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A natureza da ação do crime de estupro e o direito à privacidade da vítima

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01/03/2019 às 16:26
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6. O DIREITO PENAL SIMBÓLICO E OS CRIMES CONTRA A DIGNIDADE SEXUAL

Conforme Tanise Thomasi e Luanny Fontes (2018, p. 234), o direito penal simbólico pode ser entendido como uma tendência do Poder Legislativo em criar e aprovar leis de Direito Penal com fins meramente simbólicos, de modo a “[...] primeiramente, instaurar uma ilusão de tranquilidade na sociedade perante a atual difusão do medo e da indignação diante do crime, à medida que o real fim explorado nessa área do direito, o controle do delito, passa a ser negligenciado”.

A constante sensação de medo e de impunidade - fortalecidos, como dito alhures, pela mídia sensacionalista -, aliados a ausência de um necessário estudo acerca do que o Direito Penal deve representar dentro do sistema jurídico e de uma apurada análise da Política criminal se torna um ambiente bastante propício para a criação do Direito Penal Simbólico. Sobre essa questão, Roger Moko Yabiku (2006) muito bem afirmou que:

A violência e a ameaça de ser vítima dela são motivos muito fortes, ainda mais com a dramatização proposta pelos meios de comunicação social. O medo da morte violenta e da ação dos delinquentes, que não respeitam as Leis e as convenções sociais, exige uma resposta, mesmo que seja simbólica e ilusória para subsidiar os populares de alguma sensação de segurança. Ainda que esse anseio por uma sensação de segurança tenha como resposta uma legislação rígida e mal formulada, passível de manipulação político-eleitoral. O resultado é a fomentação de uma política criminal de recrudescimento do Direito Penal e do Direito Processual Penal [..

Sabe-se bem que as modificações feitas em matéria de Direito Penal devem estar fundamentadas em estratégias da Política Criminal. Vale ressaltar que, inicialmente, o termo “Política Criminal” era atrelado apenas a atos punitivos voltados a solucionar conflitos sociais, o que lhe vinculava quase que exclusivamente ao ramo do Direito Penal. Ocorre que, atualmente, o conceito dado ao referido termo tomou significações bem mais abrangentes e passou, conforme afirma Ester Eliana Hauser, a “incluir como objeto da política criminal não somente os problemas de repressão ao crime, mas todo o conjunto de procedimentos/estratégias através dos quais o corpo social organiza as respostas ao fenômeno criminal”.

A mera criação de uma lei penal, sozinha, não é e nunca será a solução mais efetiva para coibir crimes, especialmente, o de estupro, que tem como pano de fundo um conflito social fundamentado em conceitos pré-definidos do papel da mulher na sociedade e de como essa deve ser submissa aos desejos da figura masculina.

Vê-se, claramente, que as altas taxas de estupro, sobretudo levando em consideração que a maioria esmagadora das vítimas é do sexo feminino, não se tratam apenas de uma falha na legislação brasileira. Tal problema social vai muito além do direito penal, e medidas imediatistas nesse sentido podem acarretar sérios riscos aos direitos individuais das vítimas.

A opção por alternativas unicamente punitivas não cria oportunidades para debates mais profundos sobre o tema do estupro (e suas causas) ou para a adoção de medidas educativas (no tocante, por exemplo, ao ensino acerca do necessário respeito à liberdade sexual e ao consentimento do outro; ou quanto à construção de uma visão referente à dignidade da mulher, fazendo com que essa não seja mais vista como um objeto sexual, que sempre deve estar à disposição dos desejos dos homens).

Dessa maneira, vê-se que a alteração promovida pela Lei nº 13.718/2018 acerca da natureza da ação do crime de estupro não foi totalmente baseada em uma Política criminal, pois essa envolve práticas não só repressivas, mas também preventivas. Nesse sentido, considerando o princípio da intervenção mínima (que revela ser a lei penal a ultima ratio) e, como já discutido, a efetividade que outras medidas menos radicais poderiam trazer, percebe-se que a referida Lei é uma manifestação do Direito Penal simbólico, pois se preocupou mais em oferecer uma resposta rápida à sociedade do que efetivamente tentar resolver o problema social em questão.

Cumpre relembrar, como já mencionado, que a criação da Lei nº 13.718/2018 não é de toda ruim, vez que previu crimes sobremaneira relevantes dentro do atual contexto brasileiro. Contudo a determinação da natureza incondicionada da ação para todos os casos do crime de estupro foi uma medida desproporcional, representando uma tentativa dos legisladores de responder de maneira rápida a um problema social, sem buscar alternativas mais eficazes e menos traumáticas para as vítimas.

O direito penal simbólico deixa uma lei penal bem longe de seu ideal garantista, tornando o processo legislativo um verdadeiro palanque, no qual aqueles investidos de poderes legislativos tem a oportunidade de se beneficiarem desses poderes apenas com o fim de alavancar as suas “carreiras” políticas, manobrando o sentimento da população para uma falsa sensação de que tais representantes do Estado estão agindo em prol da sociedade.

A lei penal simbólica, além de não resolver o problema que se propunha, traz um duplo desserviço para a população, pois essa é ludibriada com uma falsa sensação de segurança, ao posso que a real intenção do legislador ainda vê-se cumprir, pois o mesmo mostra à população que ele se trata de um representante atuante e que, portanto, merece ser reeleito (não importando se ele se trata de um parlamentar que observa realmente a política criminal e que está interessado na criação de uma lei efetivamente útil para a resolução dos conflitos sociais).


7. CONSIDERAÇÕES FINAIS

Inicialmente, acompanhando a evolução social acerca da concepção da sociedade sobre a dignidade sexual, apresentou-se a evolução da redação dos artigos que definiam a natureza da ação penal para o crime de estupro no Código Penal.

Ainda considerando a importância acerca da concepção da sociedade quando da definição dos delitos, analisou-se o contexto social que envolveu a elaboração da Lei n° 13.718, demonstrando a força que a mídia e o movimento feminista exerceram no poder legislativo.

Logo após, analisou-se o processo de revitimização que ainda envolve os crimes sexuais, tendo em vista ainda vigorar, na sociedade machista brasileira, a ideia de “vítima perfeita” para o crime de estupro. Ou seja, todas aquelas que não seguem o padrão “moça direita”, imposto para as mulheres, correm sérios riscos de sofrerem ainda mais com um processo judicial forçado (vez que não lhe resta outra alternativa, tendo em vista a atual redação do artigo 225 do Código Penal). No mesmo sentido, analisou-se que os crimes de estupro provocam, em regra, o stripitus judicii, que, com a natureza incondicionada da ação para os crimes de estupro, não restará alternativa à vítima maior e capaz senão ter que passar por toda sorte de constrangimento e vergonha durante a persecução penal.

Por fim, analisou-se que a referida lei, quanto à modificação da natureza da ação penal para o crime de estupro, foi mais uma configuração do Direito Penal Simbólico, pois o legislador, ao não pensar sobre as reais consequências dessa modificação para a vida da vítima, ateve-se a conceder uma falsa sensação de tranquilidade e segurança à população. Dessa maneira, viu-se que a mudança da natureza da ação do crime de estupro trouxe mais malefícios do que benefícios.

Se a supracitada mudança realmente fosse eficaz em trazer alguma diminuição dos índices de violência sexual, a sociedade brasileira já teria experimentado algum real, mesmo que sensível, sentimento de tranquilidade nesse quesito quando da mudança trazida pela Lei 12.015/2009, fato que não aconteceu. Inclusive, o permanente sentimento de insegurança, fomentado pela mídia sensacionalista, foi um dos motivos para o endurecimento excessivo e insensato do artigo que trata da natureza da ação do crime de estupro.

Está mais que claro que os altos índices de violência sexual não estão ligados a uma legislação que trata tais crimes com benevolência, mas a uma ideologia machista, que prega a inferioridade e a submissão da mulher em relação ao homem, bem como a um egocentrismo generalizado dos sujeitos, que subjugam os interesses e vontades alheios aos seus.

Dessa forma, a vítima não pode ser obrigada a pagar pela incompetência do Estado para resolver a criminalidade. Além disso, não é razoável que o Estado coloque seu interesse em punir acima dos interesses da vítima, causando-lhe traumas e prejuízos irreparáveis. Preocupar-se com a vítima de estupro, com sua saúde física e psicológica e como ela irá reagir com as consequências da agressão sofrida, deve ser mais importante do que condenar o agressor.

Em regra, infelizmente as pessoas não sabem sequer a natureza da ação para o crime de estupro, tampouco a sua pena. Dessa forma, o endurecimento da legislação, quanto à natureza da ação para esse caso em específico, não representa nenhum empecilho para que uma pessoa não cometa esse tipo de crime, ao passo que políticas públicas que abordem o tema do respeito à dignidade sexual do outrem, que trariam verdadeiros benefícios, ficam esquecidas.

Dessa forma, vê-se que se confirmaram as hipóteses estabelecidas nesse trabalho, pois a Lei n°13.718/2018 não respeitou a dignidade da vítima, tampouco se preocupou em deixar à escolha da mesma, em respeito à sua liberdade de decisão e a fim de evitar um processo de revitimização ou a ocorrência do stripitus judicii, acerca de querer ou não seguir com a persecução penal e as consequências advindas dela.


REFERÊNCIAS

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BRASIL. Consolidação das Leis Penais – Decreto n° 22.213, de 14 de dezembro de 1932. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 17 dez. 1932.

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Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

CARDOSO, Angélica Maria Vale. A natureza da ação do crime de estupro e o direito à privacidade da vítima. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 24, n. 5721, 1 mar. 2019. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/72281. Acesso em: 22 dez. 2024.

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