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A MP 966:

isenção da responsabilidade de agentes públicos durante a pandemia

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Agenda 19/05/2020 às 19:15

VII – O PROBLEMA DA IMPROBIDADE ADMINISTRATIVA

Outra situação envolve a improbidade administrativa.

Constitui ato de improbidade administrativa que causa lesão ao erário qualquer ação ou omissão, dolosa ou culposa, que enseje perda patrimonial, desvio, apropriação, malbaratamento ou dilapidação dos bens ou haveres das entidades referidas no art. 1º desta lei, e notadamente:

Realmente, como falar em grave desvio ético sem que o agente ao qual se imputa ofensa à ordem jurídica tenha se conduzido sem propósito viciado, eivado de má-fé, sem consciência da antijuridicidade do resultado, a que tenha dado causa? Ora, só há grave desvio ético de conduta quando alguém atua, revelando móvel viciado, má intenção, desígnio moralmente reprovável. Esse é o ímprobo.

Juarez Freitas (Princípio Jurídico da Moralidade e a Lei de Improbidade Administrativa), na mesma linha de Gilmar Ferreira Mendes e Arnoldo Wald (Mandado de segurança e ações constitucionais), entende que a improbidade pode ser punida a título de dolo ou de culpa grave, restando impossível apenas a configuração dessa infração ético-funcional nas condutas pautadas por culpa leve e levíssima.

Aliás, é Juarez Freitas, que ao defender a posição intermediária (improbidade administrativa caracterizada por dolo ou culpa grave), acaba por cair em insanável contradição, visto que ele expressamente arrola a “inequívoca intenção desonesta” como sendo o precípuo requisito à configuração da improbidade. Entenda-se que é cediço que o dolo é composto por representação e vontade (ou intenção), de modo que, sendo a grave intenção desonesta um requisito inarredável da improbidade, deve-se afastar, pelos fundamentos expostos pelo doutrinador, a possibilidade de improbidade culposa. Assim onde se verifica a inequívoca intenção desonesta há, de forma nítida, dolo, e não simples culpa na conduta funcional.

Na linha de Edilson Pereira Nobre Júnior (Improbidade Administrativa: alguns aspectos controvertidos), dir-se-á que a presença do dolo é um dos principais elementos configuradores do ato improbus. Repita-se que o conceito de improbidade está, de forma inexorável, atrelado à ideia de imoralidade administrativa qualificada, que pressupõe a presença do ânimo desonestidade.

Se tudo isso não bastasse, há possível confronto na conduta noticiada com relação ao artigo 11 da Lei de Improbidade, que exige respeito aos princípios constitucionais da Administração protegidos no artigo 37 da Constituição, dentre os quais os da moralidade, impessoalidade, legalidade.

Aqui então poder-se-á falar em erro grosseiro, diante de culpa grave.


VIII – A INCONSTITUCIONALIDADE DA MEDIDA

No entanto, a matéria deve ser avaliada no Congresso Nacional por projeto de lei, com ampla discussão das duas casas legislativas, e não por Medida Provisória, onde se reservam os requisitos da relevância e, principalmente, da urgência.

Ademais, são feridos os princípios republicano (democrático por excelência) e da igualdade ao legislar sob matéria tão séria envolvendo agentes políticos e públicos e que os livra da responsabilidade, em casos pontuais, de forma diversa de outros casos, isso porque estabelece um elemento arbitrário para o julgamento.

Assim está ferido o princípio da igualdade.

Ela estabelece um instrumento arbitrário para solução do problema.

Celso Antônio Bandeira de Mello observa que qualquer elemento residente nas coisas, pessoas ou alterações pode ser escolhido pela lei como fator discriminatório, donde se segue que, de regra, não é o traço de diferenciação escolhido que se deve buscar algum desacato ao princípio isonômico. Todavia as discriminações legislativas são compatíveis com a cláusula igualitária apenas tão-somente quando existe um vínculo de correlação lógica entre a peculiaridade diferencial acolhida, por residente no objeto e a desigualdade de tratamento em função dela conferida. Não basta, porém, a existência desta correlação: é ainda necessário que ela não seja incompatível com interesses prestigiados na Constituição (O conteúdo jurídico do princípio da igualdade, São Paulo, 1978, pág. 24).

O vínculo de correlação lógica entre o fator de discriminação e a desigualdade de regime jurídico, a que alude Celso Antônio Bandeira de Mello, nada mais é do que "a proibição do arbítrio" de que falou a doutrina alemã ou a exigência da razoabilidade que tem sido utilizada pela Corte Constitucional da Itália, como cânone interpretativo para o exame da constitucionalidade das leis.

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Assim deve-se acautelar com relação às chamadas desequiparações fortuitas, injustificadas, desrazoáveis. E essa ocorre sempre que não exista uma pertinência e uma coerência lógica do fator de discrímen com a diferenciação procedida.

Concluiu Celso Antônio Bandeira de Mello (obra citada): "é agredida a igualdade quando o fator diferencial adotado para qualificar os atingidos pela regra não guarda relação de pertinência lógica com a inclusão ou exclusão no benefício deferido ou com a inserção ou arredamento do gravame imposto".

Fala-se em igualdade perante a lei e igualdade na lei.

Aquela corresponde à obrigação de aplicar as normas jurídicas gerais aos casos concretos, na conformidade com o que eles estabelecem, mesmo se delas resultar uma discriminação, o que caracteriza uma igualdade puramente formal, enquanto a igualdade na lei exige que nas normas jurídicas não haja distinções que não sejam autorizadas pela própria Constituição. A igualdade perante a lei seria uma exigência feita a todos aqueles que aplicam as normas jurídicas gerais aos casos concretos, ao passo que a igualdade na lei seria uma exigência dirigida tanto àqueles que criam as normas jurídicas gerais como àqueles que as aplicam aos casos concretos, como ensinou Hermann Pertzold (Le principe de l'egalité devant la loi dans le droit de certain état d'Amerique Latin).

Para Seabra Fagundes, o princípio da igualdade significa para o legislador que "ao elaborar a lei, deve reger, com iguais disposições, os mesmos ônus e as mesmas vantagens, situações idênticas, e, reciprocamente, distinguir, na repartição de encargos e benefícios, as situações que sejam entre si distintas, de sorte a aquinhoá-las ou gravá-las em proporção às suas diversidades"(O princípio constitucional da igualdade perante a lei e o Poder Legislativo, RT 235/3).

Francisco Campos (Igualdade perante a lei, incorporado em seu Direito Constitucional) sustentou que o legislador é o destinatário principal do princípio, pois se ele pudesse criar normas distintas das pessoas, coisas ou fatos, que devessem ser tratados com igualdade, o mandamento constitucional se tornaria inteiramente inútil. Por sua vez, o executor da lei já está necessariamente obrigado a aplicá-la de acordo com os critérios constantes na própria lei.

O caso não merece assim urgência, a não ser para retirar do agente político envolvido qualquer responsabilidade diante de fatos que seriam imputados, de logo, impondo ao intérprete o conceito de erro grosseiro. Chega a trazer hipóteses, a seu arbítrio contrariando a razoabilidade empírica e a racionalidade.

Nem tudo que é estritamente racional é razoável, mas para algo ser razoável deve, antes, ser estritamente racional, como informou Atienza (Para una razonable definición de razonable, in. Doxa - Cuadernos de Filosofía del Derecho, Vol. 4. Alicante. p. 189-200., 1987, p. 193). Enquanto a noção de razoabilidade aponta a um resultado – em linhas gerais, o aceitável socialmente –, a de racionalidade em sentido estrito se refere a um procedimento (Ibidem). O estritamente racional, no discurso jurídico, se mede pelo seguinte: 1) respeita as regras da lógica; 2) respeita os princípios da racionalidade prática (princípios de consistência, coerência, eficiência, generalização, sinceridade etc); 3) é adotada sem se deixar de utilizar alguma fonte do direito de caráter vinculante; e 4) não se adota sobre a base de critérios éticos, políticos etc, não previstos especificamente no ordenamento jurídico. A razoabilidade, por sua vez, exige um algo mais. É sobre esse algo mais que a controvérsia ainda permanece na dogmática jurídica contemporânea.

Fere-se a razoabilidade como equidade, pela congruência, pela equivalência.

A razoabilidade é vista na seguinte tipologia:

a) Razoabilidade como equidade: exige-se a harmonização da norma geral com o caso individual;

b) Razoabilidade como congruência: exige-se a harmonização das normas com suas condições externas de aplicação;

c) Razoabilidade por equivalência: exige-se uma relação de equivalência entre a medida adotada e o critério que a dimensiona.

Não se pode eleger uma causa inexistente ou insuficiente para a atuação estatal. Os princípios constitucionais do Estado de Direito (artigo 1º) e do devido processo legal (artigo 5º, LIV), da Constituição exigem o confronto com parâmetros externos a elas.

Não se pode conviver com discriminações arbitrárias.

Há de se considerar uma razoabilidade interna, que se referencia com a existência de uma relação racional e proporcional entre motivos, meios e fins da medida e ainda uma razoabilidade externa, que trata da adequação de meios e fins. No caso em tela há absoluta dissonância entre os motivos, meios e fins da medida, de forma a aduzi-la como fora do razoável.

Proíbe-se o excesso.

Que seriam os obstáculos e as dificuldades reais do agente público; a complexidade da matéria e das atribuições exercidas pelo agente público; a circunstância de incompletude de informações na situação de urgência ou emergência? São conceitos, deveras, vagos, incompletos, vazios, que, por si, não retiram a responsabilidade do agente.

Afronta-se a certeza jurídica.

A certeza jurídica, para Aarnio (Lo racional como lo razonable ,trad. Ernesto Garzón Valdès). Madrid: Centro de Estudios Constitucionales 1983, p.393) é um dos fins que a argumentação jurídica busca alcançar, abarcando dois elementos: 1) a exigência de que a arbitrariedade seja evitada (que se liga à previsibilidade dos comportamentos exigidos dos sujeitos de direito em geral, que é alcançada se a decisão se mantém no quadro do ordenamento jurídico vigente); e 2) a exigência de que a decisão seja apropriada. De acordo com esse segundo elemento, “o resultado da decisão deve ser correto no aspecto material”, ou seja, a decisão deve estar fundamentada não apenas em normas jurídicas válidas, mas também deve cumprir certos critérios de natureza moral, sendo que sem essa adaptabilidade da prática jurídica à moralidade crítica não se poderia falar em “decisões razoáveis”.

A medida contraria a Constituição Federal em seu artigo 37, § 6º, por contrariar o texto constitucional, os princípios republicano, da igualdade, sem falar na falta de urgência da medida e na sua irrazoabilidade e irracionalidade.

Sobre o autor
Rogério Tadeu Romano

Procurador Regional da República aposentado. Professor de Processo Penal e Direito Penal. Advogado.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

ROMANO, Rogério Tadeu. A MP 966:: isenção da responsabilidade de agentes públicos durante a pandemia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 25, n. 6166, 19 mai. 2020. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/82177. Acesso em: 22 nov. 2024.

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