Resumo: A Lei nº 13.718/2018 trouxe importantes modificações ao Título VI do Código Penal brasileiro, que trata dos crimes contra a dignidade sexual. Nesse estudo, buscar-se-á discutir o acerto (ou não) da alteração referente à natureza da ação do crime de estupro, que se tornou pública incondicionada, considerando-se, especialmente, o cruel processo de revitimização do(a) ofendido(a), bem como o strepitus judicii. Vale destacar que, na presente discussão, ater-se-á ao estupro cuja vítima seja maior e capaz. Para tanto, fez-se um estudo bibliográfico, principalmente de autores consagrados na doutrina brasileira, bem como de artigos e da legislação oficial.
Palavras-chave: Lei nº 13.718/2018. Revitimização. Strepitus judicii. Direito Penal Simbólico.
1. INTRODUÇÃO
Segundo a ementa da Lei n° 13.718/2018, esta foi criada com o fim de “[...] tipificar os crimes de importunação sexual e de divulgação de cena de estupro, tornar pública incondicionada a natureza da ação penal dos crimes contra a liberdade sexual e dos crimes sexuais contra vulnerável, estabelecer causas de aumento de pena para esses crimes e definir como causas de aumento de pena o estupro coletivo e o estupro corretivo [...]”.
Vê-se que tal lei representou um progresso contra os crimes sexuais, em que pese a sociedade brasileira ainda ser bastante machista. Contudo, sem negar a importância da repressão de crimes como estupro coletivo ou corretivo, bem como as tão recorrentes divulgações de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia, o legislador se excedeu ao tornar qualquer crime contra a dignidade sexual de ação pública incondicionada. Cumpre destacar que esse estudo não tem a pretensão de discutir a validade da Lei n°13.718 como um todo, mas apenas quanto à modificação da natureza da ação penal especificadamente do crime de estupro.
Dessa maneira, o problema dessa pesquisa visa questionar se a mudança provocada pela supracitada lei quanto à natureza da ação especificamente do crime de estupro foi realmente acertada. Será se realmente tal modificação considerou o ponto de vista da vítima estuprada? Será se a Lei foi criada apenas com o fito de proteger a dignidade sexual do ofendido? Até que ponto o Estado pode intervir na vida privada da vítima?
Tendo em vista tais questionamentos, apontou-se algumas hipóteses: acredita-se que a Lei n° 13.718/2018 não considerou a dignidade humana da vítima, de modo que não trouxe nenhuma possibilidade de poupá-la de um possível processo de revitimização ou de sofrer com o stripitus judicii; outrossim, pensa-se que tal lei foi criada como uma forma imediatista, influenciada pelo forte pressão e apelo das mídias sensacionalistas (e oportunistas), bem como pelo movimento feminino, de resolver as altas taxas de crimes sexuais.
O objetivo geral é discutir a razoabilidade da mudança da natureza jurídica da ação do crime de estupro, de modo a analisar se tal mudança traz verdadeiros benefícios, ou apenas se trata de uma indevida intromissão do Estado na vida privada da vítima, tornando-a, dentro da persecução penal, um mero objeto de investigação. Dessa maneira, os objetivos específicos são analisar o contexto em que a Lei n° 13.718 foi criada, de modo a identificar suas verdadeiras bases; analisar o processo de revitimização do ofendido quando dos crimes de estupro, bem como o strepitus judicii provocado nesse delito; e analisar se a criação da mencionada lei não se tratou apenas de um Direito Penal simbólico.
A escolha desse tema justificou-se pelas discussões causadas pela Lei n° 13.718 e o delicado liame existente entre o direito de punir do Estado e o respeito à vida privada da pessoa, quando dos crimes sexuais, que, em regra, causam grande constrangimento nas vítimas durante toda a persecução penal.
Adotou-se, no presente estudo, o método dedutivo. A pesquisa foi eminentemente bibliográfica, principalmente com o estudo da legislação e doutrina de direito penal.
2. A EVOLUÇÃO DO CÓDIGO PENAL QUANTO À NATUREZA DA AÇÃO DO CRIME DE ESTUPRO
Durante o período Colonial, a legislação que vigorava no Brasil era originada, em sua totalidade, de Portugal (metrópole). Dessa forma, nesse ínterim, o Brasil submeteu-se às Ordenações Afonsinas (1446), Manuelinas (1514) e Filipinas (1603). Contudo, nesse estudo, ater-se-á às legislações “genuinamente” brasileiras.
No período imperial do Brasil, surgiu a primeira Constituição brasileira (1824). Essa, em seu artigo 179, XVIII, previa a organização de um Código Criminal fundado na justiça e equidade. Dessa maneira, sucedendo as Ordenações Filipinas em matéria penal, foi elaborado, no ano de 1830, o primeiro Código Criminal brasileiro (denominado Código Criminal do Império do Brazil). Contudo, esse diploma não versou especificamente acerca da ação penal cabível ao crime de estupro.
Somente no período republicano, com o Código Penal dos Estados Unidos do Brazil (1890), previu-se expressamente, em seu artigo 407, a natureza da ação para o delito de estupro:
Art. 407. Haverá logar a acção penal:
§ 1º Por queixa da parte offendida, ou de quem tiver qualidade para represental-a.
§ 2º Por denuncia do ministerio publico, em todos os crimes e contravenções. Exceptuam-se:
1º, os crimes de furto e damno, não tendo havido prisão em flagrante;
2º, os crimes de violencia carnal, rapto, adulterio, parto supposto, calumnia e injuria, em que sómente caberá proceder por queixa da parte, salvos os casos do art. 274.
§ 3º Mediante procedimento ex-officio nos crimes inafiançaveis, quando não for apresentada a denuncia nos prazos da lei.
De acordo com o supracitado artigo, os crimes de violência carnal (dentre os quais, o delito de estupro) eram de ação privada, salvo, conforme o artigo 274 ainda do Código Penal de 1890, se a ofendida fosse miserável, ou asilada de algum estabelecimento de caridade; se da violência carnal resultasse morte, perigo de vida ou alteração grave da saúde da ofendida; ou se o crime fosse perpetrado com abuso do pátrio poder ou da autoridade do tutor, curador ou preceptor; casos esses em que a ação era pública.
A Consolidação das Leis Penais de 1932, por sua vez, em suas Disposições Gerais (Livro IV), artigo 407, seguindo a linha de raciocínio do Código Penal de 1890, dispôs que:
Art. 407 - Haverá logar a acção penal:
...
§3º - Por denuncia do Ministerio Publico em todos os crimes e contravenções.
Exceptuam-se:
...
II - Os crimes de violencia carnal, rapto, adulterio, parto supposto, em que sómente caberá procedimento por queixa da parte, salvo nos casos dos arts. 274e 278, e bem assim os de violencia e attentados ao pudor praticados nas pessoas dos alienados.
Quanto aos casos em que os crimes sexuais seriam de ação pública, a Consolidação das Leis Penais repetiu a redação do artigo 274 do Código Penal de 1890, cujas hipóteses já foram mencionadas. Outrossim, ambos os diplomas previam, igualmente no artigo 408, que o Ministério Público seria ouvido em todos os termos da ação intentada por queixa, assim como a vítima poderia auxiliar o Parquet nas ações propostas por denúncia.
Ocorre que, após a reforma penal de 1984 (Lei nº 7.209), considerando que se tratava de delito complexo e interpretando a nova redação do artigo 101 do Código Penal, o Supremo Tribunal Federal (STF) editou a súmula nº 608, que passou a considerar os crimes de estupro praticados mediante violência real de ação pública incondicionada. Dessa forma, os estupros que fossem praticados com coação física contra a vítima não mais seriam de natureza privada ou dependeriam de representação.
O Código de 1940, em sua redação original (Decreto-lei n° 2.848), no artigo 225, definiu que o crime de estupro se procedia, em regra, mediante queixa, contudo teria natureza pública se a vítima ou seus pais não pudessem prover as despesas do processo, sem privar-se de recursos indispensáveis à manutenção própria ou da família (caso esse que dependeria de representação); ou se o crime fosse cometido com abuso do pátrio poder, ou da qualidade de padrasto, tutor ou curador (seria de ação pública incondicionada).
Contudo, a redação do artigo 225 do Código Penal de 1940 foi modificada pela primeira vez através da Lei nº 12.015 e passou a prever que, nos crimes dispostos no capítulos I e II do Título VI do Código Penal, dentre os quais o crime de estupro, procediam-se mediante ação penal pública condicionada à representação. Se, porém, os referidos crimes fossem praticados contra vítima menor de 18 (dezoito) anos ou vulnerável, a ação seria pública incondicionada. Assim, não havia mais previsão direta para os crimes sexuais terem o seu processo judicial iniciado através de iniciativa privada, salvo, em obediência ao artigo 5º, LIX, da Constituição Federal, nos casos em que o Ministério Público deixasse de oferecer a denúncia no prazo legal.
A respeito dessa primeira mudança feita no artigo 225 do Estatuto Repressor, vale destacar o seguinte trecho da exposição de motivos da Lei nº.12.015/2009:
Sem dúvida, a eficácia na proteção da liberdade sexual da pessoa e, em especial, a proteção ao desenvolvimento da sexualidade da criança e do adolescente são questões de interesse público, de ordem pública, não podendo em hipótese alguma ser dependente de ação penal privada e passível das correlatas possibilidades de renúncia e de perdão do ofendido ou ofendida ou ainda de quem tem qualidade para representá-los.
A mudança da natureza da ação para pública condicionada (nos casos da redação dada pela Lei nº 12.015/2009) foi sensata, posto que, na peculiaridade dos crimes sexuais, quando a vítima, pelos mais diversos motivos, não tem interesse na persecução criminal, esta se torna quase que inócua. Por outro lado, o pleno desenvolvimento e liberdade sexual são de interesse público. Nesse sentido, a conciliação do interesse público com o privado havia sido uma excelente escolha. Já nos casos dos menores de 18 (dezoito) anos e dos vulneráveis, que ensejam proteção integral do Estado, a ação foi acertadamente imposta como pública incondicionada.
Contudo, o parágrafo único do artigo 225 do Código Penal (com a redação dada pela lei nº 12.015/2009) trazia uma contradição com o disposto no caput desse mesmo artigo, uma vez que esse determinava que os crimes definidos nos Capítulos I e II do Título VI do Estatuto Repressor procediam-se mediante representação, ao passo que o seu parágrafo único previa que os crimes dispostos no capítulo II (Dos crimes sexuais contra vulnerável) sempre seriam de ação pública incondicionada.
A respeito dessa contradição, Luis Flávio Gomes (2009) defendeu que a predisposição publicista que o Direito vinha adotando não podia ser considerada de tal forma a negligenciar o direito à privacidade da vítima “quando o delito atinge a sua intimidade, que é um dos relevantes aspectos (que lhe sobra) da sua personalidade”.
Nesse sentido, tentando dá uma solução para a contradição presente no artigo 225 do Código Penal, Rogério Greco (2015, p. 550) propôs que a melhor interpretação seria no sentido de se entender que, em regra, os crimes constantes no Capítulo I do Título VI do Código Penal seriam de ação pública condicionada à representação, ao passo que os delitos inseridos no Capítulo II do referido título seriam de ação pública incondicionada. Contudo, comentando essa posição tomada por Rogério Greco, Cezar Bitencourt (2011, p.136) argumentou que:
Afasta, referido autor, por completo, o texto legal, ou seja, cria uma disciplina da ação penal que não consta do ordenamento jurídico, agravando a situação do infrator. [...] A ressalva sugerida pelo ilustre doutrinador importa em um acréscimo “legislativo” que agrava a situação do infrator, violando o princípio de legalidade, embora reconhecemos, seria uma redação bem melhor.
Tendo em vista que a redação trazida pela Lei nº 12.015/2009 ao caput do artigo 225 do Código Penal trouxe uma condição mais benéfica para o réu (posto que condicionava a persecução penal a uma iniciativa da vítima ou de seu representante), ao passo que o parágrafo único do referido artigo tornava a ação penal obrigatória (tendo em vista indisponibilidade da ação penal), Cezar Bitencourt (2011, p. 137) sustentou que, nesse conflito de normas, a escolha de uma dessas não podia ser feita de forma a agravar a situação do réu. Assim, segundo o referido autor, a eleição do artigo 225, caput, seria a escolha mais vantajosa, uma vez que contemplaria um interesse do réu (tendo em vista que a ação só poderia ser iniciada se precedida de representação do/a ofendido/a), bem como da própria vítima, que deixaria de ser mero objeto de investigação, e passaria a ver a sua vontade preponderar, de certa forma, sobre o interesse público: ficaria a cargo de a vítima escolher entre o crime permanecer impune ou a mesma ter que suportar, em prol da condenação do sujeito ativo, o ônus de expor a sua vida íntima nos Tribunais.
Cumpre destacar, ainda, as discussões provocadas pela Lei 12.015/2009 a respeito da permanência da validade da Súmula 608 do STF. Tais discussões decorreram do fato da mencionada Lei ter tornado, como exposto, os delitos de estupro, em regra, de ação penal pública condicionada à representação, deixando assim, tal súmula sem fundamentação lógica.
Ora, a súmula 608 do STF fora editada com base na então vigente redação do artigo 101 do Código Penal, que preceituava que o crime complexo procedia-se mediante ação pública, se um dos delitos que o formasse tivesse natureza pública, ainda que o outro fosse de ação privada. Dessa forma, como após a Lei 12.015/2009 ambos os delitos (referente à violência real e ao estupro) tornaram-se de natureza pública, a maioria da doutrina entendeu que a referida súmula não seria aplicável, restando vigente apenas a regra do artigo 225 do Código Penal.
Já a recente modificação feita no artigo 225 do Código Penal, por meio da Lei nº 13.718, de setembro de 2018, definiu que os crimes definidos nos Capítulos I e II do Título VI do referido diploma legal, procede-se mediante ação penal pública incondicionada. Ou seja, a citada modificação excluiu qualquer possibilidade ação privada ou pública condicionada à representação para o crime de estupro.
Por fim, destaca-se que a mudança promovida pela Lei nº 13.718 pôs fim, de uma vez por todas, à discussão acerca da natureza da ação dos crimes de estupro agravados pelo resultado (praticados mediante violência real), revogando tacitamente a tão discutida súmula 608 do STF.
3. A LEI Nº 13.718 E O CONTEXTO DE SUA ELABORAÇÃO
A Lei n° 13.718 é fruto do Projeto de Lei do Senado (PLS) n°618, de 2015, de autoria da senadora Vanessa Grazziotin do PCdoB-AM. Tal projeto previa, de início, apenas a criação de uma causa de aumento de pena para o crime de estupro cometido em concurso de duas ou mais pessoas.
Contudo, após o trâmite de todo o processo legislativo, no dia 24 de Setembro de 2018, ou seja, três anos após, a referida lei foi sancionada contendo uma significativa modificação do Código Penal, mais especificamente no Título que trata dos crimes sexuais, inserindo novos delitos (crime de importunação sexual e crime de divulgação de cena de estupro ou de cena de estupro de vulnerável, de cena de sexo ou de pornografia) e modificando outros (inserção do artigo 217-A, §5°; alteração da redação dos artigos 225, 226 e 234-A).
O supracitado projeto e a sanção da Lei n°13.718 tiveram como contexto uma intensa atividade da mídia sensacionalista, bem como do movimento feminista.
Na própria justificação do PLS n°618, citou-se, como exemplo dos ditos corriqueiros estupros coletivos ocorridos no Brasil, o caso de quatro adolescentes que foram vítimas de estupro coletivo ocorrido em Castelo do Piauí. Tal fato, à época, tomou conta dos meios de comunicação, inclusive em âmbito nacional, que, bem mais do que informar, tornou as investigações um verdadeiro entretenimento para os telespectadores, com a busca incessante por “novidades” (e consequente veiculação de fake news), que eram divulgadas com o tom dramático típico da mídia sensacionalista, e por detalhes da vida das vítimas e dos agressores. Sobre esse sensacionalismo, Oacir Silva Mascarenhas (2019) afirma que:
A repetição constante de um fato criminal, sobretudo um caso criminal célebre, no qual os envolvidos já fazem parte do cotidiano midiático provoca uma sensação de choque no leitor/telespectador, entre os quais se inclui o legislador, que acaba entrando na onda midiática e legislando velozmente.
Vê-se que a transformação do crime em um espetáculo midiático é bastante prejudicial para a verdadeira compreensão, por parte da população, acerca dos institutos penais, pois, em regra, as notícias são veiculadas em programas policiais, que tem as respectivas reportagens comentadas por um apresentador dominado por pensamentos fundamentados no senso comum, mas que, em razão da retórica aguçada, é capaz de fazer brotar no telespectador o sentimento de ódio e medo, bem como o desejo por punição imediata e por vingança privada.
A par disso, nota-se que imprescindível que o legislador tenha a maturidade de perceber que nem sempre o desejo da coletividade realmente encontra guarita no Direito Penal, sobretudo ante a uma população que, geralmente, aceita passivamente as imposições disfarçadas da mídia, sem sequer procurar averiguar sobre a realidade dos fatos veiculados.
Dessa maneira, a mídia há anos tem colaborado para o crescimento do sentimento de medo e de revolta da população brasileira e, consequentemente, acaba por, sem qualquer legitimidade, influenciar o poder legislativo quando da criação das leis.
Como bem pontuou Maíra Souto Maior Kerstenetzky (2019), a “[...] divulgação de notícias exageradas na mídia desperta nas pessoas um encanto punitivista e, consequentemente, uma busca indomável por uma resposta repressiva do Direito Penal”.
Nesse sentido é que Gabriella Araújo e Andrea Morais (2018) defendem que a mídia acaba por exercer um controle indireto sobre a política, vez que os meios de comunicação em massa fazem, ainda que de maneira invisível e subliminar, com que o legislativo responda às inúmeras “necessidades” (tais como segurança, punibilidade e reprimenda) fomentadas na população.
Dessa maneira, sem desmerecer a gravidade do supracitado estupro coletivo que fora uma das bases para a criação do projeto de Lei n°618 do Senado, sabe-se bem esse resultou de uma falsa realidade, fomentada pela mídia, cuja cobertura midiática em torno do caso provocou um desejo de vingança na população, bem como um clamor por uma atuação mais repressiva por parte do Estado. Ocorre que a ânsia por uma falsa sensação de tranquilidade e segurança não pode ser o fundamento para a criação ou modificação de um tipo penal. Como afirmou Fernando Capez (2018, p. 72):
O Direito Penal é muito mais do que um instrumento opressivo em defesa do aparelho estatal. Exerce uma função de ordenação dos contatos sociais, estimulando práticas positivas e refreando as perniciosas e, por essa razão, não pode ser fruto de uma elucubração abstrata ou da necessidade de atender a momentâneos apelos demagógicos, mas, ao contrário, refletir, com método e ciência, o justo anseio social.
Em que pese a necessidade de maior repressão do crime de estupro, os legisladores, tendo em vista a política criminal, não poderiam ter se aproveitado do pânico generalizado causado pelas mídias sensacionalistas, que tem como único objetivo o ganho de lucro sobre a desgraça alheia, para criar tipos que, em verdade, só criam uma falsa sensação de segurança, ao passo que pouco ou nada perseguem o real objetivo do direito penal. Nesse sentido, Oscar Sarrule (SARRULE, 1998 apud GRECO, 2017, p. 131) afirma que:
As proibições penais somente se justificam quando se referem a condutas que afetem gravemente a direitos de terceiros; como consequência, não podem ser concebidas como respostas puramente éticas aos problemas que se apresentam senão como mecanismos de uso inevitável para que sejam assegurados os pactos que sustentam o ordenamento normativo, quando não existe outro modo de resolver o conflito.
Observa-se que o sentimento de insegurança causado, em sua maior parte, pela mídia sensacionalista, era tão grande que, como visto alhures, o projeto da Senadora Vanessa Grazziotin, a priore, previa apenas uma causa de aumento de pena, contudo a lei sancionada determinou diversas outras modificações no Código Penal, chegando até a modificar a natureza da ação cabível. Ou seja, o medo levou a uma excessiva interferência do Estado no foro íntimo da vítima, sob pena de “pegar o culpado pelo crime sexual a todo custo”, sem sequer considerar a posição da vítima. A respeito da interferência da mídia oportunista na atividade legislativa, Maíra Souto Maior Kerstenetzky (2019) muito bem argumentou que:
...] quando um fato ganha repercussão, nascem propostas de aumento de pena, de supressão de direitos individuais, de criação de novos tipos penais, mesmo que não seja alternativa adequada para realmente se solucionar com conflitos. Assim, o que o Estado deseja, na verdade, é agir de forma que satisfaça o sentimento emocional de um povo atemorizado.
Somada à atuação da mídia sensacionalista, outro fator que contribuiu bastante para a sanção da Lei n° 13.718 foi o empenho das feministas nos mais variados espaços, dentre os quais no Direito Penal.
A igualdade de tratamento proposta pela lei (igualdade formal) não se mostrava mais suficiente, vez que os gêneros não partiam do mesmo “patamar” na sociedade. Dessa forma, o movimento feminista passou a defender o fim da “imparcialidade” das leis, de modo a oferecer um tratamento especial às mulheres, na medida de sua desigualdade, ante a posição historicamente favorecida do homem.
Nesse sentido, o movimento feminista enxergou no Direito Penal a oportunidade de angariar visibilidade às suas causas, vez que, quando determinada conduta é elevada à condição de ilícito penal, há grandes chances de a população compreender a gravidade e ofensividade daquele comportamento. Ocorre que, em que pese a necessidade da compreensão e conscientização das pessoas a respeito de determinadas condutas que inferiorizam a mulher, o Direito Penal não foi pensado, especialmente por ser a ultima ratio, com tal finalidade.
A criação de um delito não pode jamais ser encarada como a primeira solução para os conflitos eminentemente ideológicos, sob pena de desvirtuar o Direito Penal, sobretudo ao se considerar que o machismo é um problema social, cuja atuação mais “agressiva” do poder legislativo, criando leis mais duras, não é a solução mais eficaz para superá-lo.
Contudo, as sucessivas investidas feministas acabaram por prejudicar o necessário estudo político-criminal das modificações propostas pela Lei n° 13.718, de modo que essa surgiu claramente como uma resposta do poder legislativo ao clamor social e da mídia, a “dar à população o que ela queria”, sem se preocupar com as consequências provocadas nas vidas das vítimas, especialmente quanto à possibilidade do(a) ofendido(a) decidir acerca do início do processo.
A criação ou modificação de tipos penais, sem fundamento na política criminal, cuja tutela extrapole os bens mais essenciais para a convivência e paz social, se trata apenas um com ledo engano para a população assustada, que não resulta em maiores impactos na criminalidade, ou seja, configurando-se somente, como se explanará a seguir, em Direito Penal Simbólico.