9 OS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL
O Título VI do Código Penal prevê os crimes contra a Dignidade Sexual, uma extensão da própria dignidade da pessoa humana. A antiga redação “crimes contra os costumes” (anterior às modificações da Lei n.º 12.015/2009) era imprópria, já que “o foco da proteção já não era mais a forma como as pessoas deveriam se comportar sexualmente perante a sociedade do século XXI, mas, sim, a tutela da sua dignidade sexual”[73].
O professor Greco ressalta a importância axiológica trazida por essa modificação da redação do título, eis que
O nome dado a um título ou mesmo a um Capítulo do Código Penal tem o condão de influenciar na análise de cada figura típica nele contida, pois que, por meio de uma interpretação sistêmica ou mesmo duma interpretação teleológica [...], pode-se concluir a respeito do bem que se quer proteger, conduzindo, assim, o intérprete [...][74].
Dessa maneira, o foco da tutela deixou de se tratar de uma
Eleição arbitrária de um modelo de moralidade, em prejuízo de outros igualmente possíveis. Trata-se, isso sim, de preservar uma concepção pluralista de organização social, com respeito recíproco como padrão de convivência dialética e de tolerância entre as diferenças[75].
Em outras palavras, em nome da liberdade, fundada no art. 5º da CF, a proteção estatal relacionada aos crimes sexuais deveria fazer frente às violações contra a liberdade e dignidade sexuais, deixando para trás os antigos dogmas de proteção de um modo de vida mais ou menos socialmente recomendável, concepções essas de índole individual, não cabendo ao Estado, diante de uma sociedade pluralista, escolher como cada indivíduo se comportará a partir da internalização de suas próprias convicções e vontades.
Dentre as principais alterações inauguradas pela Lei n.º 12.015/2009, merece destaque a subsunção do tipo “atentado violento ao pudor” à nova redação do crime de estupro (art. 213, CP) – o qual será tratado posteriormente com mais detalhes – bem como a modificação do termo inicial da prescrição da pretensão punitiva quando se tratar de vítima menor de 18 anos, cujo início do prazo, nos termos do art. 111, inciso V do CP, começará a correr da data em que a pessoa completar 18 anos, salvo se a esse tempo já houver sido proposta a ação penal.
Ressalte-se que os crimes contra a dignidade sexual são vários, mas este trabalho só se aprofundará na abordagem ao estupro de vulnerável.
9.1 ESTUPRO
O crime de estupro está previsto no Capítulo I – Dos Crimes contra a Liberdade Sexual, do título VI – Dos Crimes contra a Dignidade Sexual, da parte especial do Código Penal.
A partir das importantes modificações trazidas pela Lei n.º 12.015/09, imprescindível se torna a transcrição da nova redação do crime de estupro.
Art. 213. Constranger alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso
Pena - reclusão, de 6 (seis) a 10 (dez) anos
§ 1º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave ou se a vítima é menor de 18 (dezoito) ou maior de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 12 (doze) anos.
§ 2º Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos[76]
Dado o seu alto grau de reprovabilidade, tanto o estupro simples quanto o estupro de vulnerável estão elencados no rol de crimes hediondos (art. 1º, V e VI da Lei n.º 8.072/90), o que importa dizer que são inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia (art. 5º, XLIII, CF), bem como a progressão de regime pressupõe o cumprimento de 2/5 da pena para o condenado primário e 3/5 para o reincidente (art. 2º da referida Lei) e, para a apuração de tais delitos, o prazo para a prisão temporária é dilatado (duração de 30 dias) se comparado aos crimes comuns (cuja duração é de apenas 5 dias (art. 2º, Lei n.º 7.960/89).
9.1.1 Considerações iniciais
O crime de estupro, antes das referidas modificações, incriminava apenas a conjunção carnal, ou seja, a cópula vaginal, de maneira que apenas o homem poderia ser o autor do crime, enquanto apenas a mulher, a vítima. Daí ser chamado de “crime bipóprio[77]” (afinal, exigia condição especial dos dois sujeitos, ativo – homem – e passivo – mulher).
Já os atos libidinosos diversos da conjunção carnal eram tratados pelo extinto art. 214 do CP, com a rubrica “atentado violento ao pudor”.
Atendendo às reivindicações doutrinárias, a Lei n.º 12.015/2009 unificou, no art. 213 do CP, as figuras do estupro e do atentado violento ao pudor,
Evitando-se, dessa forma, inúmeras controvérsias relativas a esses tipos penais, a exemplo do que ocorria com relação à possibilidade de continuidade delitiva, uma vez que a jurisprudência de nossos Tribunais, principalmente os Superiores, não era segura[78].
Dessa maneira, tanto a conjunção carnal quanto os atos libidinosos dela diversos passaram a ser considerados unicamente estupro.
Uma leitura precipitada levaria à conclusão de que, com a revogação do art. 214 do CP (atentado violento ao pudor), haveria lacuna legal tendente a descriminalizar os atos típicos de atentado violento ao pudor (traduzidos no constrangimento, mediante violência ou grave ameaça, a praticar ato libidinoso diverso da conjunção carnal).
No entanto, tal raciocínio não merece prosperar. Pelo contrário, ele cede lugar ao princípio da Continuidade Normativo-Típica, revelando, dessa maneira, que a conduta (de praticar atos libidinosos diversos da conjunção carnal contra a vontade da vítima) não deixou de ser proibida, mas apenas foi enquadrada em outra figura típica (antes, havia a previsão de tipos diferentes/autônomos, enquanto hoje, a figura do art. 213 abarca tanto o estupro quanto o atentado violento ao pudor).
Raciocínio semelhante aconteceu com o crime de Tráfico de Drogas (antes, previsto no art. 12 da Lei n.º 6.368/76, hoje, contido no art. 33 da Lei n.º 11.343/06).
9.1.2 Conduta
Pune-se o constrangimento, consistente na utilização de violência (vis corporalis) ou grave ameaça (vis compulsiva), dirigido a pessoa determinada (qualquer que seja o sexo) com o fim de ter conjunção carnal ou a praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso.
Segundo o professor Rogério Greco, a violência consiste na utilização de força física – nesse sentido, as vias de fato e lesões corporais leves serão absorvidas pelo estupro simples, pois já fazem parte da violência empregada, enquanto a grave ameaça pode ser direta, indireta, implícita ou explícita, pouco importando se o mal prometido pelo agente seja justo ou injusto (a contrário do que acontece com o art. 147 do CP).
Continua o doutrinador
Assim, por exemplo, poderá ser levada a efeito diretamente contra a própria pessoa da vítima ou pode ser empregada, indiretamente, contra pessoas ou coisa que lhe são próximas, produzindo-lhe efeito psicológico no sentido de passar a temer o agente. Por isso, a ameaça deverá ser séria, causando na vítima um fundado temor do seu cumprimento[79].
Já o professor Sanches alerta para a amplitude e vagueza da expressão “outro ato libidinoso”. Por ser porosa, deve ser interpretada com cautela, de maneira a não causar injustiças, a ponto de equiparar um beijo lascivo a um coito per anum[80].
No mesmo sentido, atento ao princípio da proporcionalidade (já estudado neste trabalho), a conduta deve possuir alguma relevância, haja vista a pena mínima cominada ao estupro ser de 6 anos de reclusão.
Desta feita, “passar as mãos nas coxas, nas nádegas ou nos seis da vítima [...] configuram [...] a contravenção penal do art. 61 da lei especial, quando praticados um lugar público [...]”[81], ou seja, seria uma contravenção penal[82] ao invés de configurar o estupro.
9.1.3 Sujeitos do crime
Trata-se um “crime bicomum” [83], vez que qualquer pessoa pode ser o sujeito ativo ou passivo, não mais exigindo a lei condição especial (ser homem ou mulher). Ou seja, tanto o homem pode ser violentado, quanto a mulher pode ser a ofensora do estupro.
9.2 ESTUPRO DE VULNERÁVEL (ART. 217-A)
O art. 217-A do Código Penal, instituído pela Lei n.º 12.015/09, protege o vulnerável quando da prática de ato sexual.
Antes dessa redação, havia a chamada “violência ficta”, na qual havia a previsão, pelo art. 224 do CP, de três hipóteses de violência presumida para se caracterizar crime contra a dignidade sexual, quais sejam, quando a vítima: (a) não fosse maior de quatorze anos; (b) fosse alienada ou débil mental, tendo o agressor sabido dessa circunstância; (c) não pudesse, por qualquer outro motivo, oferecer resistência[84].
Hoje, o delito do art. 217-A é autônomo, inclusive com a cominação das próprias penas, sendo desnecessária a conjugação dele com outro dispositivo (tanto é que, com a sua edição, houve a revogação do art. 224 do CP).
Nesse sentido,
Não há mais que cogitar de presunção relativa de violência, configurando-se o crime na conjunção carnal ou ato libidinoso praticados com menor de 14 anos, ainda quando constatado, no caso concreto, ter ele discernimento e experiência sexuais [...]. É irrelevante também se o menor já foi corrompido ou exerce a prostituição, porque se tutela a dignidade sexual da pessoa independentemente de qualquer juízo moral [...][85].
O motivo da mudança legislativa, segundo Greco, foi que
Nossos tribunais [...] começaram a questionar a presunção de violência [...], passando a entende-la, em muitos casos, como relativa, ao argumento de que a sociedade do final do século XX e início do século XXI havia modificado significativamente, e que os menores de 14 anos não exigiam a mesma proteção que aqueles que viveram quando da edição do Código Penal, em 1940[86].
Dada a sua importância, vale anunciar o novo tipo penal do art. 217-A, in verbis:
Art. 217-A. Ter conjunção carnal ou praticar outro ato libidinoso com menor de 14 (catorze) anos:
Pena - reclusão, de 8 (oito) a 15 (quinze) anos.
§ 1º Incorre na mesma pena quem pratica as ações descritas no caput com alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência.
§ 2º (VETADO)
§ 3º Se da conduta resulta lesão corporal de natureza grave
Pena - reclusão, de 10 (dez) a 20 (vinte) anos.
§ 4º Se da conduta resulta morte:
Pena - reclusão, de 12 (doze) a 30 (trinta) anos[87]
Dessa maneira, pode-se resumir que o estupro de vulnerável possui os seguintes elementos: (1) conduta de ter conjunção carnal ou outro ato libidinoso; (2) contra vítima vulnerável (considerada a pessoa menor de 14 anos, o acometido por enfermidade ou deficiência mental ou aquele que, por qualquer causa, não puder oferecer resistência).
9.2.1 Vulnerabilidade penal no estupro de vulnerável
Conforme dito anteriormente, houve uma necessidade natural, decorrente de discussão travada entre a doutrina e a jurisprudência, de se discutir a problemática da presunção de violência, não se chegando a consenso se se trataria de uma presunção relativa, que cederia diante da situação casuística, ou absoluta, sendo inquestionável, portanto[88].
Dessa forma, com a edição da novel proteção, a discussão sobre a presunção de violência cede espaço à ideia de vulnerabilidade.
Segundo Fernando Capez, casos de doença mental, embriaguez, idade avançada, perda momentânea de consciência ou deficiência intelectual são exemplos de vulnerabilidade. Para ele, vulnerável
É qualquer pessoa em situação de fragilidade ou perigo. A lei não se refere aqui à capacidade para consentir ou à maturidade sexual da vítima, mas ao fato de se encontrar em situação de maior fraqueza moral, social, cultural, fisiológica, biológica etc. [...] A ideia de vulnerabilidade é um conceito novo muito mais abrangente, que leva em conta a necessidade de proteção do Estado em relação a certas pessoas ou situações[89].
O professor Bitencourt alerta que todos nós, seres humanos, somos mais, ou menos, vulneráveis, mas não é dessa vulnerabilidade eventual, meramente circunstancial, que trata o art. 217-A do CP. Esclarece ele que
Observando-se as hipóteses mencionadas como caracterizadoras da condição de vulnerabilidade, concluiremos, sem maiores dificuldades, que o legislador optou por incluir, nessa classificação, pessoas que são absolutamente inimputáveis (embora não todas), quais sejam, menor de quatorze anos, ou alguém que, por enfermidade ou deficiência mental, não tem o necessário discernimento para a prática do ato, ou que, por qualquer outra causa, não pode oferecer resistência[90].
Já o jurista Guilherme Nucci chama a atenção para o fato de que, mesmo já não havendo a discussão sobre presunção absoluta ou relativa da violência, ainda deve haver análise casuística sobre a ideia de vulnerabilidade (se seria absoluta ou relativa). Diz o autor que
Agora, subsumida na figura da vulnerabilidade, pode-se tratar da mesma como sendo absoluta ou relativa. Pode-se considerar o menor, com 13 anos, absolutamente vulnerável, a ponto de seu consentimento para a prática do ato sexual ser completamente inoperante, ainda que tenha experiência sexual comprovada? Ou será possível considerar relativa a vulnerabilidade em alguns casos especiais, avaliando-se o grau de conscientização do menor para a prática sexual? Essa é a posição que nos parece mais acertada. A lei não poderá, jamais, modificar a realidade e muito menos afastar a aplicação do princípio da intervenção mínima e seu correlato princípio da ofensividade [...][91].
Em sentido contrário, Rogério Greco sustenta que o critério adotado pelo legislador foi objetivo e, portanto, não comporta discussão sobre a relatividade ou não da ideia de vulnerabilidade, pois
A determinação da idade foi uma eleição político-criminal feita pelo legislador. O tipo não está presumindo nada, ou seja, está tão somente proibindo que alguém tenha conjunção carnal ou pratique outro ato libidinoso com menor de 14 anos, bem como aqueles mencionados no § 1º do art. 217-A do Código Penal[92].
Assim, em que pese a alteração legislativa, é de se notar a sobrevida da divergência doutrinária acerca das circunstâncias em que deve incidir a norma protetora aos ditos incapazes, discussão essa até então travada sob a ótica dos efeitos e da extensão da expressão presunção de violência, mas que agora está moldada sob a ideia da vulnerabilidade.
Dessa maneira, pode-se sintetizar que a presunção de violência trazida pelo art. 217-A do Código Penal pode derivar de três situações: (a) menor de quatorze anos; (b) enfermidade ou deficiência mental; (c) aquele que, por outra circunstância, não pode oferecer resistência.
Quanto à primeira situação, o legislador adotou o critério cronológico (da idade) para dizer que, pela imaturidade, alguém com idade inferior a 14 anos não pode consentir validamente para a prática de atos sexuais. O agente deve, necessariamente, conhecer a idade da vítima para incorrer no crime em epígrafe. Caso o agente desconheça a real idade do menor, imaginando trata-se de alguém com idade superior à idade real, seja pelos seus atributos físicos, seja pelo grau de amadurecimento compatíveis com o de pessoas mais velhas, pode incorrer em erro de tipo (art. 20, CP), afastando, portanto, o dolo da conduta.
Já em relação à segunda hipótese, será estupro de vulnerável aquele praticado em face de pessoa portadora de enfermidade ou deficiência mental que, por essa circunstância, não tenha o necessário discernimento para a prática do ato sexual. Por esse ser o objeto central do presente trabalho, será tratado em tópico específico.
Por fim, em relação à terceira hipótese, pratica crime aquele que se aproveita da vítima, a qual, por qualquer outra circunstância, não pode oferecer resistência ao ato sexual, tais como os casos de embriaguez, coma, hipnose, etc. Aqui, vale lembrar que o que se objetiva tutelar é a dignidade humana, consubstanciada na possibilidade de manifestação de vontade para o ato sexual, a qual será nula (ou extremamente reduzida) na medida em que alguém tenha reduzida a sua capacidade de consentir e, em caso de dissenso, não possa oferecer resistência para prevalecer sua vontade.