4. A APLICABILIDADE DO REMÉDIO HEROICO ANALISANDO O MÉRITO ADMINISTRATIVO.
O Brasil por meio do Decreto 678 de 06 de novembro de 1992 promulgou a Convenção Americana de Direitos Humanos, conhecida como Pacto de São José da Costa Rica, realizada 22 de novembro de 1969.
Este Tratado Internacional, prevê no seu art. 7º o direito a liberdade pessoal, estabelecendo no item 6 que “toda pessoa privada da liberdade tem direito a recorrer a um juiz ou tribunal competente, a fim de que este decida, sem demora, sobre a legalidade de sua prisão ou detenção...”.
Ocorre que, o art. 1º do mesmo Tratado Internacional, afirma de forma evidente, inequívoca e sem ressalvas que os Estados, partes da Convenção devem se comprometer a respeitar os direitos e liberdades previstos no seu bojo, sem discriminação alguma por motivo de raça, cor, sexo, idioma, religião, opiniões políticas ou de qualquer outra natureza, origem nacional ou social, posição econômica, nascimento ou qualquer outra condição social.
Como vimos, durante este estudo, a Carta Magna, no seu rol de direitos e garantias fundamentais, adotou o Habeas Corpus como a ação constitucional penal, capaz de livrar todo e qualquer cidadão de lesão ou ameaça a sua liberdade de locomoção por ilegalidade ou abuso de poder.
Garantiu ainda, a Lei Maior, que todos são iguais perante a lei e deixou explícito o princípio da inafastabilidade do Poder Judiciário, afirmando com clareza solar que esse não pode se abster de apreciar toda e qualquer matéria que lese ou ameace direito, tudo no intuito de atender ao mandamento do Pacto São José da Costa Rica.
Contudo, no seu art. 142, §2º, a CFRB/88 discrimina a impetração do Habeas Corpus nos casos de punições disciplinares militares, em que pese possa cercear a liberdade de locomoção do servidor militar por até 30 dias, preso em uma cela.
Os regulamentos disciplinares castrenses elencam as condutas tipificadas como transgressão ou contravenção e cominam penas que devem ser aplicadas pelo Comandante de OM, segundo critérios discricionários - essência do conceito de mérito administrativo - seguindo as balizas da proporcionalidade e razoabilidade, porém é empregada de forma abusiva e carnífice, apesar dos julgamentos administrativos militares deverem ser pautados pelo respeito ao princípio da imparcialidade, com a efetiva aplicação da justiça (ROSA, 2007).
Estes atos discricionários, exercidos sob o manto de proteção do mérito administrativo, são considerados pelo Ilustríssimo Celso Antônio Bandeira de Mello, como “os que a Administração pratica com certa margem de liberdade de avaliação ou decisão segundo critérios de conveniência e oportunidade formulados por ela mesma, ainda que adstrita à lei reguladora da expedição deles”.
Usando como exemplo o Exército Brasileiro, temos que atualmente o seu maior efetivo são militares temporários, aqueles que podem ficar até oito anos na ativa e que renovam o seu vínculo a cada ano, sob a análise da oportunidade e conveniência do seu Comandante. Estes militares estão sujeitos ao Comando inquisidor, que exerce o seu poder de perseguição diuturnamente, pois como vimos ao longo deste estudo, o mesmo militar que verifica uma conduta transgressora, pode notificar o infrator e posteriormente julgá-lo, aplicando uma punição segundo os seus critérios discricionários, que vão desde uma advertência, detenção e até prisão de no máximo 30 dias.
Acontece que os regulamentos disciplinares das Forças Armadas e Auxiliares estão obsoletos (CANO; DUARTE, 2009, p. 133-134), eis que violam direitos fundamentais, dando margem à arbitrariedade e ao poder de perseguição. Prova-se essa alegação, quando analisamos o parágrafo único do art. 7º, do Regulamento Disciplinar da Marinha, onde se encontra a previsão de que se considera transgressora a conduta que o Comandante reputa ser, mesmo que não esteja prevista no regulamento. Ou seja, o que é transgressão e o quantum da punição se dá ao bel prazer da autoridade militar.
Já ocorreu no 19º Batalhão de Caçadores, Organização Militar do Exército Brasileiro, situado na cidade do Salvador/BA, situações nas quais militares foram presos por estarem com meia suja, chegar alguns minutos atrasado para o expediente, descumprir ordem humanamente impossível do seu superior hierárquico, estar de posse de um aparelho de vídeo game nas instalações onde cumpria serviços e até mesmo perseguição no sentido de aplicar três prisões por motivos fúteis com o objetivo de licenciar o militar a bem da disciplina, devido ao fato de passar para o comportamento mau (art. 51, § 1º, V, a, do RDE), assim, utilizando-se de maneira equivocada e desproporcional o regulamento (art. 32 do RDE).
Mas, estamos avançando no sentido de uma corrente liberalista (VASCONCELOS, In: GERALDI, ROTH, p 28), que visa combater essas arbitrariedades, entendendo ser cabível o instituto do Habeas Corpus examinando o mérito administrativo, ou seja, analisando o juízo de conveniência e oportunidade que geralmente é convertido em arbitrariedade e perseguição na aplicação de punições desproporcionais e irrazoáveis.
Prova disso é que, em 05 de outubro de 2016, um Policial Militar do Rio Grande do Norte, foi ameaçado de ser preso, após expressar a sua opinião em uma rede social, criticando o modelo de polícia. Houve sindicância para apurar os fatos (motivo do ato), ou seja, respeitando ao devido processo legal e, ao final, o Comandante entendeu que ele cometeu uma infração disciplinar decidindo por prender o policial.
Ocorre que, o advogado do servidor castrense impetrou Habeas Corpus preventivo, alegando que “não cabe à PM regular a liberdade de expressão de quem quer que seja” e que “a autoridade que acusou foi à mesma que julgou, isso fere a nossa constituição”, assim, sendo sábio e coerente o juízo de primeiro grau concedeu a ordem e livrou o policial da ameaça de prisão por ter exercido um direito fundamental à liberdade de expressão.
É sabido que não há hierarquização entre normas constitucionais (MENDES, 2016, p. 114), contudo, no caso em comento, pela boa técnica hermenêutica, utilizando do princípio da concordância prática ou da harmonização (LENZA, 2017, p 160), os dispositivos elencados no art. 5º (cláusula pétrea), dentre eles os princípios de igualdade, inafastabilidade do poder judiciário e, principalmente, o direito à liberdade de locomoção, têm maior importância no ordenamento jurídico, mesmo considerando-se a peculiar condição de trabalho dos militares em comparação ao servidor civil.
Em que pese o respeitável posicionamento majoritário de que, ao analisar um pedido de Habeas Corpus contra punição disciplinar, o Judiciário deve analisar somente a legalidade do ato, compreende-se após esse estudo que entre preservar uma Instituição permanente, que tem o direito de regresso contra seu real infrator e resguardar a liberdade de forma emergencial de um ser humano que está coberto por uma farda, deve-se sobrepor, com certeza, à apreciação tanto do devido processo legal, como do mérito da punição disciplinar, pois só assim puxaríamos o freio de mão da discricionariedade e removeríamos a camuflagem da arbitrariedade de Comandantes que perseguem os subordinados, ameaçando-os, quanto ao seu engajamento anual (no caso dos militares temporários), ou mesmo a sua liberdade.
Portanto, os militares quando cometerem conduta tipificada como transgressão deve ser julgados e punidos sim, porém por meio de um processo justo, onde lhe sejam assegurados não somente o devido processo legal, mas também a devida proporcionalidade, razoabilidade, imparcialidade, princípio do estado de inocência, garantindo direitos fundamentais e isto só é possível algumas vezes com a intervenção do Poder Judiciário de maneira urgente, avaliando o mérito da punição disciplinar, protegendo a liberdade de locomoção daquele ser humano que está sendo injustiçado atrás da farda, restringindo a arbitrariedade das autoridades militares e fortalecendo o Estado Democrático de Direito (ROSA, 2007).
CONCLUSÃO
Diante de toda conjuntura apresentada, podemos concluir que a transgressão disciplinar militar possui natureza jurídica administrativa, sendo aplicadas sanções pelos Comandantes com o objetivo de punir com caráter educativo o servidor militar que comete infração prevista nos regulamentos disciplinares, segundo seus critérios discricionários, sustentando assim os pilares da instituição, quais sejam, a hierarquia e disciplina.
O Habeas Corpus é a ação penal constitucional cabível para proteger o indivíduo que se encontra lesado ou ameaçado de sofrer violência ou coação em sua liberdade de locomoção, contudo, a própria Constituição estabelece tratamento diferenciado para os militares, excluindo a hipótese de cabimento do remédio para as punições disciplinares, tendo em vista a independência dos poderes e característica da profissão, que exige regras mais severas e respostas imediatas.
Ocorre que, a doutrina e jurisprudência atual entende que essa impossibilidade não é absoluta, eis que o exame da legalidade do ato administrativo, principalmente no tocante ao direito fundamental ao devido processo legal, deve sim ser analisado pelo judiciário, não cabendo à análise do mérito administrativo.
Entretanto, adotando a corrente liberalista, entende-se que apesar de não haver hierarquia entre as normas constitucionais, é cabível a impetração do remédio até mesmo examinando o mérito administrativo, a partir de uma análise hermenêutica, pondo os direitos fundamentais elencados no rol de cláusula pétrea da Constituição em lugar de maior relevância.
Os Comandantes, já que devem aplicar a punição por critérios discricionários, utilizando regulamentos que trazem um rol exemplificativo de condutas puníveis, ficam livres para cometer arbitrariedades e, assim, perseguir e penalizar os seus subordinados, sem respeitar a proporcionalidade, razoabilidade, impessoalidade e seus direitos fundamentais, pois existem hipóteses nas quais eles podem acusar, apurar e julgar os transgressores.
Portanto, para se evitar as arbitrariedades cometidas pelos Comandantes diuturnamente, é preciso uma intervenção do Poder Judiciário, urgentemente, através do Habeas Corpus, analisando não somente a legalidade, mas sim o mérito do ato administrativo, eis que o segundo bem jurídico mais relevante (liberdade), não pode ser violado de maneira infundada por ninguém, em especial, as autoridades militares.
REFERÊNCIAS
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CUNHA JR., Dirley, Curso de Direito Constitucional, Ed 7. Editora JusPodivm, 2013.
LENZA, Pedro. Direito Constitucional Esquematizado. 17ª Edição, Ed. Saraiva, 2017.
MENDES, Gilmar Ferreira. COELHO, Inocêncio Mártires. BRANCO, Paulo Gustavo Gonet. Curso de Direito Constitucional, 3ª Edição, Ed. Saraiva.
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VIEIRA, Diógenes Gomes, Manual Prático do Militar; Forças Armadas e Polícias Militares; Ed 2, Natal, 2014.
VASCONCELOS, Clever Rodolfo Carvalho, A prisão dos militares (criminal e disciplinar) diante da Constituição Federal In: GERALDI, Orlando Eduardo, ROTH Ronaldo João, Coletânea de Estudos de Direito Militar Doutrina e Jurisprudência, São Paulo, Imprensa Oficial do Estado de São Paulo, 2012.
Notas
[1] STF - RE: 338840 RS, Relator: ELLEN GRACIE, Data de Julgamento: 19/08/2003, Segunda Turma; STF; RHC 88543 / SP - SÃO PAULO; Rel. Min. RICARDO LEWANDOWSKI; Julgamento: 03/04/2007; Primeira Turma; STF - ARE: 791401 SP, Relator: Min. ROBERTO BARROSO, Data de Julgamento: 31/10/2014; STJ - RHC: 26740 SP 2009/0156621-9, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Publicação: DJ 03/08/2015. BARROSO, Data de Julgamento: 31/10/2014; STJ - RHC: 26740 SP 2009/0156621-9, Relator: Ministro NEFI CORDEIRO, Data de Publicação: DJ 03/08/2015.