I - ADI 5881, ADI 5886, ADI 5931
Por decisão majoritária, o Supremo Tribunal Federal (STF) vedou a possibilidade de a Fazenda Nacional tornar indisponíveis, administrativamente, bens dos contribuintes devedores para garantir o pagamento dos débitos fiscais a serem executados. No entanto, também por maioria dos votos, admitiu a averbação da certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto e penhora.
A decisão foi tomada na tarde do dia 9 de dezembro do corrente ano, durante o julgamento conjunto de seis ações diretas de inconstitucionalidade. As ações foram ajuizadas pelo Partido Socialista Brasileiro (ADI 5881), pela Associação Brasileira de Atacadistas e Distribuidores de Produtos Industrializados (ADI 5886), pela Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil (ADI 5890), pelo Conselho Federal da Ordem dos Advogados do Brasil (ADI 5925), pela Confederação Nacional da Indústria (ADI 5931) e pela Confederação Nacional do Transporte (ADI 5932).
Por outro lado, há o inciso II do parágrafo 3º do artigo 25-B da Lei 10.522/2002, que possibilita à Fazenda averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis, os ministros declararam unicamente a inconstitucionalidade da expressão “tornando-os indisponíveis”.
Para a hipótese, os dispositivos em análise violam o devido processo legal e a proporcionalidade, "dada a maneira desmedida pela qual o direito de propriedade e o livre exercício da atividade profissional e empresarial são atingidos". Trata-se de uma forma indireta de cobrança do crédito tributário. Cuida-se de mecanismo coercitivo empregado pela Fazenda Pública para induzir o devedor ao cumprimento da obrigação tributária, sem a necessidade de que se promova a execução fiscal. Existe forma própria, instituída por lei, para que a Fazenda Pública assegure a quitação da dívida. Segundo ele, o processo de execução fiscal é juridicamente adequado.
O relator, Marco Aurélio votou para determinar a inconstitucionalidade dos dispositivos. Para ele, a lei promoveu um desvirtuamento do sistema de cobrança da dívida ativa da União e está "em desarmonia com as balizas constitucionais no sentido de obstar ao máximo o exercício da autotutela pelo Estado".
"O sistema não fecha, revelando-se o desrespeito aos princípios da segurança jurídica, da igualdade de chances e da efetividade da prestação jurisdicional, os quais devem ser observados por determinação constitucional, em contraposição à ideia da 'primazia do crédito público'", afirmou o relator. Seu voto foi seguido por Nunes Marques e Luiz Edson Fachin.
Luís Roberto Barroso inaugurou a linha de entendimento de que a averbação é legítima e prevista em lei, mas a indisponibilidade não pode ser automática e exige reserva de jurisdição. "A intervenção drástica sobre o direito de propriedade exige a atuação do poder Judiciário."
Com isso foi dado um caminho médio ao julgamento.
Votaram da mesma forma os ministros Gilmar Mendes, Ricardo Lewandowski e Luiz Fux. Gilmar também validou a averbação e apontou que a indisponibilidade de bens poderá ser eventualmente alcançável, mas precisa contar com a atuação do Judiciário. Ele votou pela inconstitucionalidade somente do trecho "tornando-os indisponíveis" da lei.
II – A NECESSÁRIA RESERVA DE JURISDIÇÃO
Discute-se sobre a reserva de jurisdição.
Quando a Constituição Federal, no artigo 5º, estabelece que “não haverá juízo ou Tribunal de exceção”(inciso nº XXXVII) e que “ninguém será processado nem sentenciado senão pela autoridade competente” (inciso LIII), adotou o princípio do juiz e do procurador natural, denominado pelos alemães de princípio do juiz legal (gesetzlicher Richter), terminologia absorvida pelos portugueses.
Por sua vez, o princípio do juiz natural se aplica indistintamente ao processo civil, ao penal e ao administrativo. Diz o texto constitucional que “ninguém será processado, nem sentenciado senão pela autoridade competente”(artigo 5º, nº LIII, CF) não distingue o tipo de processo que é abrangido pela garantia.
Costuma-se salientar que o princípio do juiz natural se traduz no seguinte conteúdo: a) a exigência da determinabilidade, consistente na prévia individualização dos juízes por meio de leis gerais, isto é, a preconstituição do direito italiano (artigo 25 da Constituição italiana); b) a garantia de justiça material (independência e imparcialidade dos juízes); c) fixação da competência, vale dizer, o estabelecimento de critérios objetivos para a determinação da competência dos juízes; d) observância das determinações de procedimentos referentes à divisão funcional interna, tal como ocorre no direito alemão.
A medida cautelar administrativa de indisponibilidade é uma afronta ao princípio da proporcionalidade.
Em verdade, o dispositivo considerado inconstitucional permite uma verdadeira justiça administrativa, algo que não se reconhece no sistema jurídico pátrio.
O artigo 20-B determina a notificação do devedor para que, em até cinco dias, efetue o pagamento do valor inscrito em dívida ativa, e, caso não pago o débito nesse prazo, a Fazenda Pública poderá “averbar, inclusive por meio eletrônico, a certidão de dívida ativa nos órgãos de registro de bens e direitos sujeitos a arresto ou penhora, tornando-os indisponíveis” (artigo 20-B, parágrafo 3º, inserido na Lei 10.522/02 pelo artigo 25 da Lei 13.606/18).
Ora, todas as medidas de constrição da propriedade veiculadas pelo CPC tem o Poder Judiciário como ator principal.
Essa indisponibilidade administrativa de bens pela Fazenda é uma verdadeira barreira ao acesso ao Poder Judiciário.
Segundo o artigo 5º, nº XXXV, “a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito”.
Não pode o legislador e ninguém mais impedir que o jurisdicionado vá a juízo deduzir pretensão.
No processo há a exigência do preenchimento de pressupostos processuais e de condições de ação para o andamento do pleito em juízo. Essas barreiras, entretanto, não se afiguram impeditivas da aplicação do princípio constitucional do direito de ação, pois, configuram limitações naturais do exercício do direito de ação, como já ensinara Celso Ribeiro Bastos (Comentários à Constituição do Brasil, 2º volume, 1989, pág. 173).
No passado, o artigo 153, ª 4º, segunda parte, da Emenda Constitucional nº 1/69, com a redação dada pela Emenda Constitucional nº 7, de 13 de abril de 1977 (o chamado pacote de abril) autorizava a lei infraconstitucional a exigir o prévio esgotamento da via administrativa para que pudesse ingressar com ação em juízo, funcionado como uma verdadeira condição de procedibilidade da ação civil que, se não atendida, ensejaria a extinção do processo sem conhecimento do mérito por falta de interesse processual.
No sistema constitucional de 1988 não há tal jurisdição condicionada ou ainda instância administrativa de curso forçado.
A exceção diz respeito ao artigo 217, § 1º, da CF quanto as competições esportivas.
O STF já deliberou em caso semelhante, na ADI 1.074/DF, declarando inconstitucional a exigência de depósito prévio no percentual de 30% do valor da dívida como condição para interposição de recurso judicial. O acórdão, da lavra do ministro Eros Grau, foi direto ao ponto, ao afirmar na ementa que tal restrição “consubstancia barreira ao acesso ao Poder Judiciário”. A situação é semelhante, pois cria uma espécie de execução fiscal administrativa, que se iniciará com a constrição dos bens, para posterior análise judicial — se isso ocorrer. Tal norma cria forte restrição à garantia de acesso ao Poder Judiciário (artigo 5º, XXXV, CF).
Tal situação sinistra que envolve o procedimento de indisponibilidade de bens na órbita administrativa não ficou só.
Foi editada a Portaria PGFN 27/18, criando um Canal de Denúncias Patrimoniais (CDP), estimulando que sejam feitas denúncias identificadas ou anônimas, por pessoas físicas ou jurídicas, para recebimento de informações úteis para a recuperação de créditos inscritos em dívida ativa da União e do Fundo de Garantia do Tempo de Serviço (FGTS). Ora, portaria não é lei. Mas ela instituiu um procedimento de denúncias particulares contra os devedores em prol da Fazenda. Isso é péssimo em um Estado Democrático.