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Impactos da Lei 13.887/2019, pandemia e outros agravantes sobre o passivo ambiental brasileiro

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1 INTRODUÇÃO

Há muito que a chamada accountability ambiental passou a integrar o ônus dos gestores governamentais e corporativos e a busca da produção sustentável foi incluída na pauta dos produtores rurais de todo o mundo. Isso se deu a partir da consciência da coletividade de que os recursos naturais são, em sua maioria, finitos e não-renováveis.

Nesse cenário, o Brasil ocupa a condição sui generis de ser o país que abriga a maior floresta tropical do mundo e estar entre os 3 maiores produtores/exportadores de alimento do planeta. Porquanto, é plausível que seja obviamente o foco das atenções e das pressões pela tutela das florestas nativas, ativo ambiental de valor imensurável, sobretudo nestes tempos reflexivos de Pandemia da Covid-19.

Ao se deparar com as poucas linhas do texto da Lei 13.887 no D.O.U. de 18/10/2019, o cidadão alheio às questões do direito ambiental e do agronegócio não tem noção da relevância dos temas tratados nem da sua dimensão e seu alcance na tutela do meio ambiente brasileiro e, por conseguinte, do seu impacto sobre a qualidade de vida de praticamente todos os 7,713 bilhões de habitantes da Terra.

Para uma análise dimensional do problema tratado pela Lei, que afeta a gestão e a proteção da vegetação nativa e consequentemente a recuperação do passivo ambiental brasileiro, há que se ter conhecimento da estrutura e mecanismos de gestão ambiental no Brasil, da atual Política Nacional do Meio Ambiente e compreender alguns eventos recentes e fatores que a impactam.

Assim sendo, objetivou-se no presente trabalho, a partir da metodologia da prospecção de textos, apresentar uma abordagem pragmática da Lei 13.887/2019 e seu possível alcance na recuperação do passivo ambiental brasileiro, a fim de subsidiar uma análise dimensional do problema tratado pela Lei e propiciar ilações fundamentadas acerca da questão, com supedâneo no conhecimento dos fatores pertinentes à chamada governança judicial ecológica no Brasil, especialmente neste período de pandemia da Covid-19.

2 A DISCIPLINA LEGAL DO PASSIVO AMBIENTAL NO BRASIL

A Lei 13.887, de 17 de outubro de 2019, foi resultante da conversão da Medida Provisória Nº 884, de 14 de junho de 2019 e altera a Lei nº 12.651/2012, que dispõe sobre a proteção da vegetação nativa brasileira. Essencialmente, esta Lei altera a dinâmica do Cadastro Ambiental Rural (CAR), tornando-o “obrigatório e por prazo indeterminado” e prorroga novamente o prazo para a concessão dos benefícios da adesão ao Programa de Regularização Ambiental (PRA) a proprietários e possuidores dos imóveis rurais que os inscreverem no CAR até o dia 31 de dezembro de 2020.

Conforme aventado, a percepção do alcance e possíveis impactos da lei 13.887/2019 na proteção da vegetação nativa, no processo de recuperação do passivo ambiental e possivelmente no agronegócio do Brasil no período pós-pandemia, sobretudo diante dos desafios impostos pelo cenário da Covid-19, requer conhecimento de alguns detalhes da política ambiental brasileira e seus instrumentos de gestão.

Inicialmente, há que se esclarecer que, no âmbito do presente trabalho, o passivo ambiental brasileiro será tratado no escopo da Lei 12.651/2012 (Brasil, 2012), como sendo o déficit de vegetação nativa decorrente da sua supressão irregular, especialmente nas áreas de Preservação Permanente (APPs) e de Reserva Legal (RL), tanto de domínio público como de domínio privado.

Uma consideração preliminar importante é que a Constituição Federal de 1988 (CF/88) deu à tutela ambiental um patamar jamais visto na história do Brasil, dedicando um Capítulo especialmente ao meio ambiente (Capítulo VI – do meio ambiente) e promovendo o que Sarlet e Fensterseifer (2019) chamam de processo de constitucionalização do direito ambiental no Brasil. Regulamentado por uma série de Leis Complementares, o Art. 225 atribui incumbências ao Poder Público, preconiza o uso sustentável dos recursos naturais e sanções às condutas e atividades consideradas lesivas ao meio ambiente, além de segregar biomas passíveis de proteção especial, dentre outros aparatos. Também instituiu o direito ao meio ambiente sadio no rol dos direitos comuns e inalienáveis. A título de formalização e garantia do meio ambiente como um direito difuso, a CF/88, no caput do art. 225 testifica:

“Todos têm direito ao meio ambiente ecologicamente equilibrado, bem de uso comum do povo e essencial à sadia qualidade de vida, impondo-se ao poder público e à coletividade o dever de defendê-lo e preservá-lo para as presentes e futuras gerações.”

Com o propósito de equalizar os ônus, em nível governamental, a CF/88 prevê em seu Art. 23 que proteger o meio ambiente e combater a poluição em qualquer de suas formas (inciso VI) e preservar as florestas, a fauna e a flora (Inciso VII) é responsabilidade comum da União, Estados, Distrito Federal (DF) e Municípios. Tais normas de cooperação foram fixadas, em caráter supletivo e subsidiário, pela Lei Complementar N°140, de 14 de dezembro de 2011, de forma a “garantir a uniformidade da política ambiental para todo o País, respeitadas as peculiaridades regionais e locais” (Art. 3°, IV).

Atualmente, a política ambiental brasileira é sobejamente normatizada por um arcabouço jurídico minucioso, cuja análise é complexa e de exaustiva apreciação, sobretudo porque além da legislação federal, há ainda as legislações estaduais, municipais e normativas dos órgãos do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama). Assim, considerando-se os objetivos deste trabalho, dar-se-á ênfase à legislação infraconstitucional em vigor diretamente relacionada ao passivo ambiental brasileiro. Dentre estas, além da lei 13.887/2019, merecem destaque a Lei Nº 6.938/1981, a Lei 12.651/2012 (que regulamenta o novo Código Florestal) e alguns Decretos do atual governo, pertinentes ao tema proposto.

2.1 A Lei Nº 6.938, de 31 de agosto de 1981 e a estruturação do Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama)

 Para Sarlet e Fensterseifer (2019), a Lei 6.938/1981 trata-se do diploma normativo que sedimentou a origem do Direito Ambiental brasileiro moderno.

De fato, o caráter estruturante da Lei 6.938/81 sublima sua importância na política ambiental brasileira, porque deu a esta a formatação que conhecemos, estabelecendo seus mecanismos e fins, conforme preconiza seu art. 2º, “a Política Nacional do Meio Ambiente tem por objetivo a preservação, melhoria e recuperação da qualidade ambiental propícia à vida, visando assegurar, no país, condições ao desenvolvimento socioeconômico”..., atendidos princípios como a manutenção do equilíbrio ecológico, a racionalização e fiscalização do uso dos recursos ambientais, a proteção dos ecossistemas, a preservação de áreas representativas, controle de atividades poluidoras, acompanhamento do estado da qualidade ambiental, a recuperação de áreas degradadas e a educação ambiental, dentre outros.

Pelo tratamento dado à governança ambiental, a Lei 6.938/81, regulamentada pelo Decreto no 99.274, de 6 de junho de 1990, foi a primeira a realmente abordar o meio ambiente de forma extensiva e pragmática, considerando o meio ambiente como um patrimônio público a ser protegido. Tal diploma legislativo criou os instrumentos da Política Nacional do Meio Ambiente (PNMA), o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama) como órgão consultivo e deliberativo, estruturando os órgãos de controle e fiscalização ambiental no Brasil no Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), além de uma série de outras providências, como como a responsabilização e sanções por danos ambientais.

Conforme evidencia Stockler (2019), a Lei 6.938/81, além de proibir a poluição e obrigar ao licenciamento e regulamentar a utilização adequada dos recursos ambientais, estipulou e definiu que o poluidor é obrigado a indenizar danos ambientais que causar, independentemente de culpa. Previu também que o Ministério Público pode propor ações de responsabilidade civil pelos danos causados ao meio ambiente, de forma a impor ao poluidor a obrigação de recuperar e/ou indenizar os prejuízos causados.

Apesar de uma série de alterações posteriores por Leis e Decretos, deixou um legado vigente e importante, sobretudo ao instaurar um paradigma ecológico às ações governamentais e estruturar o Sistema Nacional do Meio Ambiente (Sisnama), que até hoje é a estrutura adotada para a gestão ambiental no Brasil.

O Sisnama foi estruturado de forma pluri-institucional e multifinalitária, em conformidade com a disposição dada pelo Decreto no 99.274/1990. Conforme detalhado no sítio do Ministério do Meio ambiente (MMA, 2020), compõem o Sisnama, além do órgão central que é o próprio MMA, o Conselho de Governo, o Conselho Nacional do Meio Ambiente (Conama), o Instituto Nacional do Meio Ambiente e Recursos Renováveis (Ibama), o Instituto Chico Mendes de Conservação da Biodiversidade (ICMBio), órgãos seccionais estaduais e órgãos locais municipais, “responsáveis pela proteção, melhoria e recuperação da qualidade ambiental no Brasil”. De acordo com o MMA, o Departamento de Coordenação do Sisnama tem como atribuições “promover a articulação e a integração intra e intergovernamental de ações direcionadas à implementação de políticas públicas de meio ambiente, e incentivar a descentralização da gestão ambiental e a repartição de competências entre as três esferas de Governo”.

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2.2 O Marco do Novo Código Florestal - Leis Nº 12.651, de 25 de maio de 2012 e 12.727, de 17 de outubro de 2012

 A Lei 12.651/2012 (conhecida como “Novo Código Florestal brasileiro”), com diversos trechos alterados e/ou incluídos pela Lei nº 12.727, de 17 de outubro de 2012 e alguns pontos regulamentados pelo Decreto n° 7.830/2012 é, objetivamente, a lei que regulamenta a forma e a distribuição geoespacial para exploração da vegetação nativa, áreas sob proteção permanente e com aptidão agropecuária no território brasileiro, além de normatizar a recuperação dos  passivos ambientais, conforme se vê em seu Art. 1°-A (incluído pelo Art. 1°-A da Lei 12.727/2012):

“Esta Lei estabelece normas gerais sobre a proteção da vegetação, áreas de Preservação Permanente e as áreas de Reserva Legal; a exploração florestal, o suprimento de matéria-prima florestal, o controle da origem dos produtos florestais e o controle e prevenção dos incêndios florestais, e prevê instrumentos econômicos e financeiros para o alcance de seus objetivos”

Conforme prevê este mesmo artigo, a Lei 12.651/2012 tem “como objetivo o desenvolvimento sustentável”, com fulcro em princípios que contemplam desde o reconhecimento da importância estratégica dos recursos naturais brasileiros, o  compromisso do país (solidariamente a União, estados, DF, municípios e sociedade civil) com a sua preservação e a produção sustentável em coexistência harmônica com o agronegócio, até o fomento à pesquisa científica e tecnológica em prol dos recursos naturais brasileiros e alocação de incentivos financeiros à sua preservação e às atividades produtivas sustentáveis.

Pelo exposto, pode-se depreender a sua dimensão e seu alcance. Conforme esclarece a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa, 2017), sua aplicação se insere no arcabouço jurídico e instrumentos legais que orientam e disciplinam o uso da terra e a conservação dos recursos naturais no Brasil. São exemplos disso, a Lei no 6.938 de 31/08/1981; a Lei no 9.605 de 12/02/1998, regulamentada pelo Decreto no 6.514/2008; as Leis no 9.985 de 18/07/2000 que institui o Sistema Nacional de Unidades de Conservação (SNUC) e a Lei no 11.428 de 22/12/2006, que dispõe sobre a utilização e proteção da vegetação nativa do bioma Mata Atlântica, dentre outras.

No âmbito do presente trabalho, os pontos mais importantes da Lei 12.651/2012 são aqueles que se referem às áreas onde a extirpação irregular da vegetação nativa tipifica “passivo ambiental”, especialmente as áreas de Preservação Permanente (APPs) e de Reserva Legal (RL).

2.2.1 Disciplina das Áreas de Preservação Permanente (APPs)

Segundo previsão contida na Lei 12.651/2012, considera-se como Área de Preservação Permanente (Art. 3°, II):

“Área protegida, coberta ou não por vegetação nativa, com a função ambiental de preservar os recursos hídricos, a paisagem, a estabilidade geológica e a biodiversidade, facilitar o fluxo gênico de fauna e flora, proteger o solo e assegurar o bem-estar das populações humanas. ”

Pela definição, tratam-se de áreas suscetíveis, onde a vegetação natural deve permanecer intacta com o propósito de proteger a fauna, a flora e a biodiversidade como um todo, vedada ao uso alternativo (excetuando-se o disposto no Art. 61-A, incluído pela Lei nº 12.727/2012).

A caracterização e delimitações das APPs são estabelecidas no Capítulo II, Seção I da Lei 12.651/2012 (com inserções da Lei nº 12.727, de 2012), e de forma sumarizada, incluem  as faixas marginais dos cursos d’água urbanos e rurais, as áreas no entorno dos lagos e lagoas naturais (e artificiais resultantes de represamento) rurais e urbanos, as áreas no entorno das nascentes e dos olhos d’água perenes, as encostas ou partes destas com declividade superior a 45º, as restingas, os manguezais, as bordas dos tabuleiros ou chapadas, os topos de morros, montes, montanhas e serras, as áreas em altitude superior a 1.800m e margens de veredas, além de algumas áreas de especial interesse público e o entorno de lagos para geração de energia, nas dimensões fixadas pela Lei.

Tratam-se de áreas cruciais para a sustentabilidade dos ecossistemas, cuja forma de recomposição e a exceção dada pelo Art. 61-A merecem reflexão especial no escopo aqui tratado.

2.2.2 Disciplina das Áreas de Reserva Legal (RL)

Segundo previsão da Lei 12.651/12 (Art. 3°, III) entende-se por Reserva Legal:

“Área localizada no interior de uma propriedade ou posse rural, delimitada nos termos do art. 12, com a função de assegurar o uso econômico de modo sustentável dos recursos naturais do imóvel rural, auxiliar a conservação e a reabilitação dos processos ecológicos e promover a conservação da biodiversidade, bem como o abrigo e a proteção de fauna silvestre e da flora nativa. ”

A delimitação da proporção obrigatória de áreas com cobertura de vegetação nativa, a título de Reserva Legal, a que se refere o Art. 12 (com redação dada pela Lei 12.727/2012), foi fixada em 20% para todos os imóveis rurais do Brasil, exceto para os localizados nas áreas de florestas da Amazônia Legal, onde deve ser de 80% e em áreas de cerrado da Amazônia Legal, onde deve ser de 35%. A RL obrigatória nas áreas de campos gerais da Amazônia Legal também deve ser de 20%.

Dois aspectos muito importantes a se destacar acerca da Reserva Legal são previstos no Art. 17 da Lei 12.651/2012 (com redação dada pela Lei 12.727/2012): a obrigatoriedade da suspensão imediata das atividades em área de RL desmatada irregularmente após 22 de julho de 2008 e o início obrigatório do processo de recomposição da RL em até dois  anos contados a partir da data da publicação da Lei, devendo tal processo ser concluído nos prazos estabelecidos pelo Programa de Regularização Ambiental – PRA.

Cumpre esclarecer que as áreas de Reserva Legal possuem natureza jurídica de limitação administrativa, que são restrições gerais impostas à propriedade privada pelo Poder Público mediante lei tendo em vista a promoção do bem comum, de maneira que em regra o proprietário não terá direito à indenização (FARIAS, 2019).

3 CARACTERIZAÇÃO E REGULARIZAÇÃO DO PASSIVO AMBIENTAL NO ESCOPO DA ATUAL LEGISLAÇÃO

O dimensionamento exato do passivo ambiental brasileiro em tempo real é de extrema dificuldade, dado à dinâmica do processo. O próprio governo federal brasileiro tem dissimulado informações reiteradas vezes, colocando em cheque as informações dos órgãos de monitoramento.

Para Guidotti et al. (2017), os mecanismos de anistia da Lei 12.651/2012 reduziram o passivo de Áreas de Preservação Permanente (APPs) e Reservas Legais (RLs) em 41 milhões de hectares de vegetação nativa que deveriam ser restaurados anteriormente (36,5 milhões de ha de RL e 4,5 milhões de ha de APPs), mas, mesmo com a anistia, o déficit atual de vegetação nativa é de 19 milhões de ha, sendo 11 milhões de ha de RL e 8 milhões de ha de APPs.

Um importante legado da Lei 12.651/2012 foi a concepção de mecanismos para diagnosticar a situação da vegetação nativa e da gestão agroecológica, no âmbito das propriedades rurais, que permite identificar déficits de vegetação nativa e dá opções para a regularização destes passivos. Estes mecanismos se dão através do Cadastro Ambiental Rural (CAR) no Sistema de Cadastro Ambiental Rural (SICAR) que dão acesso ao Programa de Regularização Ambiental (PRA), pontos diretamente afetados pela Lei 13.887/2019.

Conforme definido no Art. 29 da Lei 12.651/2012, o CAR é um registro público eletrônico de âmbito nacional, obrigatório para todos os imóveis rurais, com a finalidade de gerar e integrar as informações ambientais das propriedades e posses rurais, compondo base de dados para controle, monitoramento, planejamento ambiental e econômico e combate ao desmatamento. O CAR foi regulamentado pelo Decreto n° 7.830, de 17 de outubro de 2012, no âmbito do Sistema Nacional de Informação sobre Meio Ambiente – SINIMA.

Destaca-se a obrigatoriedade do georreferenciamento do imóvel, juntamente com outros dados indispensáveis para realização do CAR, conforme prevê o Art. 5º do Decreto 7.830/2012:

O Cadastro Ambiental Rural - CAR deverá contemplar os dados do proprietário, possuidor rural ou responsável direto pelo imóvel rural, a respectiva planta georreferenciada do perímetro do imóvel, das áreas de interesse social e das áreas de utilidade pública, com a informação da localização dos remanescentes de vegetação nativa, das Áreas de Preservação Permanente, das Áreas de Uso Restrito, das áreas consolidadas e da localização das Reservas Legais.”

Os dados exigidos para a adesão ao CAR são registrados num sistema eletrônico previsto no Art. 3° do Decreto n° 7.830/2012: o Sistema de Cadastro Ambiental Rural (SICAR). Este registro no CAR é o primeiro passo para a regularização ambiental no Brasil.

A previsão do Governo brasileiro é de adesão de cerca de 6,5 milhões de imóveis ao CAR. Pelos dados oficiais, até a data de 31 de julho de 2020 haviam sido cadastrados 5.825.070 imóveis no CAR (MAPA/SFB, 2020).

Atualmente, a regularização de passivos ambientais se dá efetivamente a partir da adesão formal ao Programa de Regularização Ambiental (PRA). Este programa é bastante pormenorizado em legislação própria (Lei 12.651/2012 e Decretos nº 7.830/2012 e nº 8.235/2014) mas conforme resume a Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária (Embrapa, 2017):

A adesão formal ao PRA contempla a assinatura de Termo de Compromisso que contenha, no mínimo, os compromissos de manter, recuperar ou recompor as áreas degradadas ou áreas alteradas em Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de Uso Restrito do imóvel rural, ou ainda de compensar Áreas de Reserva Legal. O projeto de recomposição de áreas degradadas e alteradas é um dos instrumentos do PRA e as atividades nele estabelecidas deverão ser concluídas de acordo com o cronograma previsto no Termo de Compromisso. A partir da assinatura do Termo de Compromisso serão suspensas as sanções decorrentes das infrações relativas à supressão irregular de vegetação em Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de Áreas de Uso Restrito cometidas antes de 22/07/2008.

O sistema eletrônico (no sítio do CAR) disponibiliza as ferramentas necessárias para a elaboração das Propostas Simplificadas de Adesão ao PRA para áreas cadastradas no CAR até a data limite atualmente estipulada na Lei 13.887/2019, possibilitando o acompanhamento de todas etapas da regularização ambiental (inscrição no CAR, acompanhamento, regularização e negociação - para o caso de imóveis rurais que possuam excedentes de vegetação nativa negociáveis).

De acordo com o Art. 59, § 3º da Lei 12.651/2012, “com base no requerimento de adesão ao PRA, o órgão competente integrante do Sisnama convocará o proprietário ou possuidor para assinar o termo de compromisso, que constituirá título executivo extrajudicial.”, assegurando-se os benefícios previstos no Art. § 5º “a partir da assinatura do termo de compromisso, serão suspensas as sanções decorrentes das infrações mencionadas no § 4º deste artigo” (infrações cometidas antes de 22 de julho de 2008, relativas à supressão irregular de vegetação em Áreas de Preservação Permanente, de Reserva Legal e de uso restrito).

Cabe mencionar que uma sanção relevante para proprietários que não aderirem ao CAR é prevista no Art. 78 da Lei 12.651/2012 (com redação dada pelo Art. 78-A da Lei Nº 13.295, de 14 de junho de 2016): “Após 31 de dezembro de 2017, as instituições financeiras só concederão crédito agrícola, em qualquer de suas modalidades, para proprietários de imóveis rurais que estejam inscritos no CAR”.

4 INTERFACES ENTRE O NOVO CÓDIGO FLORESTAL, A LEI 13.887/2019 E OUTROS AGRAVANTES DO PASSIVO AMBIENTAL BRASILEIRO

A primeira vulnerabilidade introduzida pela Lei 12.651/2012 é que, embora seu Art. 12 estabeleça que as RLs sejam independentes das APPs, o Art. 15 flexibiliza “o cômputo das Áreas de Preservação Permanente no cálculo do percentual da Reserva Legal do imóvel”, desde que sejam atendidos alguns requisitos elencados.

Dois outros pontos vulneráveis da Lei 12.651/2012 relativos às áreas que deveriam permanecer intactas são especialmente afetos ao problema do passivo ambiental: o primeiro é a discricionariedade à continuidade das atividades agrossilvipastoris, de ecoturismo e de turismo rural em áreas rurais consolidadas até 22 de julho de 2008 nas APPs (Art. 61-A) e outro é a forma de recomposição da vegetação nativa em áreas consolidadas sobre APPs e RLs.

No caso das APPs a forma de recomposição da vegetação ciliar nas áreas consolidadas foi significativamente reduzida para uma faixa que vai de 5m (em pequenas áreas de até 1 Módulo Fiscal) até no máximo 100m (Art. 61-A, incluído pela Lei 12.727/2012) e no caso das RLs permitiu-se um processo chamado de “compensação”, que pode ser feita em quatro modalidades (Art. 66, § 5º): (I) aquisição de cota de reserva ambiental (CRA); (II) arrendamento de área sob regime de servidão ambiental ou Reserva Legal; (III) doação ao poder público de área localizada no interior de Unidade de Conservação de domínio público pendente de regularização fundiária e (IV) cadastramento de outra área equivalente e excedente à Reserva Legal, em imóvel de mesma titularidade ou adquirida em imóvel de terceiro, com vegetação nativa estabelecida, em regeneração ou recomposição, desde que localizada no mesmo bioma.

O problema é que, além da redução na dimensão da vegetação ciliar nativa supramencionada, a recomposição da vegetação natural, no escopo do Programa de Regularização Ambiental, tem sido objeto de sucessivos adiamentos, conforme será dissertado.

A exploração de pontos que aqui se chamou de “vulneráveis” na legislação, mudanças recentes de paradigma na política ambiental brasileira e a explosão de desmatamentos ilegais verificados no Brasil, tem contribuído sinergicamente para a manutenção e até expansão de um passivo ambiental de grande dimensão no país, cuja situação tem sido sensivelmente agravada desde que se disseminou a pandemia da Covid-19 no Brasil. O cenário da pandemia tem facilitado essa expansão porque ofuscou a atenção sobre os desmatamentos e queimadas, abrindo uma janela para exploradores e devastadores. A Lei 13.887/2019, catalisa o potencial de ampliação deste passivo, ao estabelecer conexão entre estes aspectos.

Depreende-se da exposição feita, que o CAR é o mais importante instrumento de gerenciamento territorial rural já implementado no Brasil, sendo sua consecução, no prazo legalmente previsto, a primeira condição para a obtenção dos benefícios do PRA. Entretanto, conforme se pôde acompanhar desde a sua concepção, tem sofrido sucessivos processos de protelação.

Inicialmente, a Lei 12.651/2012 (Art. 29, III) previa a obrigatoriedade da inscrição das propriedades e posses rurais ao CAR, no prazo de até 1 ano após a data de sua implantação (prorrogável uma única vez, por ato do Chefe do Poder Executivo).

A Lei Nº 13.295, de 14 de junho de 2016 prorrogou a adesão ao CAR até 31 de dezembro de 2017, “prorrogável por mais 1 (um) ano por ato do Chefe do Poder Executivo.”

O Decreto Nº 9.257, de 29 de dezembro de 2017, Art. 1º, prorrogou novamente o prazo até 31 de maio de 2018.

Posteriormente, a Medida Provisória Nº 884/2019, convertida na Lei Nº 13.887/2019, protelou novamente os prazos, prevendo no seu Art. 1° que “a inscrição no CAR é obrigatória e por prazo indeterminado para todas as propriedades e posses rurais”, além de prorrogar novamente o prazo para a concessão dos benefícios da adesão ao Programa de Regularização Ambiental (PRA) a proprietários e possuidores de imóveis rurais que os inscreverem no CAR até o dia 31 de dezembro de 2020.

 Ao alterar a dinâmica do CAR a lei 13.887/2019 provoca um desequilíbrio no processo de recuperação do passivo ambiental brasileiro e perpetua a sensação de indefinição no prazo limite de adesão ao CAR. Estes fatos, em sinergismo com uma sequência de eventos recentes no âmbito da política ambiental brasileira, sobretudo no Ministério do Meio Ambiente, contribuem para a instauração de uma percepção de mudança de paradigma na tutela judicial ecológica no Brasil no sentido de mais permissividade com os delitos ambientais, especialmente após a incidência da pandemia da Covid-19.

Exemplificam-se alguns destes eventos que propiciam tal percepção: o primeiro ato preocupante do atual governo no tocante ao meio ambiente brasileiro veio no novo organograma do MMA instituído pela Lei 13.884/2019, quando o Serviço Florestal Brasileiro foi transferido deste ministério para o Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento exercer (MAPA). Além disso, a extinção da   Secretaria de Mudanças do Clima e Florestas, que continha importantes departamentos de monitoramento climático. Posteriormente, O Decreto nº 10.347/2020, de 14/05/2020, transferiu a função de poder concedente de florestas públicas do MMA para o MAPA, o que, segundo dados apresentados pelo Ministério Público Federal – Procuradoria do Distrito Federal (MPF/PRDF, 2020) abre a possibilidade de tornar 7.750.447,94 de hectares de florestas públicas federais passíveis de concessão, apenas no ano de 2020. A MP 910/2019 (substituída pelo PL 2633/20), propôs flexibilizar significativamente a Lei que dispõe sobre a regularização fundiária das ocupações incidentes em terras situadas em áreas da União (razão pela qual foi alcunhada de “MP da grilagem”), tida por muitos como mais um incentivo ao desmatamento e ocupação ilegal de terras públicas.

No âmbito político, uma série de eventos recentes, amplamente divulgados na imprensa brasileira e mundial, corroboram a percepção retromencionada. Um dos mais enfatizados nos noticiários foi um vídeo de uma reunião ocorrida em 22/04/2020 na qual o ministro do Meio Ambiente brasileiro sugeriu ao presidente da república aproveitar o momento de pandemia para flexibilizar regras de proteção ambiental, sem passar pelo congresso. Para sumarizar a sequência de ações preocupantes do MMA brasileiro na tutela ambiental pode ser citada a Ação Civil Pública ajuizada perante a Justiça Federal do Distrito Federal pelo Ministério Público Federal (MPF/PRDF, 2020) requerendo o imediato afastamento do ministro do Meio Ambiente, por “atos de improbidade administrativa: desestruturação dolosa das estruturas de proteção ao meio ambiente”. O MPF/PRDF acusa formalmente o ministro de “encadeamento premeditado de atuar contrário à proteção ambiental”.

Segundo argumentado pelo Ministério Público Federal,

“os efeitos da fragilização da estrutura administrativa, por sua vez, são imediatos, como mostram os dados sobre o aumento do desmatamento e o avanço de atividades econômicas ilegais sobre áreas de floresta nativa, incluindo áreas especialmente protegidas, como terras indígenas e unidades de conservação”.

Esta postura do próprio gestor do órgão central do Sistema Nacional do Meio Ambiente, em aditamento às questões legais abordadas soam como uma espécie de endosso na consciência dos interessados no desmatamento ilegal no Brasil, potencializando sobremaneira o problema do passivo ambiental. Prova inequívoca disso é que, desde que se instalou a pandemia no Brasil uma sucessão de recordes tem sido constatada tanto nos desmatamentos ilegais quanto nas queimadas, especialmente nos limites da Amazônia Legal, no Cerrado e da região do Pantanal, conforme comprovam os dados do Sistema de Detecção do Desmatamento em Tempo Real (DETER) e do Programa Queimadas, ambos do INPE.

Pelos dados do DETER (INPE/DETER, 2020), plotados na Figura 1, comprova-se a disparada dos desmatamentos na Amazônia Legal desde a instalação da pandemia no Brasil:

Figura 1 - Variação mensal da área sob aviso de desmatamento na Amazônia Legal brasileira no ano de 2020 (km²)

Fonte: Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais – Projeto DETER (INPE/DETER, 2020)

Pelos registros do DETER, o desmatamento acumulado na Amazônia Legal do atual ano referência, que vai de agosto de 2019 a julho de 2020, totalizou 9214,6 km², 34,5% maior do que os 6844 km² registrados no ano referência anterior, um recorde para o período desde quando o DETER passou a adotar a metodologia atual, em 2016.

Com relação às queimadas, os dados do Programa Queimadas (INPE/PROGRAMA QUEIMADAS, 2020) mostram que ocorreram na Amazônia Legal 2248 focos ativos em junho de 2020 (19,6% a mais do que os 1880 focos registrados em junho de 2019). Em julho de 2020 foram registrados 6.803 focos ativos (27,9% a mais que em julho de 2019) e até o dia 27 de agosto de 2020 foram registrados 25485 focos ativos. 

A análise da série histórica do Programa Queimadas revela uma tendência preocupante, porquanto o período com maior média de focos ativos de incêndios na região se situa entre julho e novembro.

Pelos dados apresentados, vê-se que o período de pandemia do Coronavírus no Brasil coincide com o avanço da devastação das florestas nativas nos mais importantes biomas do Brasil. Numa revisão mais ampla, a partir de dados do INPE e entrevistas com pesquisadores de instituições como o Projeto MapBiomas, o Instituto de Pesquisa Ambiental da Amazônia e a Universidade Federal do ABC, Thomaz (2020) conclui que o desmatamento na Amazônia aumentou 55% no primeiro quadrimestre de 2020 e afirma que pesquisadores constataram a coincidência de dois picos simultâneos: de casos de Covid-19 e de registros de destruição da floresta. O Instituto Socioambiental (ISA, 2020) também denuncia o avanço simultâneo destes dois problemas nas terras indígenas e na bacia do Xingu.

5 CONSIDERAÇÕES FINAIS

Conforme aventado, o sinergismo entre os fatores relatados contribui não somente para perseverar um passivo ambiental de grande dimensão no país, mas também para a erosão da imagem internacional do Brasil, a exemplo das manifestações de protestos em todo o mundo convocados pelo movimento Fridays for Future para ocorrer a partir de 28/08/2020, protestando contra a situação da Amazônia. Este desgaste tende a gerar consequências altamente prejudiciais para o agronegócio brasileiro no escopo das exportações, com grandes danos à recuperação econômica do Brasil pós-pandemia. Exemplos neste sentido já se viram recentemente, como a comunicação formal ao governo brasileiro feita por gestores de fundos que administram cerca de US$ 4 trilhões em ativos pressionando pela redução do desmatamento da Amazônia e, mais recentemente, da expressa dúvida com relação ao acordo União Europeia-Mercosul, feita por Angela Merkel, chanceler da Alemanha, à ativista ambiental Greta Thunberg. Grandes redes varejistas europeias, como a Tesco, já anunciaram não mais comprar carne brasileira para evitar mais desmatamento.

Sobre os autores
David Vieira Lima

Agrônomo, Doutor em Agronomia, Professor Titular do Instituto Federal Goiano Campus Rio Verde-GO. Acadêmico de Direito na Universidade de Rio Verde, GO.

João Porto Silvério Júnior

Doutor de Direito Processual pela PUC/MG e Università degli Studi Roma Tre, Coordenador do Programa de Mestrado em Direito do Agronegócio e Desenvolvimento da UniRV – PPGDAD, Professor Titular de Direito Processual Penal da Faculdade de Direito da UniRV, (Graduação e Pós-graduação), Pesquisador-Líder do Grupo de Pesquisa CNPq Processo Fraterno e Direito do Agronegócio da UniRV, Membro da Câmara de Pós-graduação da UniRV, Membro do NDE, Promotor de Justiça Criminal no Estado de Goiás

Jéssica de Melo Filsner

Acadêmica de Direito - Unibrás, Campus Rio Verde - Rio Verde-Goiás;

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, David Vieira; SILVÉRIO JÚNIOR, João Porto et al. Impactos da Lei 13.887/2019, pandemia e outros agravantes sobre o passivo ambiental brasileiro. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 26, n. 6516, 4 mai. 2021. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/90226. Acesso em: 21 nov. 2024.

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