direitos Humanos para o plano do Direito público interno”. [31]

A relação transdisciplinar entre o Direito Constitucional brasileiro e o Direito Internacional não permite, de forma alguma, prosperar qualquer argumentação quanto à aceitação da tortura como meio de obtenção de prova ou para qualquer finalidade, sob qualquer pretexto. Mas, e o Terrorismo, e as Organizações Criminosas? Para além do fato já repisado de que não há pretextos para o acatamento argumentativo neste aspecto, não se pode esquecer que o que se operaria nada mais seria do que a troca do Terrorismo de grupos ou indivíduos pelo chamado “Terrorismo de Estado” e do Crime Organizado pela instituição de um “Estado Criminoso”.

Fato é que muito da insegurança que motiva a cogitação de se apelar para o extremo da tortura na apuração de certas infrações, está no fato de que vivemos em um tempo no qual “a despeito” de todo “acúmulo de conhecimentos positivos”, “jamais o homem soube menos quem ele era”. [32] Há uma lamentável perda da noção de humanidade, uma equalização entre o homem e as coisas, chegando-se à reificação zoológica no seio da qual se esvanece o valor e o conceito de humanidade, de pessoalidade, que se conformou na ética cristã, passou de empréstimo secularizado pelo Iluminismo e chegou a trancos e barrancos até a atualidade. Como bem aduz Tercio Sampaio Ferraz Júnior, em apresentação da obra de Marília Muricy, na atualidade torna-se difícil a referência a “uma imagem coerente do homem”. Isso porque vivemos em

“uma sociedade obsessivamente preocupada em definir e proclamar uma lista crescente de direitos humanos, mas impotente para fazer descer esses direitos do plano de um formalismo abstrato e inoperante e leva-los a uma efetivação concreta nas instituições e práticas sociais”. [33]

Também não é desprezível o clamor midiático e sua influência nefasta, contaminando o mundo das ideias e até mesmo fazendo emergir do nada supostos “especialistas” em todas as mais diversas áreas, principalmente na Segurança Pública e no Direito. Conforme bem destaca Henry:

“A mídia corrompe tudo em que toca”. [34]Dá voz à mediocridade e à ignorância, empresta a fala “àqueles cujo discurso se tem certeza de ser entendido: aqueles que não sabem nada e não têm nada a dizer”. [35]

Ela é um Midas ao reverso, transformando em excremento tudo em que põe a mão. E o pior é que diversamente do ouro, o excremento é comestível. Ao final, esse regime irá destruir o consumidor, mas levará algum tempo.

Sim, somente numa situação em que se ensaia (na melhor das hipóteses) um chafurdar na lama da barbárie, é que se pode conceber ideias como a do retorno da tortura institucionalizada. É inegável a lição de Mário Ferreira dos Santos de que “uma das mais acentuadas características do barbarismo” é a apresentação da “força como superior ao direito”. [36]E nesse contexto “o direito afasta-se do campo da Ética para integrar-se apenas ao campo da Política”. [37]

Institucionalizar a tortura, ainda que excepcionalmente (ao menos no início), equivale a jogar no lixo o mínimo civilizatório conquistado a duras penas pela humanidade ao longo dos séculos.

Sobre o autor
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos. Relativizando a tortura ou o retorno da barbárie. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5007, 17 mar. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/56419. Acesso em: 24 nov. 2024.

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