O presente texto visa trabalhar o conceito de bacharelismo com ênfase no estudo realizado por Sérgio Buarque de Holanda em Raízes do Brasil. Examinando-se, a partir desta referência, de que modo este postulado se relaciona com a hodierna situação do ensino universitário no Brasil.
Indaga-se, portanto, sobre a permanência, ou não, das honrarias atribuídas à figura do bacharel nos tempos atuais e as possíveis formas de manifestação deste fenômeno na realidade brasileira.
Importante notar, por conseguinte, que a presente pesquisa mantém como tema de fundo a relação entre o privado e o público, intrincada conexão que influencia com demasiada relevância o que se entende como identidade nacional. Afinal, a postura do cidadão em relação ao Estado compõe parte considerável das características primordiais de determinada sociedade.
Buscar-se-á, destarte, inserir a Universidade neste contexto, de modo a relacioná-la com os conceitos de bacharelismo e, de certa forma e com menos destaque, o patrimonialismo, para ao final, instigar a discussão e proposição de melhorias no ensino universitário.
Para tanto, o trabalho foi estruturado em três partes, quais sejam: em um primeiro momento, realiza-se um apanhado a respeito da figura do bacharel e do fenômeno do bacharelismo; para depois trabalhar este conceito no tempo presente, relacionando-o com a formação universitária, principalmente no campo jurídico; ao final, formula-se uma possível interpretação do problema e seus reflexos na cultura e identidade nacional.
1 - O CONCEITO DE BACHARELISMO
Em “O Quinze”, Raquel de Queiroz (1910/2003) apresenta o personagem Vicente, sujeito forte, comprometido com a lida no campo e trabalhador assíduo desde os tempos de infância, diferente de seu irmão Paulo, formado bacharel, erudito, abstrato e ambicioso por emprego público na Capital. Todo ostentoso, diz o pai dos rapazes sobre o descendente estudado: “o meu filho, o doutor! ” (QUEIROZ, Raquel, 2004, p. 47)
Vicente, consternado, não entende o gabo do pai e reflete sobre a vida do irmão, o bacharel, que desde cedo se comprazia ao servilismo, suportando anedotas, falsificando relações amistosas, participando de jantares oficiais, namorando filha de juiz - tudo em nome de promoções e prestígio.
Ainda com o apoio da Literatura, interessante recordar que, em suas Memórias Póstumas, Brás Cubas relembra seu tempo de faculdade em Coimbra, quando no término dos estudos, enuncia com pujança: “bacharelo-me e cá me vou às fadigas e à glória! ” Às fadigas da responsabilidade e à glória do título, segundo a descrição do próprio Machado de Assis. (DE ASSIS, Machado, 2008, p. 79)
Os autores acima citados discorrem sobre a enigmática figura do bacharel, indivíduo detentor de considerável capital simbólico, erigido no contexto pós-colonial e reforçado pelo imaginário coletivo. Afinal, qual o substrato desta luxuosa honraria? O que faz do bacharel, bacharel?
Na perspectiva de Sérgio Buarque de Holanda (1902/1982), que trabalhou este conceito no Capítulo 6 de Raízes do Brasil, a figura do bacharel simbolizava, naquele período, e com precisão, características fundantes da identidade brasileira, dentre elas: a crença mágica no poder das ideias; a cordialidade; a abstração sensitiva; a fácil adaptação e recusa da autoridade; a ocupação de cargos e a troca de favores. (HOLANDA, 2014, p. 191)
Os bacharéis eram enaltecidos e se diferenciavam, pois, daqueles para os quais a árdua e triste realidade não escapa. Para quem, segundo o compositor Belchior, não está interessado em nenhuma teoria, em nenhuma fantasia, nem no algo mais e delira, apenas, com a experiência das coisas reais. (BELCHIOR, Alucinação, 1976)
Porém, vale reparar que este brasileiro retratado por Belchior, ainda delira, ainda elucubra e fantasia, concordando com a análise de Buarque de Holanda e corroborando o imaginário público construído. O bacharel, neste compasso, consagrou-se como o modelo portador das características referidas.
As considerações acima exaradas permitem afirmar que a impossibilidade da existência, naqueles dias, de um elevado número de bacharéis (por motivos dos mais diversos, como o exíguo acesso à Universidade): não descartava a premiação dessas pessoas como representantes do ideal de vida boa brasileira. Ideal pautado nas regalias proporcionadas pelo título, na fortuna política que pode levar a uma deputação, uma pasta de secretário, uma posição administrativa de relevo, ou mesmo um emprego rendoso na capital. (LEAL, 2012, p. 45)
Apesar de não receber prestígio, aos Vicentes da época, ou seja, aos filhos não letrados, sem diploma, com frequência apenas na escola das facas (João Cabral de Melo Neto), restava tão somente a lida campesina e a administração dos negócios da família. Por esse ângulo, os bacharéis representavam ainda o impulso de civilização e progresso, em descompasso com a sociedade patriarcal naquele tempo vigente.
Portanto, o bacharel passa a formar, naquele momento, um grupo seleto de pessoas, de indivíduos aprovados socialmente e detentores de um lugar ao palco, como bem ensina P. Bourdieu (1930/2002). Louvados pela família e bem vistos socialmente, o que lhes possibilitava vantagens e posições das mais diversas. [1]
Por tais motivos, ressalta-se que, apesar das contundentes críticas recebidas (por exemplo, a de Jessé Souza), as reflexões de Sérgio Buarque de Holanda sobre a figura do bacharel e identidade brasileira exibem considerável perspicácia e atualidade, de modo que uma leitura atenta da obra de Buarque pode ir além do, suposto, americanismo e do mito do cordial brasileiro.
Pode servir, por outro lado, como denúncia à escassez de comprometimento científico nas Universidades, locais em que tal atividade deve ser prioritária.
Outros autores também trabalham o conceito de bacharelismo, e mesmo externando novos olhares sob o tema, concordam a respeito das regalias destinadas ao sujeito bacharelado. Gilberto Freyre (1900/1987), por exemplo, expõe sobre a temática em seu Sobrados e Mucambos, precisamente no Capítulo 11, em que, com a conhecida elegância, disserta sobre as regalias dirigidas ao grupo de bacharéis formados em Portugal, que regressam ao Brasil com a cabeça cheia de ideias inglesas e modas francesas.
Na perspectiva de Freyre, concordando com Buarque, é marca do bacharel o horror ao trabalho manual e as colaborações políticas, são eles os portadores do misticismo jurídico, dos óculos e do anel de rubi ou esmeralda.[2]
Neste compasso, em seu primeiro momento (sociedade pós-colonial), o bacharel é aquele formado no exterior ou nas recém-inauguradas universidades brasileiras, e que, além disso, compõe a administração pública do Brasil Independente, e também o grupo dos novos intelectuais que tentavam explicar as características fundantes do país, em linguagem acadêmica.
Após o esclarecimento dos atributos fundamentais do bacharel, bem como do conceito erguido sob sua figura, torna-se indispensável ponderar sobre o local de formação destes honrados indivíduos: a Universidade.
2 - O BACHARELISMO E A UNIVERSIDADE
De modo algum, busca-se com o presente trabalho rebaixar a importância da atividade prestada pelos bacharéis da época, até porque, ainda concordando com Freyre, eles eram responsáveis, inclusive, por buscar a identidade e história da nascente sociedade brasileira. Além disso, contribuíram bastante para a urbanização do país, especialmente após a chegada da família real em 1808 e no período subsequente a 1822.
Ocorre que, como visto em outro momento, os reflexos negativos do que se entende por bacharelismo são encontrados até hoje, principalmente nas Universidades, como se verá adiante.
Com o aporte inicial, resta claro, a partir da leitura das clássicas obras relacionadas ao tema, que o broche do bacharel simbolizava, muito mais, um cartão de ingresso no espaço público (aqui entendido como espaço de acumulação de capital simbólico) do que um título de condecoração pelo esforço individual do conhecimento e produção de trabalhos teóricos de grande valor.
Adentrando o espaço da tese ora proposta, pode-se afirmar, à vista disso, que a Universidade no Brasil, ou seja, a instituição responsável por formar bacharéis, historicamente se ocupa de uma função, quase que exclusiva, de proporcionar o acesso a privilégios públicos.
Um breve caminhar histórico pelo surgimento das Universidades no Brasil comprova o argumento que se pretende esboçar. Isto porque, as Academias de São Paulo e Olinda, surgidas em 1827 com a famosa Lei 11 de Agosto, possuíam como escopo primordial a formação do corpo administrativo do recém independente Brasil, moderno e (supostamente) impessoal.
Levem suas casas ao Brasil, aconselhou Pedro Álvares Cabral. Levaram, mais que isso, toda a estrutura administrativa e colocaram olhos de grande irmão em cada pedaço deste grande território. Assim, restou às Universidades (com foco no curso de Direito) a atividade de cobrir o espaço deixado pela retirada portuguesa, através da nomeação dos bacharéis.
Pois bem, agora é preciso pensar o hodierno momento brasileiro, em que o título (formal) de bacharel pouco vale, isto é, a simples formação universitária não é capaz de gerar aprovação e louvor por parte dos componentes da sociedade. Em virtude, também, da positiva ampliação do acesso à Universidade, e a negativa exigência de curso superior para o exercício de toda e qualquer profissão.
Isso não significa, de maneira alguma, que o bacharelismo tenha se extinguido, pelo contrário, ele apenas se reveste de novas formas, mantendo-se com significativa presença na sociedade brasileira.
Na Literatura contemporânea, apesar de pouco conhecido, um romance do psicólogo Felipe Pena (1970 -) anuncia as agruras da permanência do bacharelismo no Brasil. O título é por si sugestivo: Fábrica de Diplomas.
A narrativa, assaz fluida, é envolvida por uma série de intrigas paralelas, notadamente policiais (à Rubem Fonseca), porém, não resta dúvida que o ponto alto do livro é a denúncia à impregnada cultura bacharelesca.
O foco do livro de Pena é exibir, simbolicamente, a burocrática organização da Universidade privada brasileira (o que, em certos aspectos, também acontece nas púbicas), que se transformam em grandes centros de poder, exibindo uma verdadeira miscelânea de cargos, nomeações e honrarias. E os elementos básicos da formação universitária, tais como a busca pelo saber e a produção científica relevante, perdem-se no meio deste emaranhado de relações.
Resta claro que, para Pena, o bacharelismo se manifesta atualmente, com maior acidez, na exigência desmedida de diploma e na valorização excessiva deste. Algo que se encontra ínsito no imaginário coletivo, principalmente, a partir da crença de que apenas a titulação universitária é responsável por formar pessoas capazes de pensar criticamente e adentrar o espaço profissional.
Com base no livro de Pena, pretende-se agora exibir uma outra possibilidade de interpretação do fenômeno do bacharelismo nos dias atuais, argumentando que, apesar de ainda valorizada e exigida (no aspecto técnico), a titulação acadêmica, por si, passa por progressiva banalização popular.
O interessante é que os louvores bacharelescos não se dirigem mais à figura do bacharel (a pessoa com formação universitária), título de fácil acesso, endossado por um ensino universitário mercadológico e descomprometido. A titulação acadêmica parece perder cada vez mais espaço na doxa brasileira, e isto acontece há considerável período de tempo, desaguando na desvalorização da figura do acadêmico.
Pretende-se dizer que, com o passar dos anos, a figura do bacharel abstrato foi associada a uma espécie de acadêmico (intelectual) descomprometido com os problemas da sociedade, com ênfase nos cursos ditos de humanas.
Pouco a pouco este grupo de intelectuais foi se distanciando da realidade vivenciada pela sociedade, de modo que o cidadão não letrado passa a desconfiar destes sujeitos que se arvoram a explicar tudo, macaqueando a sintaxe lusíada, diz Manuel Bandeira (Evocação do Recife).
Cria-se, à vista disso, um hiato entre as eruditas palavras proferidas pelo escorreito português do bacharel e a coloquial manifestação do senso comum – e o louvor se esvai. No Império, eruditamos tudo, disse Oswald de Andrade (Manifesto da Poesia Pau-Brasil), tanto que os bacharéis intelectuais perdem grande parte do prestígio que antes empunhavam com ardor. Deve-se alertar, não obstante, que tal queda de estima se dá no seio do senso comum, visto que no meio acadêmico a titulação é ainda mais exaltada.
Não à toa, recai popularmente sobre o intelectual, ainda hoje, a pecha de sujeito abstrato, alheio à realidade, e pior, totalmente dependente das concessões de natureza pública. As consequências de tal conduta, de certa forma, caudatárias do bacharelismo, resultam em gravíssimo cenário de desvalorização da produção teórica séria e engajada, e diminuem o importante trabalho prestado pelos intelectuais.
Contudo, a crítica popular negativa que, historicamente, recai às Universidades como formadoras de desnecessários bacharéis, não suplanta os vícios estruturais encontrados, pelo contrário, vestem-nos com outras vestimentas e rutilantes acessórios.
Aparece a partir daí um paradoxal cenário de desvalorização da Universidade, chegando aos dias atuais em um panorama de verdadeira inversão, em que o desprezo à abstração do bacharel transforma os cursos universitários em instrumentos técnicos, triviais portas de acesso ao mercado, e, especialmente: aos cargos públicos.
3 – JÁ NÃO BASTA SER BACHAREL
Pergunta-se então, qual o grupo de pessoas que detém, na atualidade, a aprovação social antes dirigida aos formados bacharéis? De maneira ainda mais simples, qual o grupo de pessoas que hoje simbolizam o ideal de boa vida para o brasileiro.
Primeiramente, no intuito de responder tais questões, vale trazer um dado importante: a busca por ingresso em carreiras públicas é fato notório no Brasil e compõe o ideal de boa parte da população. A mera observação é capaz de comprovar tal fato, por exemplo uma volta pelas livrarias, onde se verá um emaranhado de livros resumidos para concursos, e ainda a exagerada propagação de cursos preparatórios (tanto os presenciais como os virtuais).[3]
Tanto é que o jurista gaúcho Lenio Luís Streck afirma que o Brasil se transformou em uma “Concursocracia”, regida por uma poderosa indústria de cursos preparatórios, e o estudante universitário passa a ser o que Sérgio Adorno tão bem descreveu com o rótulo de aprendizes do poder.
Posto isso, paralelo ao que ocorria com os formados bacharéis, pouco importa ao futuro ocupante do cargo público (o concurseiro) a relevância e seriedade da função que exercerá, apenas o seduzem as vantagens e olhares positivos de aprovação.
A configuração de um (louvado) grupo de servidores públicos faz com que tais pessoas recebam um carimbo de aprovação social, tal como os antigos bacharéis, portadores de um capital simbólico privilegiado, honrarias públicas e influência eleitoral.
Seria desmedida obviedade, portanto prescindível, o alerta sobre a overdose desta conduta: basta verificar a situação (calamitosa) dos cursos universitários no Brasil, com destaque para os jurídicos.
Lembrando de Pierre Bourdieu, percebe-se que a ocupação de um cargo garante o capital simbólico necessário à aprovação dos agentes sociais próximos (pais, amigos que se deram bem na vida, avós que desconhecem a dificuldade de afirmação e construção de identidade em tempos líquidos), o que aparece como forte constrangimento em cima de uma juventude indecisa e cheia de opções.
Por isso, são tão influentes os jargões que afirmam que o cargo público garante pouco trabalho e boa renda, além da tão sonhada estabilidade, a ânsia pelos meios de vida definitivos. (HOLANDA, 2014, p. 188)
Os louros antes dirigidos ao bacharel agora servem ao servidor, que, a partir da aprovação, ingressa no tão sonhado espaço público. Esta paixão pelo cargo adquire os contornos tanto do bacharelismo quanto do patrimonialismo, e mostra como tais conceitos estão incrustados na realidade brasileira.
Como já abordado em outro momento, o lento e gradual esforço do conhecimento e da produção científica, características fundantes da Universidade, são desprezados em detrimento da possibilidade de adentrar o confortável (e estável) lar público.
O Estado, neste palco cheio de atores, adquire contornos psicanalíticos: é o pai que limita e intervém para o bem dos filhos (superego), e, ao mesmo tempo, fornece o procurado acalanto. Assim, o parricídio se torna impossível e não querido, pois, mesmo mal administrador e corrupto, é ele que ajuda nos momentos de tormento individual, e que acolhe com seus cargos e suas promessas de boa renda e pouco trabalho.
Agora com o amparo de Faoro (1924/2003), o cargo (burocrático) não forma uma elite, mas permite a perpetuação do capitalismo guiado (politicamente orientado ou pré-moderno). Desta forma, o tema da valorização imoderada do cargo público reflete, com força, neste panorama, pois as melhores possibilidades de ascensão econômica são proporcionadas pelo próprio Estado – não através do incentivo à produção criativa de bens ou abertura de empresas, mas sim garantindo elevados salários a servidores públicos.
Cria-se, mais uma vez, o imaginário ao redor do padrão de boa vida (pouco trabalho, muito dinheiro), agora na figura do servidor que recebe o carimbo social da aprovação, possibilitando-lhe a carteira, o broche, o nome.
Surge a indagação se o esforço exigido para a aprovação em concurso público (cada vez mais difícil, pois mais concorrido) retira do brasileiro as características apontadas por Sérgio Buarque, o que merece resposta negativa. O procedimento de ingresso, por mais complicado que seja, é superficial (decorativo) e altamente compensativo: das fadigas do estudo às glórias do cargo público.
E os bordões populares reforçam o imaginário: vale a pena se dedicar um ou mais anos à preparação para concursos públicos, depois é só tranquilidade; ou algo do tipo vou fazer concurso e adquirir estabilidade, depois faço o que quero.
Sérgio Buarque ainda acerta quando relata a confusão entre público e privado, já que neste momento de concursismo, o poder não é uma função pública, mas sim objeto de apropriação privada.[4]
O ocupante do cargo, depois da investidura, reveste-se de tal modo na função que passa a ser o juiz, ou o delegado, ou o promotor de Justiça, em seu gabinete e o todo o tempo. O órgão em que trabalha passa a ser o seu lar – sua segurança, sua estabilidade, seu local para o resto da vida.
O que se pretende mostrar é que este atual Estado do Concursismo reforça o bacharelismo (na exigência do diploma) e até mesmo o patrimonialismo, sob duas perspectivas: a do Estado, com cada vez mais órgãos, repartições e bons salários; e o do indivíduo que vê neste Estado o repositório de suas incertezas profissionais (e angústias existenciais).
Este habitus reflete com tal força na Universidade, mantendo-a como mero instrumento de ascensão, ao ponto de formar um elevado número de pessoas sem condições de compreender textos razoavelmente difíceis (muito menos escrevê-los) – porém, portadoras do título e respeitosas aos editais que o exigem.[5]