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A situação jurídica do filho adotivo no homicídio funcional:

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2 OS DOIS FOCOS DE CONFLITO NO HOMICÍDIO FUNCIONAL: PRINCÍPIO DA LEGALIDADE E PRINCÍPIO DA IGUALDADE

A palavra princípio vem do latim principium e significa origem, início, começo, bem como dá ideia de verdade, aquilo que serve de fundamento. Os princípios são fundamentos das normas jurídicas, eles dão rumos e constituem vetores para o Direito. Além de serem a base de sustentação de uma norma, também são fonte auxiliar para decisões judiciais quando uma regra é omissa ou insuficiente na resolução da lide.

Ao se tratar de princípios, Reale (2001, p. 286) aduz que “[...] princípios gerais de direito são enunciações normativas de valor genérico, que condicionam e orientam a compreensão do ordenamento jurídico, quer para a sua aplicação e integração, quer para a elaboração de novas normas”.

Quando necessária a criação de uma nova regulamentação, a análise de princípios será o primeiro passo, visto que estes estabelecem limitações e garantem estrutura.

Tamanha é a importância de um princípio, que sua violação é mais gravosa do que a violação de uma regra (normas que prescrevem imperativamente uma exigência), tendo em vista que esta ofende apenas um mandamento obrigatório, enquanto aquela ofende todo um sistema.

O homicídio funcional, quando investigado mais profundamente em relação aos filhos adotivos, retrata um conflito entre dois princípios norteadores do Direito Brasileiro: o princípio da legalidade, à luz do Código Penal e o princípio da igualdade, à luz da Constituição Federal.

Assim sendo, necessário se faz o estudo a respeito desses dois princípios e suas especificidades, elucidando suas definições, fundamentos, características e a importância de ambos no ordenamento jurídico.

2.1 Princípio da Legalidade

O princípio da legalidade está previsto no artigo 5°, inciso XXXIX da Constituição da República Federativa do Brasil, bem como no artigo 1° do Código Penal Brasileiro, respectivamente:

Artigo 5º Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes:

[...]

XXXIX - não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal;

[...] (BRASIL, 1988, p. 10)

Artigo. 1º - Não há crime sem lei anterior que o defina. Não há pena sem prévia cominação legal. (BRASIL, 1940, s/p)

Ambos os dispositivos afirmam que não há crime sem lei anterior que o defina, nem pena sem prévia cominação legal. Destarte, Cezar Roberto Bitencourt reitera que:                       

[...] a elaboração de normas incriminadoras é função exclusiva da lei, isto é, nenhum fato pode ser considerado crime e nenhuma pena criminal pode ser aplicada sem que antes da ocorrência desse fato exista uma lei definindo-o como crime e cominando-lhe a sanção correspondente. A lei deve definir com precisão e de forma cristalina a conduta proibida. (BITENCOURT, 2011, p. 41).

Nesse contexto, o princípio sustenta ser necessário que o legislador penal evite ao máximo o uso de expressões vagas, equívocas ou ambíguas para que sejam estabelecidas quais condutas são realmente puníveis e quais sanções deverão ser aplicadas. É dizer: embora permitida a analogia no Direito Penal, é prioridade que a norma seja precisa e exponha exatamente a vontade que culminou sua criação.

O princípio da legalidade criminal pode ser visto sob quatro dimensões: (i) Nullum crimen, nulla poena sine lege praevia; (ii) Nullum crimen, nulla poena sine lege scripta; (iii) Nullum crimen, nulla poena sine lege stricta; (iv) Nullum crimen, nulla poena sine lege certa.

A primeira dimensão aduz que não há crime nem pena sem lei prévia. Com apoio nessa premissa, surgira a “anterioridade da lei penal”, princípio que veda a retroatividade de uma norma para atingir fatos ocorridos antes de sua vigência. Assim entende o doutrinador Cunha (2015, p. 84) “pelo princípio da anterioridade, a criação de tipos e a cominação de sanções exige lei anterior, proibindo-se a retroatividade maléfica”. Dessa forma, a lei penal só pode ser aplicada para os fatos ocorridos a partir de sua vigência.

Cumpre ressaltar que a mencionada regra somente se aplica quando a lei prejudicar o agente (retroatividade in malam partem). Em contrapartida, é permitida a retroatividade da lei se esta beneficiar o agente (retroatividade in bonam partem).

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A segunda exprime que não há crime nem pena sem lei escrita. Destarte, não há criação de crimes e penas baseadas nos costumes da sociedade, apenas por meio de lei escrita. Segundo Cunha (2015, p. 85) “só a lei escrita pode criar crimes e sanções penais, excluindo-se o direito consuetudinário para fundamentação ou agravação da pena”. Assim sendo, os costumes funcionam apenas como fonte formal mediata do Direito Penal, sendo úteis para a interpretação da lei.

A terceira dimensão expressa que não há crime nem pena sem lei estrita. Significa dizer que a lei deve demonstrar exatamente qual ato se apresenta sujeito a penalização, não sendo permitido o uso de analogia em desfavor do agente. A respeito do tema, leciona Rogério Sanches Cunha:

Proíbe-se a utilização da analogia para criar tipo incriminador, fundamentar ou agravar pena. Tendo como norte este desdobramento do princípio da legalidade, o STF declarou a atipicidade da conduta do agente que furta sinal de TV a cabo, asseverando ser impossível a analogia (in malam partem) com o crime de furto de energia elétrica, previsto no artigo 155, §3º, CP. Note-se, contudo, que a analogia in bonam partem é perfeitamente possível, como ressaltado anteriormente, encontrando justificativa no princípio da equidade. (CUNHA, 2015, p. 85)

Convém destacar que a analogia in bonam partem, ou seja, aquela que beneficia o acusado, pode ser usada no Direito Penal. De outro modo, a analogia in malam partem, que prejudica o acusado, é vedada em qualquer situação.

A quarta e última dimensão diz que não há crime nem pena sem lei certa. É conhecida, da mesma forma, como mandado de certeza ou princípio da taxatividade. Logo, a lei deve conter exatamente o que se considera como crime, ou seja, tem de ser certa e delimitada. Para Rogério Sanches Cunha:

O princípio da taxatividade ou da determinação é dirigido mais diretamente à pessoa do legislador, exigindo dos tipos penais clareza, não devendo deixar margem a dúvidas, de modo a permitir à população em geral o pleno entendimento do tipo criado. (CUNHA, 2015, p. 85)

Nesse contexto, é proibida a criação de leis com conteúdo vago ou normas imprecisas, que fiquem sujeitas a interpretação do aplicador da pena.

Ademais, o princípio da legalidade é fundamentado de três formas distintas: fundamento político, fundamento histórico ou democrático e fundamento jurídico.

Para Capez (2013, p. 57), o fundamento político garante que, a partir do momento em que alguém só é punido pela prática de crime quando este for definido em lei, os membros da coletividade ficam protegidos de qualquer invasão arbitrária do Estado em seu direito de liberdade. Dessa forma, a punição que se depreenda por livre arbítrio do poder punitivo estatal é impedida, o que implica na criação de leis abstratas e exige a vinculação do Poder Executivo e do Poder Judiciário.

No fundamento jurídico, por sua vez, Capez (2013, p. 59) defende a ideia de que “somente haverá crime quando existir perfeita correspondência entre a conduta praticada e a previsão legal”. Logo esse fundamento considera que o efeito intimidativo de uma pena decorre de uma lei prévia e clara.

Por fim, nos termos do fundamento histórico ou democrático, Capez (2013, p. 59) alude que a partir da separação dos Poderes, a função de selecionar comportamentos humanos e defini-los como crime, a fim de cominar-lhes uma sanção penal correspondente, passou a ser do legislador. Consequentemente, é essencial o respeito à divisão dos poderes, que confere somente ao Poder Legislativo, representante do povo, o poder de regular crimes e penas.

2.2 Princípio Da Igualdade

O princípio da igualdade é intimamente ligado ao Estado Democrático de Direito. Ele garante que todos os cidadãos tenham o direito de tratamento idêntico pela lei e está previsto no artigo 5° da Constituição Federal:

Artigo 5º. Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes. (BRASIL, 1988, p. 9)

De acordo com Ferreira Filho (2015, p. 201), “a igualdade é uma das ideias-força da modernidade. Há três séculos ela excita os espíritos e move os homens à luta pela mudança das condições políticas, econômicas e sociais”. O princípio é fundamentado no pensamento de que todos nascem iguais e, por isso, devem ter direito às mesmas oportunidades de tratamento.

Este princípio foi proclamado ainda no preâmbulo da Constituição Federal de 1988, sendo uma fonte basilar e fundamental para o ordenamento jurídico. Conforme aduz Alexandre de Moraes:

A igualdade se configura como uma eficácia transcendente, de modo que toda situação de desigualdade persistente à entrada em vigor da norma constitucional deve ser considerada não recepcionada, se não demonstrar compatibilidade com os valores que a Constituição, como norma suprema, proclama. (MORAES, 2010, p. 37)

O princípio da igualdade é conhecido pela máxima “tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade”. Assim, afirma Pedro Lenza:

O art. 5º, caput, consagra que todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza. Deve-se, contudo, buscar não somente essa aparente igualdade formal (consagrada no liberalismo clássico), mas, principalmente, a igualdade material, na medida em que a lei deverá tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de suas desigualdades. Isso porque, no Estado social ativo, efetivador dos direitos humanos, imagina-se uma igualdade mais real perante os bens da vida, diversa daquela apenas formalizada perante a lei. (LENZA, 2010, p. 679)

Essa desigualdade é necessária e pretende assegurar às pessoas de situações iguais os mesmos direitos, prerrogativas e vantagens, bem como obrigações correspondentes, visto que não é possível ignorar as diferenças existentes. Dessa forma, para Lima (2015, s/p) “o tratamento desigual não tem como finalidade descriminar negativamente, e sim reduzir essas desproporcionalidades na sociedade”.

No entanto, nem sempre foi assim. A evolução histórica deste princípio retrata três importantes fases. Segundo Lemos (2004, p. 1), nos primórdios a desigualdade predominava. Com o passar do tempo, todos passaram a ser considerados iguais perante a lei, sendo assim, esta deveria ser aplicada indistintamente aos membros de uma mesma camada social. Finalmente, na atual fase do princípio, a verdadeira igualdade consiste em tratar igualmente os iguais e desigualmente os desiguais, na medida de sua desigualdade.

O princípio tem uma tríplice finalidade, qual seja: limitar o legislador, o intérprete e o particular. Quanto a limitação do legislador, Moraes (2010, p. 37) alude que “[...] no exercício de sua função constitucional de edição normativa, não poderá afastar-se do princípio da igualdade, sob pena de flagrante inconstitucionalidade”. Ou seja, uma norma que não visa assegurar o direito fundamental da igualdade, é naturalmente incompatível com o modelo constitucional adotado no Brasil.

Quanto à limitação do intérprete, Moraes (2010, p. 37) aduz que este “[...] não poderá aplicar as leis e atos normativos aos casos concretos de forma a criar ou aumentar desigualdades arbitrárias”. Dessa forma, essencial que os Tribunais brasileiros uniformizem suas decisões, de modo que um caso não seja julgado de uma forma diferente de um outro caso semelhante, buscando extinguir as desigualdades jurisprudenciais.

Por último, quanto a limitação do particular, Moraes (2010, p. 38) entende que “[...] não poderá pautar-se por condutas discriminatórias, preconceituosas ou racistas, sob pena de responsabilidade civil e penal, nos termos da legislação em vigor”. É de conhecimento geral que esse tipo de conduta é crime e gera pagamento de multa ou detenção no âmbito penal, bem como, no âmbito civil, pode ocasionar processo por dano moral.

Outrossim, o princípio da igualdade abarca três aspectos: a igualdade do direito; a uniformidade de tratamento e a proibição da discriminação.

Segundo Ferreira Filho (2015, p. 206), a igualdade do direito exprime que a lei deve ser a mesma para todos, ou seja, um só corpo de normas deve existir e ser aplicado a todos os homens. Quanto à uniformidade de tratamento, o autor enfatiza o direito norte-americano, que na 14ª Emenda à Constituição dos Estados Unidos, assegura a todos a “igual proteção das leis” (“equal protection of the laws”), bem como o “devido processo legal” (due process of law”). Finalmente, em relação a proibição da discriminação, relata Ferreira Filho (2015, p. 207) que “esta consiste na vedação de diferença de tratamento que resulte em situação jurídica pior, mais restritiva ou onerosa, em razão de características pessoais”.

Ademais, uma das formas de igualdade, a igualdade entre os filhos, é prevista no artigo 227, §6° da Constituição Federal (BRASIL, 1988, p. 65), in verbis: “Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação”.

A respeito da adoção, Gonçalves (2017, p. 374) afirma que “́é o ato jurídico solene pelo qual alguém recebe em sua família, na qualidade de filho, pessoa a ela estranha”. Para Maria Helena Diniz:

Adoção é o ato jurídico solene pelo qual, observados os requisitos legais, alguém estabelece, independentemente de qualquer relação de parentesco consanguíneo ou afim, um vínculo fictício de filiação, trazendo para sua família, na condição de filho, pessoa que, geralmente, lhe é estranha. (DINIZ apud GONÇALVES, 2017, p. 374)

A partir do artigo mencionado anteriormente, a antiga ideia de diferenciação, tanto entre filho natural e filho adotivo, quanto entre as demais possibilidades de filiação, foi totalmente vedada, prevalecendo a igualdade entre todos as filiações. Nesse pensamento, José Afonso Silva expõe:

O art. 227, §6°, contém importante norma relativa ao direito de filiação, reconhecendo igualdade de direitos e qualificações aos filhos, havidos ou não da relação de casamento, ou por adoção, proibidas quaisquer designações discriminatórias a ela relativas. Ficam, assim, banidas da legislação civil expressões como filhos legítimos, filhos naturais, filhos adulterinos, filhos incestuosos. (SILVA, 2005 p. 849) (grifo nosso)

Na mesma linha, Castelo (2011, p. 42) expõe que, em razão do princípio da igualdade jurídica entre os filhos, todas as filiações possuem os mesmos direitos, não importando se o filho é biológico ou não biológico, se é matrimonial ou extramatrimonial ou se é reconhecido ou adotado.

Ante o exposto, levando em consideração a igualdade entre os filhos, não é possível diferenciá-los, da mesma forma, nas situações de homicídio funcional. Isso porque seria inconstitucional o fato de o crime praticado contra filho natural ser considerado homicídio qualificado e o crime praticado contra filho adotivo ser considerado homicídio comum.

Sobre os autores
Igor de Andrade Barbosa

Mestre em Direito Econômico e Desenvolvimento pelo Programa de Mestrado em Direito da Universidade Candido Mendes - UCAM. Especialista em Direito nas Relações de Consumo - UCAM. Especialista em Direito da Concorrência e Propriedade Industrial- UCAM. Diretor e Membro do Conselho Editorial da Revista Tribuna da Advocacia da Escola Superior de Advocacia da Ordem dos Advogados do Brasil do Tocantins. Professor e orientador da graduação (bacharelado) do curso de Direito da Universidade Candido Mendes - Ipanema (licenciado). Professor da graduação e da pós-graduação do curso de Direito da Faculdade Católica do Tocantins UBEC.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

BARBOSA, Igor Andrade; PEIXOTO, Ana Raquel Mattos Sabóia. A situação jurídica do filho adotivo no homicídio funcional:: um estudo da divergência entre o princípio da legalidade e o princípio da igualdade. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6176, 29 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/73573. Acesso em: 21 nov. 2024.

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