V. Consideração de receitas acessórias pelo Poder Concedente
O potencial de obtenção de receitas acessórias em concessões de iluminação pública é continuamente exaltado pelos especialistas do setor e representa uma das principais razões para o interesse crescente no segmento.
De forma geral, estas possibilidades estão relacionadas ao desenvolvimento de smart cities (ou cidades inteligentes), conceito cuja definição ainda varia de forma significativa na literatura, mas que faz referência a localidades onde diferentes atores empregam tecnologia e informação para tomar melhores decisões e alcançar maior qualidade de vida[24].
Embora persistam desafios relacionados à monetização de alguns dos potenciais serviços inerentes às smart cities e à conciliação de sua exploração com as modalidades de contratação pública existentes no Brasil, acredita-se haver interessantes oportunidades econômicas no desenvolvimento e operação de tecnologias e na apuração, consolidação e disseminação de informações nas cidades inteligentes.
Situa-se, neste cenário, o debate abordado neste tópico acerca da interpretação do parágrafo único do artigo 11 da Lei nº 8.987/95, que determina que as fontes de receita acessórias sejam “obrigatoriamente consideradas para a aferição do inicial equilíbrio econômico-financeiro do contrato”.
A controvérsia surge na medida em que, num número significativo de projetos, receitas acessórias não são incluídas no modelo econômico-financeiro referencial da concessão (na verdade, é até provável – embora não haja levantamento estatístico a respeito – que, ao menos nos projetos de iluminação pública, a consideração de projetos associados nos modelos econômico-financeiros constitua a exceção), criando uma aparente dificuldade de conciliação entre uma prática estabelecida e a literalidade do texto legal.
De imediato, identificam-se motivos razoáveis para a não consideração de receitas acessórias nos estudos que fundamentam o valor de referência da licitação; há que se admitir que, no momento da estruturação da licitação, não se conhece o efetivo interesse do licitante vencedor pela exploração de projetos associados e que a necessidade de uma autorização discricionária da Administração Pública para o desenvolvimento destas atividades, prevista nas minutas contratuais, torna ainda mais incerto o aproveitamento destas oportunidades.
Numa perspectiva mais mundana, a decisão por não incluir projetos associados no modelo pode residir também na dificuldade de se estimar a potencial lucratividade destes negócios. De mais a mais, há uma noção disseminada de que a previsão contratual de compartilhamento de receitas extraordinárias e os deságios oferecidos no processo licitatório assegurariam, por si só, a justa compensação do ente público, tornando despicienda a tentativa de incorporar estimativas dos resultados destes empreendimentos paralelos no modelo original do Poder Concedente.
Tais ponderações afiguram-se, como afirmamos, razoáveis; entretanto, caso as expectativas mais otimistas de receitas complementares em projetos de iluminação pública se mostrem acertadas, os gestores públicos devem estar atentos ao desafio que este cenário pode impor ao já complexo julgamento de exequibilidade das propostas em licitação.
Ademais, há que se que mensurar o risco de questionamentos caso a opção pela não consideração de receitas acessórias – a princípio, válida – não esteja devidamente fundamentada nos autos do processo administrativo. No projeto de PPP de Cuiabá, o Tribunal de Contas estadual exigiu um estudo específico acerca do potencial de receitas acessórias, inclusive mediante o levantamento do histórico de apuração destas receitas antes da transferência dos ativos pela distribuidora para o município[25], enquanto que, em análise acerca da licitação promovida por Içara, o Tribunal de Contas de Santa Catarina determinou expressamente que se computassem as receitas extraordinárias no plano de negócios[26].
VI. Transferência da conta de energia para concessionária
A lógica econômica subjacente às concessões de iluminação pública é de que os gastos com novos investimentos e uma prestação mais qualificada dos serviços para a população sejam compensados pela economia de energia decorrente da adoção de tecnologias com maior eficiência energética.
O resultado que comumente se espera, portanto, não é propriamente uma redução do gasto total do município, que viabilize a redução da alíquota da contribuição sobre iluminação pública, mas sim uma redução da conta de energia e um correspondente aumento dos gastos com a operação do parque (para a remuneração dos investimentos[27]), de forma que haja um equilíbrio entre as receitas e despesas projetadas.
Extrai-se do exposto que, caso a conta de luz municipal não seja efetivamente reduzida, a arrecadação com a COSIP tenderá a ser insuficiente para remunerar, simultaneamente, a concessionária e a distribuidora de energia. Este quadro determina a imprescindibilidade de se instituir, na modelagem do projeto, mecanismos que condicionem o pagamento de parcela da remuneração da concessionária à efetiva implantação de tecnologias com eficiência energética e à adoção das medidas burocráticas para redução do consumo faturado pela distribuidora.
Para tanto, uma possibilidade aventada por alguns gestores e agentes de mercado é a transferência da responsabilidade pelo pagamento da conta de luz referente ao parque de iluminação pública para a concessionária da parceria público-privada. Assim, haveria um estímulo direto à redução da conta de energia, já que a contratada se apropriaria integralmente destes ganhos.
É certo, porém, que embora a transferência da titularidade da conta de energia (ou, mais propriamente, da responsabilidade pelo pagamento) seja a forma mais direta do concessionário se apropriar destes ganhos, não é a única maneira de se obter este resultado econômico, podendo ser concebidos outros mecanismos contratuais que assegurem a materialização dos incentivos pretendidos.
Na comparação entre as opções de transferir ou não a responsabilidade pelo pagamento da conta de energia é preciso ter em conta alguns fatores, entre os quais se colocam, ordinariamente, (i) o impacto que o aumento da contraprestação (pela inclusão do valor da conta de energia) terá sobre o limite municipal para contratação de PPPs (ii) a gestão do risco de inadimplemento e dos riscos relacionados às alterações de políticas tarifárias de energia elétrica e (iii) a própria consistência jurídica das alternativas.
Sobre o primeiro ponto, cremos que a preocupação decorre de uma leitura inadvertidamente literal do disposto no artigo 28 da Lei nº 11.079/04[28]. A ratio legis do dispositivo foi evitar o uso abusivo do novo modelo de contratação e o comprometimento desarrazoado das finanças públicas no longo prazo. Claro está que a inclusão, no objeto da parceria público-privada, do pagamento da conta de energia, uma despesa mandatória do ente público, não importa em qualquer fardo novo ao orçamento público, razão pela qual tais valores não deveriam ser contabilizados para fins de apuração do cumprimento do limite expresso na norma legal em comento[29].
No entanto, na ausência de uma posição mais assertiva das autoridades responsáveis sobre a interpretação do dispositivo citado, este continua representando um elemento de decisão relevante nas modelagens de PPPs de iluminação pública. Em artigo acerca da estruturação do projeto de Belo Horizonte, lê-se que, após confrontar as vantagens e desvantagens de uma solução direta vis-à-vis a utilização de incentivos contratuais, os responsáveis pelo projeto informam ter identificado, na opção de transferência do pagamento da conta de energia ao concessionário, “alto risco de se ultrapassar o limite de RCL para novos projetos de PPP”, optando, então, “por manter a conta de energia sob a responsabilidade da Prefeitura”.
Em relação à gestão de riscos, se, por um lado, a transferência da responsabilidade pelo pagamento da conta simplifica, em algum grau, o contrato de concessão, na medida em que reduz a necessidade de estruturar incentivos para a eficientização energética, por outro, cria uma complexidade adicional na alocação de riscos, pressupondo ser incontroverso que o município não deva ficar completamente à mercê do risco do concessionário inadimplir suas obrigações perante a distribuidora de energia, ao mesmo tempo em que não parece haver sentido econômico em transferir, ao concessionário, os riscos relativos às variações no valor da tarifa de energia determinada por autarquia federal.
Por fim, uma questão prévia a ser analisada pelas procuradorias municipais diz respeito à admissibilidade legal em si de se transferir a responsabilidade pelo pagamento da conta de energia ao concessionário, dado que, pelo seu vulto e pela detenção de direito exclusivo de terceiro sobre a prestação do serviço de fornecimento de energia, não seria absurdo questionar a efetiva acessoriedade desta atividade em relação ao objeto principal da parceria público-privada.
Neste ponto, aliás, uma questão delicada e que tangencia o tema abordado refere-se à participação da empresa distribuidora ou empresas de seu grupo econômico na licitação. Para mostrar a controvérsia instaurada sobre o assunto, informe-se que constou, do último edital de licitação publicado pelo município de São Paulo, vedação à participação na licitação de distribuidores e fornecedores, apontando o documento como fundamento expresso desta vedação a “decisão do Tribunal de Contas do Município de São Paulo, exarada nos autos do TC n° 72.002.972/15-34”. Em sentido diametralmente oposto, a área técnica do Tribunal de Contas do Estado do Rio de Janeiro postulou, nos autos do processo TCE-RJ nº 201.227-2/18, a ilegalidade de restrição semelhante constante de edital de concessão dos serviços de iluminação pública no município de Niterói.
Faz-se conveniente acompanhar com atenção a evolução dos projetos citados, e o desdobramento dos questionamentos jurídicos relacionados, para a tomada consciente de decisão a respeito do modelo a ser implantado.
VII. Prazo da concessão
Prevê o inciso I do artigo 5º Lei nº. 11.079/04 que o prazo de vigência do contrato de concessão deverá ser “compatível com a amortização dos investimentos realizados”.
O enunciado da norma não deve ser interpretado no sentido de que exista um prazo exato de amortização dos investimentos que deverá ser descoberto pelo gestor público na estruturação do projeto, mas sim de que, dadas as premissas adotadas pelo gestor público, o contrato de concessão não deverá viger por prazo superior ao necessário para amortização dos investimentos, quando, então, a Administração deverá optar por uma nova licitação ou pela prestação direta dos serviços.
Em apertada síntese, pode-se dizer que, estimados o volume de investimentos necessários ao projeto (por meio de anteprojeto), os custos operacionais e administrativos da concessionária e a taxa de retorno exigida pelos investidores, o prazo da concessão deverá ser uma resultante dos valores de pagamento periódicos previstos para a concessionária no modelo.
Há, por óbvio, a opção de que o prazo seja uma premissa no modelo e a resultante seja o valor da contraprestação a ser paga ao concessionário; na prática, faz-se uma composição entre os dois elementos, nos parecendo, porém, dados os usuais prazos “redondos” constantes dos editais de PPP publicados (em geral, 20 anos), que tenha se difundido a opção de, ao menos para fins de ajuste final, fixar o prazo e variar a remuneração do parceiro privado[30].
Um fator importante que se deve ter em vista nos contratos de concessão de iluminação pública diz respeito à relação existente entre a vida útil dos principais equipamentos e a amortização dos investimentos da concessão. Quando nos referimos a principais equipamentos, falamos especialmente das luminárias (LED): registre-se, a título de ilustração, que no projeto de Teresina este item correspondia a 55% do CAPEX projetado no relatório de avaliação econômico-financeira publicado[31].
A princípio, reconhecer-se-ia tão-somente uma relação de limitação entre estes dois elementos: dada a necessidade de substituir os equipamentos ao final da vida útil, não seria viável estender a amortização para além deste prazo, uma vez que aí a concessionária teria de fazer novo investimento, que necessitaria de nova amortização.
Num aspecto mais pragmático, porém, supondo que o término da vida útil dos principais equipamentos da concessão coincida em dado período (o que é esperado em modelos em que se exija que estes equipamentos sejam substituídos numa mesma época), convém que esta referência seja visualizada não somente como limite, mas como meta.
Por hipótese, admita-se que o município tivesse recursos para pagar determinado valor de contraprestação que amortizasse os investimentos na metade da vida útil do investimento realizado. Neste cenário, seguindo a imposição legal, o prazo da concessão deveria se findar aí, devendo-se licitar novo contrato. Mas qual seria a vantagem, para o município, em realizar desembolsos maiores no curto e médio prazo e viabilizar, como consequência, a contratação de uma nova PPP cujo concessionário não teria de realizar investimentos por muitos anos?
Cremos que a opção mais adequada é prever um fluxo de pagamentos em que o prazo da concessão coincida com o prazo de vida útil médio dos equipamentos relevantes, subtraído do prazo necessário para operacionalização de nova concessão. Esta última ressalva se justifica pela inconveniência de se atingir o término do prazo contratual com os equipamentos já fora de condições perfeitas de funcionamento: ainda que os gestores municipais sejam diligentes em realizar o procedimento licitatório com antecedência oportuna, há um período de preparação e estruturação do novo prestador de serviços, além de um prazo inerente à própria realização física dos investimentos, que não podem ser desprezados[32].
Observando a dinâmica do mercado, percebe-se que os prazos típicos das parcerias público-privadas de iluminação pública soem ser significativamente superiores ao prazo médio de vida útil dos principais equipamentos da concessão. Isso ocorre porque, via de regra, os modelos financeiros preveem mais de um ciclo de investimentos. Tal previsão não costuma resultar numa obrigação contratual específica da concessionária de realizar determinados ciclos de investimento, mas impõe-se pela realidade fática da vida útil dos equipamentos disponíveis no mercado[33].
Um fator adicional que pode ser ponderado nesta definição, e que se relaciona ao que expusemos no item V, é a identificação de oportunidades de desenvolvimento de projetos associados à concessão que possuam prazos de amortização mais dilatados. Nestes casos, o prolongamento do contrato de concessão decorrente da previsão de mais de um ciclo de investimentos acaba por favorecer a exploração de receitas acessórias pelo concessionário[34].
Enfim, são diversas as análises que perpassam a definição do prazo contratual de uma concessão, sendo imprescindível, em qualquer hipótese, preservar a compatibilidade entre o prazo a ser previsto e a amortização dos investimentos, e adotar a cautela de descrever detalhadamente, no processo administrativo, a fundamentação para opção realizada.