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O crime de porte ou posse ilegal de arma de fogo de uso restrito e o seu caráter hediondo

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A insanidade e demagogia legislativas chegaram ao ponto de transformar um crime de perigo abstrato em crime hediondo, na máxima expressão do direito penal simbólico.

A Lei 8.072/90 nasceu baseada em uma política criminal repressora, inspirada no movimento de Lei e Ordem (Law and Order) e no chamado Direito Penal Máximo, em que a criação de crimes e o recrudescimento das penas são adotados como solução no combate à criminalidade.

Infelizmente, há tempos a Segurança Pública não é tratada com seriedade em nosso país, sendo que diante de crimes graves e que causam repercussão social, o Direito Penal acaba se destacando como uma espécie de panaceia para todos os problemas. É preciso ficar claro que a redução das taxas de criminalidade está diretamente ligada ao investimento em educação[1] e ao combate à corrupção que corrói o Brasil. Demais disso, é necessário um maior investimento nas polícias judiciárias, uma vez que mais importante do que a severidade da pena, é a certeza da punição, o que é assegurado através de uma investigação criminal eficiente.

Sem embargo do exposto, destaca-se que a Lei de Crimes Hediondos é fruto de um mandado constitucional de criminalização, ou seja, de uma ordem do legislador constituinte para que os crimes hediondos e assemelhados fossem tratados de forma mais severa, senão vejamos:

Art.5º, XLIII - a lei considerará crimes inafiançáveis e insuscetíveis de graça ou anistia a prática da tortura, o tráfico ilícito de entorpecentes e drogas afins, o terrorismo e os definidos como crimes hediondos, por eles respondendo os mandantes, os executores e os que, podendo evitá-los, se omitirem.

Percebe-se, destarte, que sob um prisma extensivo[2], o dispositivo constitucional impõe um regime jurídico-penal mais rigoroso para determinados delitos, o que é compatível com a importância dos bens jurídicos tutelados pelos tipos penais em questão. Deveras, não teria sentido algum dar tratamento igual a infrações de gravidades distintas, o que foi reforçado pelo legislador constituinte ao inserir essa previsão dentro dos direitos e garantias fundamentais.

Como consequência, aos crimes hediondos e equiparados devem ser impostas as penas mais severas, com regimes de cumprimento mais rigorosos, contando, ainda, com técnicas de investigação criminal mais incisivas e limitadoras de direitos fundamentais, o que, em tese, contribuiria para a prevenção e repressão aos delitos dessa espécie, desestimulando possíveis delinquentes e evitando a reincidência.  

Sob tais premissas, muito embora não concordemos com uma política criminal exageradamente repressora como solução para a Segurança Pública, parece-nos que foi esse o espírito da Constituição da República, devendo servir de norte para a interpretação da Lei 8.072/90 e outros diplomas normativos.

Feitas essas considerações, passamos imediatamente à análise da Lei 13.497/17, que alterou a Lei 8.072/90, para inserir no rol dos crimes hediondos o artigo 16, do Estatuto do Desarmamento, que trata da “posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito”.

Eis que, novamente, como que num passe de mágica, o problema, agora da posse e porte de fuzis e outras armas de grosso calibre será solvido por uma legislação penal. Com a edição da Lei 13.497/17, em data de 16.10.2017, todo o problema do armamento existente nos morros cariocas, por exemplo, desapareceu, pois que os criminosos simplesmente jogaram suas armas fora logo que ficaram sabendo que o artigo 16, do Estatuto do Desarmamento era erigido a Crime Hediondo!

É claro que isso não aconteceu e nunca irá ocorrer. A inovação legislativa não passa de mais um exemplo tragicômico do chamado “Direito Penal Simbólico”, que, como explicam ZAFFARONI e BATISTA, não passa do abandono ou desestimulação da real busca de soluções, optando-se por um discurso ilusório e demagógico que apresenta o Direito Penal como uma espécie de panaceia.[3]

Um ponto destacável nessa alteração legislativa é que se chegou a uma culminância em que um crime de “perigo abstrato”[4] é agora classificado como hediondo! A culminância da insanidade legislativa, se é que isso é possível de ser identificado em terras brasileiras, tendo em vista o sanatório geral em que se transformou nosso arcabouço jurídico, especialmente o criminal.

Mas, como a excrescência já está feita, resta tentar compreender a aplicação da legislação tresloucada que temos, afinal, “legem habemus”. E as dúvidas serão muitas, uma vez que parece que no Brasil há uma espécie de “projeto” para tornar racionalmente ininteligível todo o sistema legal vigente. Neste texto, esboçaremos os primeiros apontamentos e questões, sem a pretensão de esgotar o tema.

Retomando a inusitada elevação de um crime de “perigo abstrato” à condição de “hediondo”, é preciso lembrar que já em 2007 o Plenário do STF declarava inconstitucional a vedação de fiança então prevista no Estatuto do Desarmamento para os crimes dos artigos 14 e 15, sob o argumento de que crimes de “mera conduta” ou de “perigo abstrato” não poderiam jamais ser tratados de forma similar a crimes hediondos (Adin 3.112-1, STF, DOU 10.05.2007).

Na mesma ocasião, foi reconhecida a inconstitucionalidade do artigo 21, do Estatuto do Desarmamento, que vedava a “liberdade provisória” (com ou sem fiança), para os artigos 16, 17 e 18, do mesmo diploma. Novamente o “decisum” traz o argumento (além da violação à Presunção de Inocência e da instituição de uma espécie de preventiva obrigatória), de que a vedação da liberdade provisória, se chegou a ser admitida “para crimes de suma gravidade”, não poderia ser aplicada jamais a outros delitos. Fica evidente que o STF já se manifestava pela absurdidade que se configuraria em pretender conferir um tratamento similar ao dado a Crimes Hediondos às infrações do Estatuto do Desarmamento, delitos de “mera conduta” ou, no máximo, de “perigo abstrato”.[5]

Parece-nos que a iniciativa infeliz da Lei 13.497/17, além de configurar uma nítida manifestação da demagogia legislativa, consistente num claro exemplo de “Direito Penal Simbólico”, ainda peca gravemente por violação de qualquer critério de razoabilidade e proporcionalidade, o que, certamente, deverá levar ao reconhecimento de sua inconstitucionalidade.

Mas, deixando de lado, por ora, a questão da inconstitucionalidade, é preciso tentar aclarar qual o alcance da hediondez, no que se refere ao artigo 16, da Lei 10.826/03.

O artigo 16, da Lei 10.826/03, é composto de um “caput” e de seis condutas equiparadas a ele em um parágrafo único. Uma questão que logo surge é a seguinte: A Lei 13.497/17, erigiu em crime hediondo todo o artigo 16, “caput” e parágrafo único, I a VI, ou somente o artigo 16, “caput”? Isso porque a nova redação dada ao artigo 1º, parágrafo único, da Lei 8.072/90, estabelece que será crime hediondo “o de posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito”, sendo fato que nas figuras do parágrafo único, do artigo 16, do Estatuto do Desarmamento, os objetos materiais dos crimes são completamente distintos.

Outra questão que pode surgir da redação da Lei 13.497/17, é se será considerado hediondo o porte e a posse apenas de armas de fogo de “uso restrito” ou também das de “uso proibido”, pois que o artigo 16, da Lei 10.826/03, se refere a ambas, mas a redação dada pela Lei 13.497/17 ao artigo 1º, parágrafo único, da Lei 8.072/90, somente faz menção às armas de “uso restrito”, olvidando-se das de “uso proibido”.

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Antes, porém, de nos debruçarmos nessas questões, é imprescindível algumas considerações de caráter geral. De acordo com a Lei 10.826/03 e os decretos que a regulamentam, são três as espécies de arma de fogo: a-) de uso proibido; b-) de uso restrito; e c-) de uso permitido.

Arma de fogo de uso restrito é aquela que só pode ser utilizada pelas Forças Armadas, por algumas instituições de segurança, e por pessoas físicas e jurídicas habilitadas, devidamente autorizadas pelo Exército, de acordo com legislação específica (art.3º, XVIII, Dec.3.665/00). São armas de fogo de uso restrito, por exemplo, o revólver calibre .357  Magnum, pistolas calibre .40 ou .45, Winchester calibre .243, armas automáticas de qualquer calibre (metralhadoras), armas de fogo dissimuladas (caneta-revólver, maleta-revólver) etc.[6]

Já arma de fogo de uso permitido é aquela cuja utilização é permitida a pessoas físicas em geral, bem como a pessoas jurídicas, de acordo com a legislação normativa do Exército (art.3º, XVII, Dec. 3.665/00). São exemplos o revólver calibre .38, espingarda calibre .32, espingarda calibre 12, pistola calibre .380, etc.[7]

O conceito de arma de fogo de uso proibido, por seu turno, não encontra previsão legal ou regulamentar, ficando sua definição a cargo da doutrina. Segundo CAPEZ,

Trata-se da arma que não pode ser utilizada em hipótese alguma, ou seja, aquela cuja posse ou porte não podem ser autorizados nem mesmo pelas Forças Armadas. (...) proibido é o artefato que não pode ser vendido, possuído ou portado por ninguém. É o caso de um canhão, um tanque de guerra ou de granadas, armamentos que nem mesmo o Exército pode autorizar o particular a ter[8].

Em se tratando de arma de arma de fogo de uso permitido, dependendo da situação, a conduta pode caracterizar os crimes previstos nos artigos 12 ou 14, do Estatuto do Desarmamento. Por outro lado, se a arma de fogo for de uso restrito, caracterizará a infração penal constante do artigo 16, do mesmo diploma legal.

Retomando os questionamentos acima expostos, iniciamos pelo que nos parece mais evidente. Pode-se afirmar, com algum grau de segurança, que será considerado como hediondo tanto o crime de posse ou porte ilegal de armas de “uso restrito” como de “uso proibido”. Pensar o contrário seria emprestar ainda mais insanidade à legislação sob comento, eis que, como visto, a “proibição” é ainda mais limitadora do que a “restrição”, de modo que seria rematado absurdo considerar hedionda a conduta de posse ou porte ilegal de armas de “uso restrito” e não hedionda a mesma conduta relativa a armas de “uso proibido”. É visível que o legislador se equivocou e disse menos do que pretendia dizer, como nos ensina o brocardo latino:  “Lex minus dixit quam voluit”. 

Observe-se que não se trata de “analogia in mallam partem”, mas sim de “interpretação extensiva, teleológica e sistemática”, em superação da simples “interpretação literal”. Não se deve confundir “analogia” com “interpretação extensiva”. De acordo com o escólio de Rosal e Anton, alicerçado na doutrina de Windscheid, a chamada “Teoria da Alusão” estabelece a distinção entre a “analogia” e a “interpretação extensiva”. Nesta o legislador escreveu menos do que tinha intenção de escrever. Na primeira o legislador se esqueceu totalmente do que deveria ter escrito e nada consignou. Há na interpretação extensiva a exegese adequada das palavras “aludidas” na lei. Na analogia não há menção ou “alusão” na lei de palavra alguma e então se toma emprestada outra norma similar para completar uma lacuna.[9] Não é isso que aqui ocorre. A “alusão” ao termo “armas de fogo de uso restrito” deve levar à conclusão inarredável, sob pena de redução ao absurdo, de que as “armas de fogo de uso proibido” são também alcançadas.

Lembramos, ainda, que o tipo penal do artigo 16, ora em análise, surgiu sob o nomen iuris de “posse ou porte ilegal de arma de fogo de uso restrito”, mas, na verdade, diversas outras condutas são tipificadas no seu conteúdo, razão pela qual o intérprete não pode se deixar enganar pelo seu título. Em resumo, na descrição típica do artigo 16, nós encontramos diversos núcleos que, individualmente, já caracterizam a infração.

Trata-se, portanto, de um tipo penal misto alternativo ou plurinuclear, onde a prática de duas ou mais condutas no mesmo contexto fático não acarretará o concurso de crimes, respondendo o agente apenas por um único delito (princípio da alternatividade). Da mesma forma, o tipo penal em questão traz no seu interior objetos materiais que vão muito além da “arma de fogo de uso restrito”, abrangendo, ainda, os acessórios e munições, seja uso restrito ou proibido.

Agora, quanto à questão da abrangência geral do artigo 16 ou apenas de seu “caput” como hediondo, não temos dúvidas de que a redação genérica do dispositivo suscitará divergência na doutrina e na jurisprudência. Para Rogério Sanches, por exemplo, as figuras equiparadas do parágrafo único, do artigo 16, também teriam natureza hedionda, senão vejamos:

Parece-nos, todavia, não ser possível limitar a incidência das disposições relativas aos crimes hediondos apenas à conduta do caput do art. 16. O projeto da Lei 13.497/17 tramitou, entre o Senado e a Câmara, por mais de três anos, e foi objeto de extenso debate, tanto que foram diversas as modificações promovidas ao longo do caminho (originalmente, aliás, o projeto contemplava o comércio ilegal e o tráfico internacional de armas de fogo). Fosse para limitar a incidência do maior rigor ao caput, temos de supor que o legislador o teria feito expressamente.[10]

Além disso, o citado doutrinador afirma que defender o contrário implicaria em ofensa ao princípio da proporcionalidade, pois, “se, ao elaborar tipo do art. 16, o legislador utilizou a fórmula ‘nas mesmas penas incorre’, isso se deu porque as condutas ali elencadas eram consideradas da mesma gravidade das anteriores”.

Data máxima vênia, entendemos que, de acordo com a redação dada e com o próprio intento (tresloucado sim, mas um intento) da lei, somente o artigo 16, “caput” é abrangido pela hediondez. Na sequência são expostos os argumentos que sustentam o nosso ponto de vista.

Um primeiro aspecto que salta aos olhos envolve, justamente, o princípio da proporcionalidade, sob o enfoque da periclitação da incolumidade pública. Uma coisa é a pessoa portar ou ter a posse de um fuzil AR 15 ilegalmente, outra, totalmente diversa em termos de lesividade, é possuir ou portar um revólver calibre .22 com a numeração ou marca raspadas. Se considerar a posse ou o porte de um fuzil como crime hediondo já revela uma desproporção e irrazoabilidade, imagine-se um revólver calibre .22 com a numeração suprimida!

Do mesmo modo, é certo que ao estabelecer que nas mesmas penas do caput, do artigo 16, incorre aquele que praticar as condutas descritas no seu parágrafo único, o legislador vislumbrou gravidade semelhante entre os tipos penais, como bem alertou SANCHES. Contudo, não podemos olvidar que as penas impostas a determinadas condutas constituem somente uma das consequências do delito. Com efeito, a Lei de Crimes Hediondos elencou vários outros rigores jurídicos-penais a serem impostos aos autores de crimes dessa natureza, o que, obviamente, não foi vislumbrado pelo legislador ordinário ao tipificar as condutas do artigo 16, caput e parágrafo único.

Não se pode, portanto, querer estender os consectários da Lei 8.072/90 às figuras descritas no citado parágrafo único sob o argumento de que seria essa a intenção do legislador, pois, conforme destacado, seu intento foi o de apenas estabelecer as mesmas sanções para os casos elencados no artigo, o que não abrange a imposição de outros rigores, tais como a proibição de anistia, graça ou indulto, a progressão diferenciada de regime (2/5, se primário e 3/5, se reincidente), a necessidade de cumprimento de 2/3 da penas para ter direito à liberdade condicional etc.

Ademais, numa interpretação sistemática da Lei 8.072/90, analisando a estrutura de seus incisos do artigo 1º, verifica-se que o legislador foi por demais cuidadoso com a taxatividade. Há menção do “nomen juris” e do exato artigo de lei a que se refere. Quando é o caso de abrangência de parágrafos e incisos adicionais, estes são expressamente arrolados. Em sua falta, a infração não será hedionda. Por exemplo, no roubo, se faz menção ao “latrocínio”, sendo indicado entre parêntesis o artigo 157, §3º, “in fine”, o que faz com que as demais modalidades de roubo simples, majoradas e até mesmo qualificada pela lesão grave (artigo 157, §3º, parte inicial) não sejam consideradas como hediondas.

No próprio artigo 1º, parágrafo único, da Lei 8.072/90, está descrito como hediondo o crime de “genocídio”, mas o legislador não o faz de forma genérica, indicando claramente quais os artigos específicos da lei a que se refere (artigos 1º, 2º, e 3º, da Lei 2.889/56). E ainda mais explícita é essa sistemática quando estabelece que o crime de extorsão mediante sequestro é hediondo. Pretendendo determinar a hediondez de todas as figuras, o legislador não menciona simplesmente o artigo 159, CP, mas, sim, o artigo 159, “caput” e §§ 1º, 2º e 3º, CP.

O mesmo se pode dizer com relação ao estupro e ao estupro de vulnerável, onde não é mencionado somente o “caput”, mas cada um dos parágrafos qualificadores. Perceba-se que se trata de qualificadoras, ou seja, condutas de um mesmo crime, mas consideradas mais gravosas e não de meras equiparações ou mesmo condutas menos gravosas. Isso somente reforça o fato de que se o legislador quisesse estender a hediondez para o parágrafo único, do artigo 16, do Estatuto do Desarmamento, o teria feito expressamente, como o fez em outros vários casos. Interpretação diversa seria um desvio de rota quanto à sistemática da Lei 8.072/90, ainda mais em se tratando de condutas meramente equiparadas e, em geral, de menor ofensividade, já que não envolvem armas de uso restrito ou proibido propriamente ditas.

Quando à posse ou o porte ilegal de armas de fogo de uso restrito ou proibido a referência é feita somente ao “art. 16 da Lei n. 10826, de 22 de dezembro de 2003”, sem qualquer menção ao seu parágrafo único e respectivos incisos. Considerando uma interpretação sistemática da Lei dos Crimes Hediondos, é de se crer que se o legislador quisesse levar a hediondez ao parágrafo único e seus incisos, os teria descrito no dispositivo. Se não o fez, foi porque não pretendia que as condutas equiparadas que não envolvem armas restritas ou proibidas fossem consideradas como hediondas.[11] Ademais, quando em geral se pretende referir a um artigo de lei e se menciona somente o seu número, é de se concluir que a referência é feita somente ao “caput”. Quando se pretende atingir algum parágrafo, inciso etc., estes devem ser expressamente mencionados.

Imaginemos que um Promotor faça uma denúncia por homicídio e aponte no dispositivo somente o artigo 121, CP. A conclusão seria de que ele pretendia fazer uma denúncia por homicídio simples (“caput”) ou qualificado (§2º)? É claro e evidente que se referia ao simples, previsto no “caput”. Mesmo que se alegue que o que importaria mais seria a descrição da conduta, aplicando-se tal raciocínio do novo artigo 1º, parágrafo único, da Lei 8072/90, é visível que o legislador descreve como hediondo o porte e a posse ilegais de “armas de fogo de uso restrito” (ou proibido, acrescentamos), de modo a afastar qualquer possibilidade de enquadramento de condutas equiparadas.

O alcance da hediondez ao parágrafo único, do artigo 16, do Estatuto do Desarmamento, somente poderá ocorrer se a arma envolvida na conduta for de uso restrito ou proibido, conforme previsto no “caput” e também houver atuação de acordo com algum inciso do parágrafo único. Por exemplo, na supressão ou alteração de sinais identificadores de arma de fogo (inciso I), a hediondez estará presente se tal arma alterada for de uso restrito ou proibido. Isso considerando que para a alteração o indivíduo deverá ter a posse da arma consigo, sendo ela de uso restrito ou proibido. Antes essa posse seria absorvida, mas agora isso não é mais possível, tendo em vista a hediondez do artigo 16.

Na modificação da característica de arma de fogo, isso já não acontece, pois que a arma não será de uso restrito ou proibido, mas tão somente tornada “equivalente”, de modo que a equiparação consistiria em analogia “in mallam partem” (inciso II). Quanto à artefatos explosivos ou incendiários, conforme consta dos incisos III e V, “in fine”, não há condição de abrangência pela hediondez, uma vez que não são mencionados no artigo 1º, parágrafo único, da Lei 8.072/90.

Eis outra desproporção, já que, no mais das vezes, tais artefatos podem ser mais perigosos para a incolumidade pública do que muitas armas de uso restrito. O porte, posse ou aquisição de arma de fogo com numeração, marca ou qualquer sinal identificador suprimido, também somente poderá ser hediondo se a tal arma for de uso restrito ou proibido. Por exemplo, um fuzil com numeração raspada. Nunca uma garrucha velha com a numeração alterada, obviamente (inciso IV).

Da mesma forma, a venda, entrega ou fornecimento de arma a criança ou adolescente. Somente haverá hediondez, se a arma for de uso restrito ou proibido (inciso V, parte inicial). Quanto ao inciso VI, ao tratar somente de munição ou explosivo, só se poderá falar em crime hediondo nas hipóteses em que a munição ostentar as qualidades descritas no parágrafo único, do artigo 1º, da Lei 8.072/90.

Outra questão que merecerá acurada análise é a já assentada tese de que, no crime de roubo circunstanciado pelo emprego de arma, o eventual crime de porte ilegal é absorvido[12] (v.g.  Quinta Câmara Criminal Apelação Crime ACR 70050877554 RS (TJ-RS) Francesco Conti; TJ-MG - Apelação Criminal APR 10191080158527001 MG (TJ-MG); TJ-MG - 103480700035490011 MG 1.0348.07.000354-9/001(1) (TJ-MG) etc.).

Em se tratando de armas de fogo de uso permitido, nada se altera. Mas, com o advento da Lei 13.497/17, que erige a posse ou porte ilegal de armas de fogo de uso restrito ou proibido em crime hediondo, não será mais possível falar-se em consunção do crime-meio (artigo 16, da Lei 10.826/03) pelo crime-fim (artigo 157, §2º, I, CP). Não será viável que um crime não hediondo absorva um crime hediondo. Dessa forma, haverá consunção pelo roubo majorado pelo emprego de arma no caso do artigo 14, da Lei 10.826/03 (armas de uso permitido), mas não mais em relação ao artigo 16, do mesmo diploma (armas de fogo de uso restrito ou proibido), hipótese na qual deve-se aplicar o concurso de crimes. Assim, novamente se nos apresenta de forma escancarada a violação à proporcionalidade. É que um crime fim de lesão não é capaz mais de absorver um crime-meio de perigo abstrato! O perigo abstrato se torna mais grave, para a legislação brasileira, do que o crime de lesão!

Cabe, ainda, levar em conta que, considerando que a hediondez não abranja o parágrafo único, do artigo 16, da Lei 10.826/03, não surge maior problema quanto à questão do conflito aparente de normas do artigo 16, parágrafo único, III, que trata dos explosivos e artefatos incendiários, e os artigos 250 (Incêndio) e 251 (Explosão) do Código Penal. No caso dos verbos “possuir, deter ou fabricar”, não há sequer conflito, mas sim aplicação direta do dispositivo do Estatuto do Desarmamento, eis que o Código Penal não trata desses casos. Mas no verbo “empregar” pode haver conflito, pois que certamente um incêndio ou explosão ocorrerá com tal emprego. Nesses casos, a solução dogmática tem sido a de que o crime do Estatuto é de “perigo abstrato” e os do Código Penal são de “perigo concreto”. Então será aplicado o Estatuto nos casos em que o incêndio ou explosão não coloquem em risco concreto pessoas ou bens, enquanto que nos casos de risco concreto a uma ou mais pessoas ou bens devido à explosão ou incêndio, dever-se-á aplicar as normas do Código Penal. [13]

No entanto, se vierem a ser consideradas como hediondas as condutas equiparadas do artigo 16, parágrafo único, do Estatuto do Desarmamento, a solução deverá ser diversa no caso do efetivo “emprego”. No conflito, não será mais possível a absorção do artigo 16, parágrafo único, III, da Lei 10.826/03, quando houver perigo concreto em explosão ou incêndio efetivos. Nesse caso, dever-se-á rumar para a solução do concurso formal de crimes, pois que, novamente, um crime hediondo não poderá ser absorvido por um crime comum. Novamente também se nos deparamos com uma absurdidade, na qual um crime de perigo comum concreto não é capaz de absorver um crime de perigo abstrato, sendo este último tratado pela legislação brasileira como mais grave. O perigo abstrato se torna mais gravoso que o perigo concreto! Entenda suposta lógica de tudo isso quem o puder!

Rumemos agora para o arremate do terrorismo dogmático criado pela Lei 13.497/17, jogando os operadores, estudiosos, professores e demais interessados na “ciência penal” brasileira em um mundo inextricável, um labirinto infernal. 

Apenas a título de ilustração e argumentação, façamos um breve experimento mental: imagine-se que o legislador brasileiro houvesse catalogado como hediondo o porte de drogas para consumo próprio, ainda que somente de drogas pesadas, e não o fizesse com relação ao tráfico internacional e interno. O que isso seria considerado? Uma aberração sem igual, não?

Pois então, a Lei 13.497/17 erigiu, como já visto, a crime hediondo a posse e o porte ilegais de armas de uso restrito ou proibido. Mas, esqueceu-se de também considerar como hediondos o comércio interno e o tráfico internacional de armas, ainda que fossem somente aqueles de armas de uso proibido ou restrito (artigos 17 e 18 da Lei 10.826/03)! Isso é de pasmar qualquer um! Note-se que os artigos 17 e 18 têm penas maiores do que o artigo 16. E o têm porque, obviamente, o comércio clandestino em larga escala e o tráfico internacional de armas é muito mais lesivo do que o mero porte ou a simples posse individual de uma arma, ainda que esta seja de uso restrito ou proibido. 

Antes do infeliz advento da Lei 13.497/17, a questão era resolvida pela absorção do artigo 16 pelos artigos 17 ou 18, conforme o caso. É claro, pois a posse ou porte da arma de fogo de uso proibido ou restrito seria um crime-meio para os crimes fins de comércio ou tráfico de armas. Agora, porém, não será mais possível imaginar a absorção. Dever-se-á optar pelo concurso formal de crimes entre o artigo 16 e os artigos 17 ou 18, conforme o caso. Não sendo assim, teríamos a prevalência de um crime não hediondo (artigos 17 ou 18) sobre um crime hediondo absorvido. Agora, temos um concurso formal entre crimes não hediondos com pena maior que um crime hediondo com pena menor! Temos crimes muito mais graves e amplos em seu perigo à sociedade não considerados como hediondos, enquanto que um crime bem menos grave, de caráter individual, é considerado como hediondo! Tudo isso dentro do mesmo diploma legal! A noção de proporcionalidade do legislador brasileiro foi realmente perdida de forma inexorável!

Observe-se, por fim, que se o tráfico de armas ou o comércio clandestino se referir a armas de uso permitido, não haverá hediondez de forma alguma, nem mesmo pelo concurso com o artigo 16, da Lei 10.826/03. Nesses casos serão aplicados os artigos 17 ou 18, do Estatuto do Desarmamento, absorvendo-se os artigos 12 ou 14, do mesmo diploma e não havendo incidência, de forma alguma, ainda que reflexa, da Lei dos Crimes Hediondos. De novo ocorre uma aberração porque mesmo sendo o tráfico ou o comércio de armas referente àquelas de uso permitido, essa conduta é muitíssimo mais lesiva do que a simples posse ou porte individual, ainda que de armas de uso restrito ou proibido. O potencial lesivo dos artigos 17 e 18 da Lei 10.826/03 é incomensuravelmente maior do que o do artigo 16 do mesmo diploma, mesmo que se tratem de armas de uso permitido.

Por tudo isso, concluímos que, uma vez mais, o legislador, movido por questões circunstanciais de clamor social, fez uso do “Direito Penal Simbólico” e alterou, de maneira atabalhoada, a Lei 8.072/90, inserindo a infração penal descrita no artigo 16, do Estatuto do Desarmamento, no rol dos crimes hediondos. Contudo, por meio de uma interpretação teleológica e sistemática do referido diploma legal, podemos afirmar que a natureza hedionda do delito se limita as condutas descritas no caput do artigo em questão, não abrangendo o seu parágrafo único.

Sobre os autores
Eduardo Luiz Santos Cabette

Delegado de Polícia Aposentado. Mestre em Direito Ambiental e Social. Pós-graduado em Direito Penal e Criminologia. Professor de Direito Penal, Processo Penal, Medicina Legal, Criminologia e Legislação Penal e Processual Penal Especial em graduação, pós - graduação e cursos preparatórios. Membro de corpo editorial da Revista CEJ (Brasília). Membro de corpo editorial da Editora Fabris. Membro de corpo editorial da Justiça & Polícia.

Francisco Sannini Neto

Mestre em Direitos Difusos e Coletivos e pós-graduado com especialização em Direito Público. Professor Concursado da Academia de Polícia do Estado de São Paulo. Professor da Pós-Graduação em Segurança Pública do Curso Supremo. Professor do Damásio Educacional. Professor do QConcursos. Delegado de Polícia do Estado de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CABETTE, Eduardo Luiz Santos; SANNINI NETO, Francisco Sannini Neto. O crime de porte ou posse ilegal de arma de fogo de uso restrito e o seu caráter hediondo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 22, n. 5289, 24 dez. 2017. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/61922. Acesso em: 22 dez. 2024.

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