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Um caso prático de recebimento da denúncia

Agenda 17/08/2018 às 11:23

Segunda Turma do STF declarou, por três votos a um, que uma denúncia baseada somente em delação premiada não pode ser recebida.

I – O FATO

Segundo informa o Globo, na edição do dia 15 de agosto do corrente ano, uma decisão tomada pela Segunda Turma do Supremo Tribunal Federal (STF) deve reduzir o fôlego das investigações da Lava-Jato. Por três votos a um, os ministros do colegiado que conduz os processos sobre os desvios da Petrobras, declararam que uma denúncia baseada somente em delação premiada não pode ser recebida. Ou seja, se houver apenas os depoimentos dos colaboradores —e as provas apresentadas por eles — um inquérito não pode ser transformado em ação penal e, portanto, deve ser arquivado. A repercussão da decisão em outros casos da Lava-Jato ainda vai depender da análise de cada caso pela Corte.

Foi com essa tese que a Segunda Turma rejeitou denúncia apresentada pela Procuradoria Geral da República (PGR) contra o senador Ciro Nogueira, (PP-PI), o presidente do partido, por corrupção passiva e lavagem de dinheiro na Lava-Jato. Ciro Nogueira foi apontado como destinatário de R$ 2 milhões de propina da UTC Engenharia, em troca de promessas de favorecimento da empreiteira em obras públicas. Foram apresentadas fotografias de emissários do senador e extratos bancários. No entanto, como essas provas foram apresentadas pelo próprio delator, o dono da UTC, Ricardo Pessoa, elas perderam a força, na visão da maioria dos ministros da Segunda Turma.

Para a maioria deles, não havia prova suficiente para justificar a abertura da ação penal. Em julgamentos anteriores, o colegiado tinha esse entendimento em relação à condenação de um réu. Ou seja, o processo poderia ser aberto a partir da delação, mas para condenar era preciso ter mais provas. Agora, o processo sequer será aberto. Portanto, o inquérito deve ser arquivado.

A tese foi levantada pelo ministro Dias Toffoli e recebeu o apoio de Gilmar Mendes e Ricardo Lewandowski. Como de costume, o relator da Lava-Jato, Edson Fachin, ficou isolado no julgamento, em defesa do recebimento da denúncia. Celso de Mello, que também integra a Segunda Turma, não compareceu à sessão.

A maioria dos ministros alegou que a lei de delações premiadas não permite a condenação de um réu com base apenas nos depoimentos de colaboradores. Fachin alertou para o fato de que, nesse momento, estava em jogo apenas a abertura da ação penal, e não a condenação do investigado. Os demais ministros concordaram que, se não houver uma prova mínima que possa levar à condenação depois das investigações.

Exigir uma prova acima de qualquer dúvida razoável é antecipar para a fase do recebimento da denúncia o juízo de condenação. A lei diz que nenhuma sentença condenatória será proferida apenas com fundamento em depoimento de agente colaborador. Mas, se nenhuma sentença será proferida, isso não obsta o recebimento da denúncia Edson Fachin, ministro da Segunda Turma do STF.

Não se pode se utilizar da ação penal para buscar provas que não se obteve no inquérito. É preciso haver um mínimo de provas nessa primeira investigação. Ricardo Lewandowski, ministro da Segunda Turma do STF caso de abrir a ação penal.

— Exigir uma prova acima de qualquer dúvida razoável é antecipar para a fase do recebimento da denúncia o juízo de condenação. A lei diz que nenhuma sentença condenatória será proferida apenas com fundamento em depoimento de agente colaborador. Mas, se nenhuma sentença condenatória será proferida, isso não obsta o recebimento da denúncia —argumentou Fachin, que foi rebatido por Lewandowski: — A ação penal não pode se substituir a uma investigação. Findo o inquérito, é preciso se trazer um pouco mais. Não se pode se utilizar da ação penal para buscar provas que não se obteve no inquérito. É preciso haver um mínimo de provas nessa primeira investigação.

No voto, Gilmar Mendes usou como exemplo um dos primeiros processos da Lava-Jato abertos no STF, contra a senadora Gleisi Hoffmann (PT-PR) e o marido dela, o ex-ministro do Planejamento Paulo Bernardo. Segundo o ministro, a ação penal foi aberta apenas com base em delação premiada. Concluída a investigação, não foram encontradas provas para corroborar as delações —e, por isso, o casal foi inocentado.

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— Certamente cometemos equívocos, mas nós mesmos estamos percebendo quão falhas podem ser essas delações e quão severo deve ser o escrutínio para que nós a validemos. A lei deve ser aplicada com essa severidade. (No caso de Ciro Nogueira), considerado o elevado tempo de investigação, há que se trazer um pouco mais, que não somente a voz do delator — ponderou Gilmar.


II – O RECURSO CABÍVEL DA DECISÃO HISTORIADA

Com o devido respeito agiu mal o Supremo Tribunal Federal por seu órgão turmário.

Dessa decisão caberá o ajuizamento de recurso de embargos de declaração por parte da acusação.

Dispõe, a propósito, o artigo 619 do Código de Processo Penal que aos acórdãos proferidos pelos Tribunais de Apelação, câmaras ou turmas, poderão ser opostos embargos de declaração, no prazo de dois dias, contado de sua publicação, quando houver na sentença ambigüidade, contradição, obscuridade e omissão. Em verdade todas essas formas se reduzem a omissão.

Há ambiguidade quando a decisão permite mais de uma interpretação. Há obscuridade, quando não há clareza na relação, de modo que não se pode saber com certeza qual o pensamento ali exposto. Há contradição quando as afirmações colidem.

Discute-se se o julgamento dos embargos de declaração pode alterar o teor da decisão exarada.

Ora, como bem lecionou Pontes de Miranda(Comentários ao Código de Processo Civil, Rio de Janeiro, Forense, 1975, tomo VII, pág. 117), nos embargos de declaração o que se pede é que se declare o que foi pedido, porque o meio empregado para exprimi-lo é deficiente ou impróprio. Não se pede que se redecida, pede-se que se reexprima.

Será caso de ajuizamento de recurso de embargos de declaração com efeitos infringentes uma vez que há omissão, contradição,  na medida tomada com o devido respeito. 


III - A DELAÇÃO PREMIADA

Sob o ponto de vista processual, a delação premiada consiste na afirmação feita por um acusado, ao ser interrogado em juízo ou ouvido extrajudicialmente pela qual, além de confessar a autoria de um fato criminoso, igualmente atribui a um terceiro a participação no crime como seu comparsa.

O ato de delação há de ser espontâneo, pois não pode ser um ato provocado por terceiro.

Trata-se de um meio de prova, mas, para que seja considerada, há a necessidade da presença de três requisitos: a) o corréu que fez a delação tenha confessado a sua participação no crime; b) a delação encontre amparo em outros elementos de prova existentes nos autos; c) no caso de delação extrajudicial, que tenha sido confirmada em juízo. Sem esses requisitos e sem que tenha sido respeitado o contraditório, com possiblidade de reperguntas pelas partes, a delação não tem qualquer valor, sendo um ato que é destituído de eficácia jurídica.

O instituto da delação premiada se perfaz quando o agente colabora de forma voluntária e efetiva com a investigação e com o processo penal. Seu testemunho deve vir acompanhado da admissão de culpa e servir para a identificação dos demais coautores ou partícipes, e para esclarecimento acerca das infrações penais apuradas.

Recentemente, a matéria foi tratada na Lei que trata do Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência, Lei nº 12.529/2011, no artigo 86. A delação premiada foi objeto ainda da Lei nº 9.807/99 (artigo 14) e da Lei de Drogas, Lei nº 11.343/06, artigo 41.

O artigo 4º, parágrafo 5º, da Lei das Organizações Criminosas (Lei 12.850/2013), estabelece que, se a delação for posterior à sentença, a pena poderá ser reduzida pela metade ou será admitida a progressão imediata de regime. Contudo, não há a possibilidade de perdão judicial que existe para contribuições no começo das investigações. De acordo com o professor de Processo Penal da USP, Gustavo Henrique Badaró, não há limite temporal para colaborar com a Justiça. Isso pode ser feito inclusive após o trânsito em julgado da condenação.


IV  – O RECEBIMENTO DA DENÚNCIA

Tourinho Filho (Processo Penal, São Paulo, Saraiva, 2003, volume I, pág. 391) alerta que não se deve confundir início da ação penal com seu ajuizamento. Aquele se dá com o oferecimento da peça acusatória enquanto o último se dá quando o juiz profere despacho determinando a citação.

O processo tem completada a sua formação, como se lê do artigo 363 do Código de Processo Penal, consoante a redação dada pela Lei 11.719/2008, com a realização da citação do acusado.

De toda sorte, em sua defesa, o réu poderá fazer abordagens sobre os requisitos formais da denúncia. Estão eles no artigo 41 do Código de Processo Penal. Cabe discuti-los:  A descrição do fato com todas as suas circunstâncias. A denúncia formulada deve descrever, da forma mais pormenorizada, os fatos criminosos do(s) acusado(s). Isso porque o réu se defende dos fatos que lhe são imputados e não da tipificação jurídica que lhe é dada.

Uma inicial acusatória com descrição fática deficitária ou ausente é petição inepta, que, a teor do artigo 395, I, do Código de Processo Penal, deve ser rejeitada. A deficiência da narrativa implica em rejeição da denúncia.

Anote-se com relação ao recebimento da denúncia:

a) Fatos intrincados, ininteligíveis, contraditórios, devem levar a rejeição, não recebimento, da denúncia.

b) Qualificação do acusado ou fornecimento de dados que possibilitem a sua identidade;

c) Classificação do crime A omissão quanto a tipificação caracteriza uma irregularidade. De outro modo, se errônea, deve o juiz, a teor do artigo 383 do Código de Processo Penal, efetuar a emendatio libelli. d) Rol de testemunhas O rol de testemunhas deve ser apresentado com a inicial, sob pena de preclusão. e) Pedido de condenação O pedido é elemento da demanda, tal como as partes e a causa petendi, seja próxima (fato gerador do interesse de agir) ou remota(fato constitutivo do direito afirmado em juízo). Sua falta pode caracterizar inépcia. Por outro lado, de forma liberal, pode-se entender pela mera irregularidade, diante do que se insere da denúncia. f) Endereçamento O erro de endereçamento não invalida a denúncia, não enseja a sua inépcia. Por endereçamento da denúncia tem-se a indicação do órgão jurisdicional ao qual a inicial é direcionada.

O Supremo Tribunal Federal, no julgamento do HC 72.286 – 5/PR, DJU de 16 de fevereiro de 1996, manifestou-se no sentido de que o despacho que recebe a denúncia ou a queixa, embora tenha conteúdo decisório, não se encarta no conceito de decisão, como previsto no artigo 93, IX, da Constituição, não sendo exigida a sua fundamentação, que somente é exigida quando o juiz rejeita a denúncia ou a queixa.

Sabe-se que o Supremo Tribunal Federal, no julgamento do RE 74.297, DJ de 27 de março de 1974, discutiu se o ato judicial de recebimento da denúncia é ato decisório. Durante a sustentação de voto do Ministro Bilac Pinto, foi trazida a colação lição do Professor J. Canuto Mendes de Almeida, catedrático da cadeira de Processo Penal da Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, quando disse: ¨Tratando-se de dualidade de ato processual, na mesma ação penal, bem é de se entender à indubitável circunstância de que tal reiteração acusatória careceu do caráter de denúncia, pretendido pelo digno promotor público daquela comarca fluminense. Inobstante a cota que a acompanhou, sua natureza jurídico-processual poderia ter sido a de mero aditamento à denúncia(se a houvesse efetivamente aditado), baseado no art. 569 do Código de Processo Penal, tal como é a do aditamento à queixa, previsto no art. 29 desse Código. Mas nem mesmo aditamento à denúncia foi tal ato de reiteração. A segunda denúncia, reiterando a anterior, não mais fez do que ratificá-la. E, como diz o prof. Tornaghi, ¨a ratificação de ato anterior não o invalida nem convalida; limita-se a reconhecê-lo como bom e valioso. Tem caráter puramente declaratório, jamais constitutivo e seus efeitos se produzem ex tunc, isto é, desde a data do ato ratificado.¨

Data maxima venia, tenho para mim que ao proferir juízo positivo quanto à presença dos requisitos mínimos para o início do processo, o juiz deverá receber a denúncia ou a queixa (ação penal privada), num momento que é deflagrador da persecução em juízo, além de ocasionar a interrupção da prescrição, previne a competência.

Há, no recebimento da denúncia, uma autêntica decisão judicial de cunho interlocutório, através de um juízo de delibação. Por certo, por ser assim, não se exige uma fundamentação detalhada, mas concisa, uma vez que esse não é o momento de uma cognição exauriente a ser feita somente apenas após a dilação probatória exigida. Daí porque uma vez recebida a exordial e iniciado o processo, não é possível, ao órgão julgador, um juízo de retratação, que poderia ser feita através de um habeas corpus de ofício. A matéria processual que enseja o recebimento da inicial pode ser rediscutida até a sentença, pois não faz coisa julgada material. 

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. Um caso prático de recebimento da denúncia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 23, n. 5525, 17 ago. 2018. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/68374. Acesso em: 22 dez. 2024.

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