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A aplicabilidade do acordo de leniência na Lei nº 8.429/92 e sua relação com o ponto nº 4 do art. 8 da Convenção das Nações Unidas contra a corrupção

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2 O ACORDO DE LENIÊNCIA NO ORDENAMENTO JURÍDICO BRASILEIRO E SUA POSSÍVEL APLICABILIDADE SEGUNDO A MEDIDA 5 DO PROJETO DEZ MEDIDAS CONTRA A CORRUPÇÃO

Reitera-se que o Projeto Dez Medidas Contra a Corrupção foi elaborado pelo parquet federal como um instrumento para buscar uma coerção mais efetiva tanto do crime de corrupção quanto de condutas ímprobas. Ressalta o Ministério Público Federal que as proposições legislativas são desvinculadas de qualquer afiliação político-partidária[6].

A Medida nº 5, responsável por sugerir alterações na Lei de Improbidade Administrativa (Lei nº 8.429/92), propõe três mudanças: a supressão da defesa prévia prevista no art. 17, a criação de varas especializadas e a introdução do acordo de leniência na esfera do processo administrativo de improbidade. É justamente esse ponto final que se alinha ao disposto pelo ponto nº 4 do Artigo 8 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção.

Isso porque o ponto nº 4 do dispositivo em questão institui aos Estados signatários que criem "medidas e sistemas para facilitar que os funcionários públicos denunciem todo ato de corrupção às autoridade (sic) competentes quando tenham conhecimento deles no exercício de suas funções".

No contexto pátio atual, nota-se que houve o crescimento da popularidade do instituto do acordo de leniência, motivado pela Operação Lava Jato. Por essa razão, convém esclarecer aqui que esse instrumento existe em diversos diplomas brasileiros, dentre eles o criminal (Lei 12.850/2013), o comercial (Lei 12.529/2011) e o administrativo / cível (Lei 12.846/2013).

Na atual realidade brasileira, os cidadãos são diariamente bombardeados com notícias acerca do instituto do acordo de leniência, muitas vezes chamado de delação premiada. A atividade jornalística se restringe aos fatos nela narrados, não se adentrando nas questões jurídicas. Neste tópico tratar-se-á, de forma sucinta, do instrumento em suas esferas comercial e cível / administrativa. A matéria criminal não será abordada em razão de o foco deste trabalho ser em práticas ímprobas.

Em primeiro lugar, convém destacar que a abordagem do acordo de leniência nesses três âmbitos será conjunta, por ser difícil fracionar a temática, devido às suas semelhanças.

No que diz respeito à sua aplicação ao Direito Comercial, destaca-se que a lei que o disciplina, a Lei do Conselho Administrativo de Defesa Econômica – CADE (Lei 12.529/2011) visa evitar e punir práticas que venham de encontro ao bom desenvolvimento da ordem econômica. O artigo 1º dessa lei enumera alguns princípios que orientam sua atuação, os quais servem de suporte do sistema econômico nacional.

Acerca da natureza jurídica, ressalta-se que a Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção) possui natureza híbrida, trazendo reflexos cíveis e administrativos, o que se evidencia a partir da leitura das penalidades aplicadas, as quais geram efeitos em ambas as esferas supracitadas, a exemplo do perdimento de bens e da proibição de receber incentivos públicos.

Em primeiro lugar, demonstra-se conveniente tratar de determinados conceitos inerentes ao acordo de leniência. Observa-se que, muito embora o instituto seja amplamente divulgado na mídia, não há uma explicação propriamente dita sobre seu funcionamento.

Martinez (2014, p. 25) cumpre bem esse papel, ao definir que o sujeito leniente é “o órgão ou entidade pública que celebra o acordo”, ao contrário do entendimento equivocado de que o infrator exerceria esse papel. De maneira semelhante, é incorreto afirmar que quem incorre no ilícito seria o chamado “beneficiário” antes mesmo do reconhecimento do acordo, tendo em vista que só adquire essa característica depois da homologação pela a autoridade competente.

Por fim, atesta a autora que a delação premiada consiste em gênero de institutos que culminem em benefícios mediante notícias de fatos ilícitos e seus respectivos agentes. Assim, o acordo de leniência seria uma espécie desse. Portanto, em conformidade com esse entendimento, os termos não são sinônimos, possuindo abrangências distintas.

Em segundo lugar, ressalta-se a consensualidade ínsita ao acordo de leniência, aproximando-se do chamado compliance. Ainda que esse não culmine no exaurimento das penalidades culminadas, a autoridade competente busca sujeitos que participaram da prática para obter informações a respeito.

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Essa consensualidade faz com que a distância entre os órgãos públicos e entes privados se reduzam, permitindo o diálogo entre eles. Por consequência, torna-se menos complexo identificar condutas atentatórias a interesses coletivos, assim como puni-las. É um acordo que tem como objetivo trazer ganhos para ambas as partes: o Poder Público descobre a ilegalidade e quem a integrou suaviza a penalidade a ela culminada.

Contudo, muito embora o raciocínio seja aparentemente simples, essa simplicidade não se revela na prática.

Reitera-se aqui que a abordagem do presente trabalho tem como foco a Lei 12.529/2011 (Lei do Cade) e a Lei 12.846/2013 (Lei Anticorrupção).

O motivo mais conhecido para a celebração do acordo de leniência é a obtenção de informações acerca de condutas que consistam em infrações a interesses coletivos, conforme já se afirmou exaustivamente aqui. Entretanto, essa não é a única razão para a existência do instituto. Fidalgo e Canetti (2016, p. 339-340) tratam de um caráter mais investigativo do acordo, ao afirmar que

A leniência do Estado com o agente que se "arrepende" se justifica pela constatação de que alguns tipos de ilícito, sobretudo quando praticados em coautoria (i.e. cartel), dificilmente podem ser apurados através das vias ordinárias de instrução. É preciso ter acesso a informações e provas que só os agentes participantes podem disponibilizar.

É sabido que condutas ilícitas são praticadas de forma oculta, muitas vezes sendo impossível identificar todas suas etapas, da origem até a conclusão. O Poder Público entende essa particularidade, razão pela qual permite que o órgão competente firme acordos de leniência visando a obtenção de informações que apenas podem ser recolhidas diretamente da fonte, sem interveniência de terceiros.

A Lei Anticorrupção permite a aplicação do instituto para os entes privados que incorrem em condutas ilegais, enquanto a Lei do Cade age de forma semelhante, estendendo-se aos atos que consistam em infrações à ordem econômica.

Dentre as especificidades da Lei do Cade, destaca-se que apenas o primeiro ente noticiante tem direito a todas as prerrogativas típicas do instituto, conforme previsto no art. 86, § 1º, I da lei em questão.

No website da Autarquia Federal[7], consta que essa “celebra apenas um Acordo de Leniência por infração denunciada, de modo que as empresas e/ou indivíduos participantes de um cartel estão em uma corrida entre si para contatar o Cade e reportar a conduta".

Aos sujeitos que sucedem o primeiro cabe a celebração de Termo de Compromisso de Cessação – TCC, previsto pelo art. 85. Ainda que não tenha o condão de extinguir a punibilidade, traz certos benefícios, com destaque para a suspensão do processo administrativo durante o cumprimento do termo. Caso isso se mantenha durante todo o período estabelecido entre o particular e o Cade, o processo será arquivado (§ 9º).

Oliveira Júnior (2016, p. 392) elucida de forma satisfatória sobre a temática, afirmando que

[...] a regra é que, para as pessoas jurídicas, apenas exista um acordo de leniência referente a cada infração investigada, porquanto se exige que o infrator seja o primeiro a se qualificar, enquanto que, para o TCC, nos casos de cartel, por exemplo, será possível a assinatura de mais de um por infração.

Assim, conclui-se que o TCC pode ser celebrado várias vezes, a depender do número de informações trazidas pelo ente particular.

Sobre as diferenças nas prerrogativas daqueles que celebram acordo de leniência em relação àqueles que firmam o Termo de Compromisso de Cessação, Morais e Bonaccorsi (2016, p. 107) afirmam que "A grande diferença do Acordo de Leniência é justamente que os signatários do Termo que estão sendo investigados criminalmente não recebem qualquer benefício penal".

Na Lei Anticorrupção também há essa espécie de ordem de preferência, chamada pelo Cade de market system. Logo, apenas o primeiro denunciante terá direito a todos os benefícios elencados pela lei. Destaca-se que essas prerrogativas já foram concedidas indistintamente para todos os denunciantes, na vigência da Medida Provisória 703/2015, porém sua vigência teve fim em 30 de maio de 2016, retornando ao caráter preferencial.

Evidencia-se que este trabalho não tem como objetivo esgotar o tema, razão pela qual se passará a tratar da proposição realizada pelo Ministério Público Federal por meio da Medida 5 do Projeto Dez Medidas Contra a Corrupção.

A partir da Operação Lava Jato (iniciada em 2014 e que em curso até a presente data), a figura do Ministério Público Federal adquiriu uma crescente popularidade, compatível com sua função institucional de defesa dos interesses coletivos.

Em consonância com essa atribuição, o parquet federal editou um conjunto de proposições legislativas, conhecidas como Dez Medidas contra a Corrupção.

A Medida 5 é responsável por tratar de aspectos do processo administrativo, sugerindo modificações em seu principal diploma, isto é, a Lei 8.429/1992. Dentre elas há a supressão da defesa prévia, a criação de varas especializadas e a inserção do acordo de leniência na esfera do setor público pátrio.

Assim, pretende o parquet federal a aplicação do acordo de leniência dentro da Lei de Improbidade Administrativa, a Lei 8.429/1992, tendo em vista a ausência de previsão legislativa para tal. Verifica-se que o MPF propõe acrescentar o art. 17-A na referida lei, estendendo a incidência do instituto para os sujeitos elencados no art. 1º desse diploma normativo.

Repisa-se que o acordo de leniência tem como finalidade compatibilizar os interesses do Poder Públicos e de entes privados, mediante a comunicação de condutas ilegais que culminam em infração a direitos coletivos. Assim, quem incorreu nessas práticas busca a autoridade competente para noticiar fatos e indicar produtos de atividades irregularidades, em troca de benefícios processuais.

Isso porque se tem de um lado o Poder Público, com sua função de coibir atos atentatórios a interesses da sociedade e com a intenção de apurar a maior quantidade de fatos possível e do outro o infrator, que muitas vezes compõe um grupo com outros que praticaram a conduta em questão, porém busca reduzir os impactos do ilícito em sua esfera pessoal.

Conforme já visto, o instituto se pauta na consensualidade, aproximando-se da ideia de compliance.

Nota-se que o acordo de leniência, se aplicado aos agentes públicos, alinha-se aos princípios da legalidade, da impessoalidade, da supremacia do interesse público e da eficiência.

Muito embora o instituto esteja em conformidade com esses princípios, evidencia-se que sua devida aplicação está condicionada à análise das particularidades do caso concreto. Isso porque muitas vezes a compatibilização dos interesses públicos (representados pela autoridade competente) e privado (isto é, das empresas) não se demonstra a via mais eficaz para a coerção dessas condutas.

Logo, não basta simplesmente examinar as vontades das duas partes integrantes do acordo, mas também os efeitos que este provocará na coletividade. Dessa forma, se o acordo não se mostrar como uma alternativa útil para a defesa dos interesses coletivos, o denunciante em questão não merece os benefícios que aquele poderia proporcionar.

De qualquer forma, conforme visto neste capítulo, frisa-se que a proposta do Ministério Público Federal está em consonância com o que entende a comunidade internacional, em especial com o ponto nº 4 do Artigo 8 da Convenção das Nações Unidas contra a Corrupção, o qual será objeto do tópico a seguir.

Sobre os autores
Marcelo Fernando Quiroga Obregon

Doutor em Direitos e Garantias Fundamentais na Faculdade de Direito de Vitória - FDV, Mestre em Direito Internacional e Comunitário pela Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, Especialista em Política Internacional pela Fundação Escola de Sociologia e Política de São Paulo, Graduado em Direito pela Universidade Federal do Espírito Santo, Coordenador Acadêmico do curso de especialização em Direito Marítimo e Portuário da Faculdade de Direito de Vitória - FDV -, Professor de Direito Internacional e Direito Marítimo e Portuário nos cursos de graduação e pós-graduação da Faculdade de Direito de Vitória - FDV.

Thalita Gomes Salles

Graduada pela Faculdade de Direito de Vitória – FDV.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

OBREGON, Marcelo Fernando Quiroga; SALLES, Thalita Gomes. A aplicabilidade do acordo de leniência na Lei nº 8.429/92 e sua relação com o ponto nº 4 do art. 8 da Convenção das Nações Unidas contra a corrupção. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6388, 27 dez. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/60765. Acesso em: 4 dez. 2024.

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