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A natureza da ação do crime de estupro e o direito à privacidade da vítima

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01/03/2019 às 16:26
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4. A REVITIMIZAÇÃO DO OFENDIDO

A vitimização pode ser caracterizada como sendo as consequências ruins oriundas de um episódio traumático na vida de uma pessoa. Em regra, a vitimização classifica-se como primária, secundária e terciária.

Com a prática de um delito, temos, de pronto, a vitimização primária. Ou seja, essa ocorre quando do momento do crime, ocasião em que a vítima tem seus direitos violados. Segundo Sandro Carvalho e Joaquim Lobato (2008), o referido tipo de vitimização provoca danos variados ao ofendido, podendo esses ser materiais, físicos, psicológicos, a depender da natureza da infração sofrida, bem como da personalidade da vítima, a sua relação com o agente violador, a extensão do dano, dentre outros.

Já a vitimização secundária, também denominada de “sobrevitimização”, ocorre após a prática do delito, quando do procedimento oficial do Estado, no qual a vítima se ver obrigada a expor os fatos perante a Polícia, Ministério Público e Poder Judiciário. Ou seja, a vitimização secundária se trata de um mal que ocorre durante a persecução penal. Ana Sofia Schimidt de Oliveira (1999, p. 113), explicando sobre alguns motivos pelas quais a sobrevitimização se torna mais preocupante do que a própria vitimização primária, declarou que:

O primeiro deles diz respeito ao desvio de finalidade: afinal, as instâncias formais de controle social destinam-se a evitar a vitimização. Assim, a vitimização secundária pode trazer uma sensação de desamparo e frustração maior que a vitimização primária (do delinqüente, a vítima não esperava ajuda ou empatia). Há que consignar também que a vitimização secundária causa uma grave perda de credibilidade nas instâncias formais de controle social e a vítima não encontra uma resposta para a pergunta: “em quem confiar?”.

Explanando sobre os casos de estupro, Renata Floriano de Sousa (2017) afirma que não resta suficiente a constatação da consumação desse delito para que ele seja devidamente apurado. A impressão que dá é que parece ser “necessário” que a ofendida passe por um processo de investigação de seu “histórico”, de como era sua reputação antes da prática do crime de estupro, para, só então, ser realmente considerada uma vítima.

De acordo com a supracitada autora, ser vítima de estupro é um status social condicionado à reputação do ofendido. Ainda explanando sobre essa questão, Renata de Sousa fez uma interessante comparação de como se sucedem os fatos quando não se trata do crime de estupro:

...] por exemplo: quando alguém tem seu carro roubado, nem as autoridades, nem a sociedade indagam ao proprietário do veículo de que modo ele lidava com o objeto antes do roubo. Não é empregada uma investigação mais arguta sobre os antecedentes da vítima de roubo; o máximo que ocorre no momento do preenchimento do boletim de ocorrência são as condições em que o roubo se deu. E, de modo geral, em todos os meios de comunicação, o conselho geral é de que: em caso de roubo não reaja, apenas entregue os seus objetos ao ladrão. É bem verdade que, de vez em quando, ocorrem casos de que o roubo foi forjado porque era um golpe contra a seguradora do veículo, ou qualquer outro motivo que passa, aqui, a ser listado. No entanto, se observados os casos em que o roubo era fajuto, esses, por sua vez, são tratados como exceção, e, não, como regra. De modo que, quando alguém nos comunica um roubo, temos maior tendência em acreditar na vítima do que de duvidar dela. Parece haver, na sociedade, um sentimento muito mais definido de justiça em caso da violação da propriedade do que da violação da dignidade.

Infelizmente, a justiça brasileira ainda não conta com um sistema amplo e permanente para a capacitação adequada dos profissionais que irão acolher e cuidar de uma pessoa que fora vítima de violência sexual.

Muitas vezes os representantes do Estado estão mais preocupas em apurar a conduta e “honestidade” da vítima do que os fatos que envolveram o crime propriamente dito. O(a) ofendido(a) se vê obrigado(a) a justificar porque estava usando determinada roupa, ou porque se encontrava em determinado local ou em determinada hora. Ou seja, inúmeras são as tentativas de colocar na vítima a culpa por uma atitude de outrem, como se qualquer ação daquela pudesse justificar tamanha violação de seus direitos.

Além disso, não raro, a vítima é obrigada a justificar determinadas atitudes que tomara (que, em tese, teria “seduzido” o acusado), bem como é questionada sobre o que teria feito para evitar o crime. Tudo isso destoa bastante do que, em regra, é feito quando da prática de outros crimes. Em casos de roubo, por exemplo, a orientação geral das autoridades policiais é no sentido de que o ofendido não reaja ao assalto.

No caso de estupro, porém, se a vítima não se apresentar na Delegacia repleta de hematomas, como prova de que lutou brava e heroicamente para manter a sua honra, não se enquadra no conceito de vítima de estupro pré-estabelecido pela maior parte da sociedade e até por representantes do Estado.

E o mais grave: na maioria das vezes a vítima precisa provar que não teria gostado do ato libidinoso ou da conjunção carnal. Ou seja, além de relatar os fatos, o(a) ofendido(a) precisa convencer as autoridades de que não se trata de uma “vítima simulada”.

Infelizmente, em face da disseminação do machismo, que encara a mulher como um mero objeto do homem, o estupro, muitas vezes é visto como um episódio em que a mulher seduz o homem e depois não aceita “as consequências” de tal “sedução”. Dessa forma, há uma verdadeira inversão de valores: o estuprador se torna quase que uma “vítima”, ao passo que a verdadeira ofendida, que teve a sua dignidade sexual violada, sofre mais um processo de vitimização. Nesse sentido, Vera Regina Pereira de Andrade (2012, p. 148 apud BARBOSA; BORGES, 2017, p.390) muito bem explanou que:

...] o julgamento de um crime sexual – inclusive e especialmente o estupro – não é uma arena onde se procede ao reconhecimento de uma violência e violação contra a liberdade sexual feminina nem tampouco onde se julga um homem pelo seu ato. Trata-se de uma arena onde se julgam simultaneamente, confrontados numa fortíssima correlação de forças, a pessoa do autor e da vítima: o seu comportamento, a sua vida pregressa. E onde está em jogo, para a mulher, a sua inteira “reputação sexual” que é – ao lado do status familiar – uma variável tão decisiva para o reconhecimento da vitimação sexual feminina quanto a variável status social o é para a criminalização masculina.

Além de a vítima ter que provar sua “boa conduta social”, de acordo com os parâmetros socialmente e historicamente estabelecidos, o agressor também precisa ser encaixado no estereótipo de “estuprador”.

Somado a tudo isso, a vítima é forçada, sobretudo em razão da morosidade da tramitação do processo no Brasil, a narrar repetidas vezes o mesmo fato, “revivendo” cada detalhe e violência sofrida. Há que se considerar, ainda, que, quando dessas narrações, o(a) ofendido(a) é observado atentamente, principalmente pelo advogado de defesa, ocasião em que esse fica atento a qualquer contradição que possa ocorrer, com o único fito de desqualificar a vítima.

Ressalta-se, outrossim, o despreparo de muitas autoridades que, ao ouvir a vítima, fazem questionamentos indelicados e desnecessários, sem qualquer preocupação com o estado emocional e psicológico do(a) ofendido(a), bem como com as consequências que suas falas podem provocar na vida desse/dessa.

Não raro, também, a vítima é humilhada e tem toda a sua reputação manchada por parte do advogado do acusado que, na tentativa de defender seu cliente e legitimar as atitudes desse, sem qualquer respeita à intimidade da vítima, procura desmerecê-la, expõe fatos constrangedores sobre ela e buscam a todo custo colocar toda a culpa do crime sobre a mesma.

A vitimização secundária também ocorre na ocasião da realização do exame de corpo de delito, ou com o reencontro do ofendido com o agressor, seja quando da audiência, quando do reconhecimento do criminoso por parte da vítima, ou em eventual acareação. Tais situações são devera constrangedoras e, por vezes, até traumáticas, dado a peculiaridade que envolve o crime de estupro, que, em regra, causa danos psicológicos gravíssimos.

Há, ainda, a vitimização terciária, que é aquela sofrida pela vítima quando do conhecimento do delito por parte do meio social no qual aquela está inserida (na família, entre amigos, vizinhos, na escola, no trabalho etc.). Esse tipo de vitimização pode ser percebido, em especial, nos crimes de estupro, no qual, em regra, a vítima tem que suportar comentários maliciosos, questionamentos indiscretos (sobretudo sobre a dinâmica dos fatos e os atos violentos que sofrera) e gozações ridículas por parte das pessoas presentes em seu convívio diário.

Por vezes, os próprios familiares da ofendida a rejeitam, por entender que ela, dada a forte cultura do patriarcalismo, mesmo se tratando apenas de mais uma vítima de um crime tão perturbador, “feriu” a honra e “manchou” o nome da família. Nesse sentido, Renata Floriano de Sousa (2017) destacou que:

A construção social da vítima perfeita de estupro parte da ideia de que a castidade feminina, ou o mais próximo disso, é uma questão moral não apenas da mulher que a carrega, como, também, um atestado de bons antecedentes de sua família. Uma mulher com vida sexual intensa e conhecida em seu meio social escandaliza não somente os vizinhos ou conhecidos, mas estende para sua família a má fama da mulher. Logo, a virgindade é não somente o status físico do hímen intacto; é, também, a representação da honra da família imaculada.

Dessa maneira, as vítimas de estupro, dado as nefastas consequências que esse crime pode causar já com a vitimização primária (que vai muito além da “simples” violação de um bem jurídico), merecem, quando efetivamente desejam acionar o aparato judicial, um tratamento respeitoso e digno, que não lhe submeta a um processo de revitimização (vitimização secundária e terciária). Dessa maneira, adotar uma natureza incondicionada para todos os casos de crime de estupro, sem refletir sobre o mal da revitimização, é, no mínimo, não considerar, tampouco respeitar, a dignidade e a vontade da vítima.


5. O STREPITUS JUDICII E OS CRIMES SEXUAIS

O direito à liberdade aparece na Constituição Federal brasileira como suporte do Estado Democrático de Direito. Nesse sentido, a fim de que se resguarde o valoroso status de democracia, para que o Estado intervenha na liberdade individual (e, principalmente, no foro íntimo de uma pessoa), é primordial que haja uma intensa fundamentação que comprove a inconteste necessidade de tal “invasão”.

Como já exposto alhures, conforme a anterior redação do artigo 225 do Código Penal, os crimes dispostos nos capítulos I e II do Título VI do referido diploma procediam-se mediante ação penal pública condicionada à representação. Contudo, se os referidos delitos fossem praticados contra vítima menor de 18 (dezoito) anos ou vulnerável, a ação seria pública incondicionada.

Essa natureza incondicionada da ação dos crimes praticados contra menor de 18 anos justificava-se em razão da indispensável proteção integral da criança e do adolescente preconizada pela Constituição Federal de 1988, em seu artigo 227.

Segundo o artigo supramencionado, a família, o Estado e a sociedade tem o dever de assegurar, ao menor de 18 (dezoito) anos, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão. Ou seja, a Carta Magna de 1988 introduziu a denominada Doutrina da Proteção Integral.

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Cumpre mencionar que a Doutrina da Proteção Integral substituiu a Doutrina da Situação Irregular preconizada pelo Código de Menores de 1979 (legislação que cuidava das crianças e dos adolescentes à época). Conforme essa doutrina, o menor só fazia jus a um respaldo jurídico quando se encontrava em uma situação tida por lei como “irregular” (definidas no artigo 2º da Lei nº. 6697/79), deixando as crianças consideradas como “regulares” desprovidos de uma verdadeira proteção aos seus direitos fundamentais.

Como a Constituição Federal consagrou em seu bojo o Princípio da Proteção Integral da criança e do adolescente, tal amparo deveria refletir em todo o ordenamento jurídico brasileiro. E assim ocorreu, principalmente, no Estatuto da Criança e do Adolescente (1990) e no Código Penal (proteção essa reforçada pela Lei nº 12.015/2009).

Assim, é dever do Estado e de toda a sociedade, como cumprimento dos preceitos expostos na Constituição Federal, bem como no Estatuto da Criança e do Adolescente, conferir uma proteção integral e prioritária aos vulneráveis. Tal proteção se faz imprescindível, principalmente, no que concerne aos crimes sexuais, posto que esses podem resultar em cicatrizes físicas, psicológicas e emocionais eternas e impossíveis de se quantificar/dimensionar.

Dessa forma, a natureza incondicionada da ação dos crimes sexuais contra menor de 18 (dezoito) anos era mais do que justificável tendo em vista o dever do Estado em proteger fiel e integralmente os direitos das crianças e dos adolescentes, especialmente nos casos dos referidos delitos, pois, em geral, decorrem da omissão dos responsáveis pelo menor.

Da mesma forma, o estado deve conferir total proteção às demais pessoas consideradas por lei vulneráveis, tendo em vista que, em razão dos mais variados fatores, permanentes ou momentâneos, aqueles não gozam de sua total capacidade de autodeterminação, tampouco são capazes de aferir (de maneira razoável) as possíveis consequências de seus atos e sobre as consequências causadas pelas investigações e pelo andamento do processo.

Contudo, a natureza incondicionada da ação para os crimes sexuais praticados contra maiores de 18 (dezoito) anos (salvo, claramente, aqueles que se enquadram no conceito de vulnerável), data vênia, se trata, nitidamente, de uma excessiva interferência na vida privada dos indivíduos.

Atenta aos interesses da vítima, a antiga redação do artigo 225 do Código Penal se mostrava mais adequada, de modo que evitava que o(a) ofendido(a) fosse exposto(a) ao strepitus judicci, que é o escândalo provocado pela publicidade do processo.

A divulgação dos fatos que envolvem um estupro pode causar, do ponto de vista da vítima, danos muito maiores do que ver o agressor impune. O constrangimento inicia-se logo durante o inquérito, que, em regra, contem fotos da vítima, bem com um exame de corpo de delito que descreve lesões em regiões íntimas, e é manuseado (e muitas vezes visto com curiosidade) por diversas pessoas durante todo o processo. Além disso, em geral, os detalhes minuciosos do ato criminoso são descritos repetidamente (perante o delegado e o juiz) pela vítima, testemunhas e o acusado. Tudo isso pode causar um terrível desconforto e vergonha à vítima, contribuindo para uma nova violação de sua intimidade.

Outrossim, os crimes sexuais costumam causar, fora as lesões físicas, danos psicológicos, tais como ansiedade, depressão e a denominada síndrome de estresse pós-traumático. Dessa forma, fazer a vítima acompanhar a repercussão de fatos íntimos a ela relacionados, sem a sua anuência, é mais uma maneira de fomentar os danos naquela já causados.

Acrescentado aos fatores supramencionados, não se pode esquecer que, infelizmente, a sociedade ainda se mostra muito machista, de modo que, quando a vítima é do sexo masculino, a exposição dessa é ainda maior, o que pode resultar em grave sentimento de humilhação no ofendido.

Ademais, como já discutido, há quem considere que os crimes sexuais representem uma desonra para a família, de modo que a vítima muitas vezes prefere não noticiar o fato criminoso a fim de evitar que o nome de sua família seja difamado socialmente. A priori, tal situação pode soar um tanto arcaica, contudo não se pode negar que essa “preocupação provinciana” de não ter “o nome falado” na sociedade ainda é uma realidade, principalmente, em cidades pequenas.

Dessa maneira, inegavelmente, mostra-se mais razoável que a vítima decida acerca da conveniência de iniciar as investigações penais, bem como de expor-se nas audiências.

Conforme defendeu Eugênio Pacelli (2017, p. 81), tal juízo de conveniência tem como objetivo “[...] evitar a produção de novos danos em seu patrimônio – moral, social, psicológico etc. – diante de possível repercussão negativa trazida pelo conhecimento generalizado do fato criminoso”. Conforme argumentou Cleber Masson (2018, p.107), “a ação penal pública condicionada confere maior coerência à persecução penal do crime de estupro”.

Vê-se, então, que os crimes sexuais, em regra, causam à vítima um constrangimento superior ao que normalmente é experimentado pelos ofendidos dos demais delitos. Dessa forma, iniciar um processo contra a vontade da vítima traria mais sofrimento ainda para ela, de modo que posterior condenação do agressor não significaria, em uma visão macro, justiça para aquela (pois a penalização do acusado não se compararia a todo o sofrimento e constrangimento sofrido durante a persecução penal). Ou seja, o procedimento oficial do Estado traria mais danos ao ofendido do que ao próprio agressor.

Nesse sentido, não se mostra viável que o interesse público em punir o delinquente venha se sobrepor de tal maneira à privacidade do sujeito, tendo em vista, sobretudo, o risco da vítima sofrer com o strepitus judicci. Sendo capaz de autodeterminar-se, deve caber, em respeito à dignidade da vítima, a essa decidir pelo acionamento ou não da máquina judicial.

Dessa forma, a ação pública condicionada a representação certamente seria a natureza mais adequada para os casos de estupro praticados contra os maiores de 18 (dezoito) anos (salvo os vulneráveis), vez aquela (natureza pública condicionada) é capaz de conjugar interesses: o do Estado de punir o transgressor de suas leis e o interesse legítimo e razoável da vítima em não querer a apuração (e consequente publicização) dos atos que ofenderam-lhe a vida privada.

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Sobre o autor
Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Angélica Maria Vale. A natureza da ação do crime de estupro e o direito à privacidade da vítima. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5721, 1 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72281. Acesso em: 2 nov. 2024.

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