11. REVOGAÇÃO DA CONTRAVENÇÃO PENAL DE PERTURBAÇÃO DA TRANQUILIDADE
Em seu artigo 3º., a Lei 14.132/21, responsável pela criação do crime de “Perseguição”, revogou expressamente o artigo 65 da Lei de Contravenções Penais (Perturbação da Tranquilidade).
Pertinente a crítica a essa revogação formulada por Costa, Fontes e Hoffmann, pois que poderia continuar em vigor como infração penal subsidiária em casos de perturbações que não se tipificassem perfeitamente no artigo 147 – A, CP. Ademais, é fato que na falta de habitualidade não de poderá cogitar de aplicação do crime de “Perseguição”, de forma que seria útil a continuidade da vigência do artigo 65, LCP para esses casos. 75
Também lamenta a revogação contravencional Leitão Júnior:
Nossa argumentação é de que o legislador ordinário poderia ter optado pela manutenção do aludido dispositivo, já que agora poderá deixar a porta aberta para a impunidade em condutas de poluição sonora e similares que não se enquadrem no art. 54. da Lei do Meio Ambiente e nem no art. 42. da LCP – em que o operador subsidiariamente tinha o art. 65, da LCP. Logo, teria um possível vácuo criado. 76
Conforme já consignado, se está de acordo com a crítica formulada pelos autores acima mencionados. Entretanto, quando Leitão Júnior afirma que no caso de barulho, gritaria, algazarra etc., poderia não haver possibilidade de aplicação do artigo 42, LCP, não se enxerga essa lacuna. Afinal o dispositivo, denominado “Perturbação do Trabalho ou Sossego Alheios” descreve em seus incisos exatamente tais condutas. O problema, a nosso ver, se reduz à questão da perturbação pontual, sem habitualidade por acinte ou motivo reprovável, nos termos do revogado artigo 65, LCP. Aí sim, haverá uma lacuna legal no caso de perturbações sem habitualidade ou reiteração.
Interessante observar a questão da lei penal no tempo com relação à revogação do artigo 65, LCP e o advento do crime de “Perseguição” (artigo 147 – A, CP).
Considerando que a dicção do antigo artigo 65, LCP era bem mais aberta que a do atual artigo 147, CP, se houver pessoas que estejam respondendo pela contravenção penal em casos que hoje configurariam “Perseguição”, não será possível aplicar o artigo 147 –A, CP retroativamente (“novatio legis in pejus”), de modo que haverá a ultratividade da lei penal mais benéfica, no caso a contravenção. Doutra banda, nos casos em que a contravenção foi perpetrada sem os requisitos específicos do artigo 147 – A, CP (em especial a habitualidade ou reiteração), opera-se “abolitio criminis”. Doravante, em casos ocorridos após o vigor da Lei 14.132/21, somente serão incriminados os casos tipificáveis no artigo 147 – A, CP, pois que operou-se, sem dúvida, “abolitio criminis” com relação à contravenção outrora prevista no artigo 65, LCP. 77
12. CONCURSO DE CRIMES, DISTINÇÃO DELINQUENCIAL E CASOS DE CONSUNÇÃO
12.1. ABUSO DE AUTORIDADE
Acaso a perseguição consista em conduta praticada por agente público dotado de autoridade no exercício ou em razão da função, fica afastado o crime do artigo 147 –A, CP e se aplicam as normas da Lei 13.869/19. 78 Somente haverá aplicabilidade do artigo 147 – A, CP ao agente público quanto atuando fora da função ou mesmo na função ou em razão dela, não havendo previsão da conduta específica na Lei de Abuso de Autoridade, operando o crime de “Perseguição” por subsidiariedade.
12.2. FALSA IDENTIDADE
No caso de uso de perfis falsos em redes sociais ou falsa identificação em geral, entendem Costa, Fontes e Hoffmann que haverá concurso de crimes do artigo 307, CP com o artigo 147 – A, CP. A nosso ver esse entendimento é acertado e o concurso seria formal impróprio, tendo em vista a dualidade de desígnios, de modo que haveria o cúmulo material das penas. Efetivamente, como afirmam os autores, a falsa identidade não é meio necessário para a prática do “Stalking”. 79Além disso, acrescente-se que os bens jurídicos tutelados são diversos (liberdade individual e fé pública).
Não obstante, poderá surgir entendimento quanto a ser a prática de falsa identidade crime – meio para a “Perseguição”, de modo que deveria ser absorvida pela última.
Entende-se, como já dito, mais correta a posição que advoga o concurso de crimes. No entanto, é de se consignar que seria interessante que o legislador houvesse previsto uma causa de aumento de pena para o uso de falsa identidade, nome suposto ou anonimato, o que então solucionaria essa eventual controvérsia e prestaria homenagem à proibição de anonimato constitucionalmente prevista (artigo 5º., IV, CF). Porém, a própria falta de previsão do legislador está a indicar e confirmar que o concurso delinquencial é a solução mais acertada, de forma a não deixar bem jurídico constitucionalmente previsto sem a devida tutela penal.
12.3. CRIMES CONTRA O SENTIMENTO RELIGIOSO
Não são raros os casos em que cerimônias religiosas ou funerárias podem ser perturbadas por atos de “Stalking”. Nesses casos, entende-se que os crimes previstos, por exemplo, nos artigos 208 e 209, CP devam ser imputados em concurso formal impróprio com cúmulo material de penas em relação ao crime de “Perseguição” (artigo 147 – A, CP). Torna-se muito difícil defender a tese de consunção como crime – meio, tendo em vista a extrema especificidade do bem jurídico em jogo no que diz com os crimes contra o sentimento religioso. Inclusive normalmente haverá vítimas diversas da pessoa visada pelo perseguidor, mas que participam do culto, cerimônia ou funeral (trata-se do chamado “dolo direto de segundo grau, mediado ou de consequências necessárias”). 80
12.4. INVASÃO DE DISPOSITIVO INFORMÁTICO
Em casos de “Cyberbullyng” ou “Cyberstalking” poderá ocorrer que o infrator, além de perturbar a vítima, venha a invadir seus dispositivos informáticos de acordo com o artigo 154 – A, CP. Novamente a solução mais correta parece ser o concurso, que poderá ser formal impróprio ou material, tendo em vista não se tratar de meio necessário para o crime de “Perseguição”. 81 Também serão violados bens jurídicos diversos: liberdade individual, intimidade, vida privada e segurança dos sistemas informáticos. 82 Anote-se, porém, que para quem não aponte a “segurança dos sistemas informáticos” como bem jurídico tutelado afora a liberdade individual, intimidade e vida privada, tornar-se-á mais difícil sustentar a tese do concurso, prevalecendo, nesse caso, a absorção do artigo 154 – A como crime – meio. Não obstante, razão parece assistir ao entendimento que advoga o concurso.
12.5. DIVULGAÇÃO DE CENA DE ESTUPRO OU DE CENA DE ESTUPRO DE VULNERÁVEL, DE CENA DE SEXO OU DE PORNOGRAFIA
Outra situação nada incomum será aquela em que o autor da “Perseguição” atuar na forma do que se convencionou chamar de “Revenge Porn” ou “Pornografia de Vingança”. Haverá nesse caso infração a delitos de natureza sexual previstos nos artigos 216 – B, CP ou 218 – C, CP, sendo o caso induvidoso de concurso material de delitos.
12.6. PERTURBAÇÃO DO TRABALHO OU DO SOSSEGO ALHEIOS
Acaso em conduta reiterada de “Perseguição” nos termos do artigo 147 –A, CP, o indivíduo praticar perturbação do trabalho ou sossego alheios, de acordo com o disposto no artigo 42, LCP, em se tratando de contravenção penal, entende-se que deve haver consunção do crime – anão 83 pelo crime de “Perseguição”. Doutra banda, havendo perturbação do trabalho ou sossego sem que seja de forma reiterada, afastada, portanto, a habitualidade, haverá a possibilidade de imputar subsidiariamente ao infrator a contravenção em destaque.
12.7. ARMAS DE FOGO IRREGULARES
Já se sabe que o emprego de arma em geral, incluindo as de fogo, conduz a incremento de pena do crime de “Perseguição”, nos termos do artigo 147 – A, § 1º., III, “in fine”, CP.
Pode acontecer que além de ser empregada arma de fogo, seja esta irregular, de forma que haja incidência nos artigos 12, 14 ou 16 do Estatuto do Desarmamento (Lei 10.826/03). Também pode haver o disparo da referida arma (artigo 15 da Lei 10.826/03).
A incidência dos artigos 12 e 14 será com relação ao emprego de armas de fogo de uso permitido. Do artigo 16, com relação a emprego de armas de fogo de uso restrito ou proibido.
No caso do indivíduo exibir, por exemplo, uma arma irregular de dentro de sua casa para a vítima por via telemática, sem portá-la na via pública, sendo localizada e apreendida a arma, ensejará concurso material de crimes entre o artigo 147 – A, CP e os artigos 12 ou 16 da Lei 10.826/03, conforme se trate de arma de uso permitido ou restrito ou proibido. Já se o infrator chegar a portar a arma na via pública, por exemplo, seguindo a vítima, será também o caso de concurso de crimes entre o artigo 147 –A, CP e os artigos 14 ou 16 do Estatuto do Desarmamento, conforme seja a arma de uso permitido ou restrito ou proibido.
Pode parecer que haveria “bis in idem” devido ao fato de que o emprego de arma já é uma majorante. Acontece que, em primeiro lugar, a arma não precisa necessariamente ser de fogo e, além disso, não precisa a posse ou o porte ser ilícito. A causa de aumento se aplica isoladamente, sem o concurso com infrações do Estatuto do Desarmamento no caso de emprego de armas de fogo legais.
No caso de eventual disparo irregular de arma de fogo, mesmo sendo a arma legalizada, restará o concurso de crimes (formal impróprio com cúmulo das penas dos artigos 147 – A, CP e 15 da Lei 10.826/03). Acaso a arma ainda seja ilícita nada se altera a respeito a respeito do concurso com o crime de “Perseguição”. Contudo, há que verificar como ficaria a questão entre a posse ou porte irregular, necessários ao disparo e o crime de disparo de arma de fogo. Pois bem, em sendo a arma de uso permitido, o disparo (artigo 15) absorve tanto a posse (artigo 12) como o porte (artigo 14), eis que estes serão crimes – meio. Mas, se a arma for de uso restrito ou proibido ocorrerá o contrário, o artigo 16 absorverá o artigo 15, tendo em vista que tem pena maior. Assim sendo, no caso de disparo de armas de fogo ilegais, poderá haver concurso formal impróprio entre o artigo 147 – A, CP e o artigo 15 do Estatuto do Desarmamento (no caso de armas de uso permitido), ou o artigo 16 do Estatuto no caso de armas de uso restrito ou proibido. 84 Em todos os casos o aumento de pena do emprego de arma do crime de “Perseguição” seria normalmente aplicável. Não há “bis in idem”, tendo em vista que o aumento se dá pelo “emprego” da arma de fogo nos atos de perseguição, que não é meio necessário e os crimes do Estatuto se referem à posse, ao porte e/ou ao disparo ilícitos da arma de fogo.
Agora, se a posse ou porte ocorrem em contextos fáticos distintos, poderá haver o concurso material. Por exemplo, um sujeito porta uma arma de uso permitido, seguindo a vítima de “Stalking” por horas. Em dado momento, saca e efetua o disparo. Haverá os três crimes (artigo 147-A, CP e artigos 14 e 15 da Lei 10.826/03). O mesmo raciocínio valerá para o caso de contextos distintos e o disparo e a posse ou porte de arma de uso restrito ou proibido. 85 Permanece incólume a observação a respeito da aplicabilidade, sem dupla apenação pelo mesmo fato, da majorante do crime de “Perseguição”, devido ao “emprego” da arma.
Não há falar em consunção dos crimes do Estatuto do Desarmamento pelo crime de “Perseguição”, tendo em vista a tutela de bens jurídicos diversos pelos tipos penais em concurso. 86
12.8. DESCUMPRIMENTO DE MEDIDA PROTETIVA DE URGÊNCIA DA LEI MARIA DA PENHA
A Lei 11.340/06 prevê, em seu artigo 24 – A, o crime de descumprimento de medida protetiva de urgência pelo praticante de violência doméstica e familiar contra a mulher. Nesses casos, havendo a medida protetiva e seguindo o infrator na prática da “Perseguição”, a melhor solução será o concurso formal impróprio de infrações (cúmulo material). Certamente o concurso se dará com o delito de “Perseguição” com aumento de pena devido à circunstância de violência contra a mulher, nos termos do artigo 147 – A, § 1º., II, CP. Não há também aqui “bis in idem”, tendo em vista a tutela de bens jurídicos diversos (liberdade individual da vítima e administração da justiça). 87
Lembram ainda Costa, Fontes e Hoffmann que pode haver descumprimento de medidas de proteção ao idoso (artigo 45 da Lei 10.741/03) ou criança ou adolescente (artigo 101 da Lei 8.069/90), caso em que não haverá possibilidade de aplicação do artigo 24 – A da Lei Maria da Penha, que é exclusivo para a violência contra a mulher. Também não caberá o crime de desobediência (artigo 330, CP), tendo em vista que já existe sanção processual para inibir o descumprimento, qual seja o decreto de Prisão Preventiva, nos termos do artigo 313, III, CPP. 88
Acrescente-se que também no caso de descumprimento de cautelares protetivas ora previstas no artigo 319, II e III, CPP, mesmo não se tratando de menores ou idosos, também caberá o decreto de preventiva, de acordo com o artigo 312, Parágrafo Único c/c 282, § 4º., CPP, de modo que também não será possível a cumulação do crime de “Perseguição” com o crime de “Desobediência”.
12.9. CRIME DE SEQUESTRO E CÁRCERE PRIVADO
Como já visto anteriormente, na “Perseguição” (artigo 147 –A, “caput”, CP) há mera “restrição” da liberdade de locomoção, enquanto que no crime de “Sequestro e Cárcere Privado” (artigo 148, CP) há “privação”. O segundo verbo pressupõe um ataque mais intenso ao bem jurídico.
Feita a distinção entre os delitos, há que considerar o caso em que haja a prática de perseguição por outros atos e em dado momento o “stalker” pratique o sequestro da vítima, passando, numa espécie de progressão criminosa, da “restrição” para a “privação” da liberdade de ir e vir. Nessas situações não parece haver outra solução senão o concurso material de infrações.
12.10. CRIMES PATRIMONIAIS
Não é incomum que em casos de “Stalking” o infrator perpetre crimes patrimoniais contra o perseguido(a). A prática de crimes de dano (v.g. arremesso de pedras quebrando vidraças da casa da vítima, furar o pneu do carro, riscar a pintura etc.) é usual. Outro caso que inclusive já tive oportunidade de registrar trata-se de perseguição por motivos de atração sexual e subtração (furto) de roupas íntimas da vítima (calcinhas). Nesse caso concreto o indivíduo seguia a vítima constantemente sem nada dizer, mas a importunando indiretamente e depois invadiu seu quintal diversas vezes, subtraindo calcinhas de seu varal. Interrogado, informou que cheirava as peças íntimas em estado de excitação sexual e depois as vestia, raspava os pelos das pernas e nádegas, se olhava num espelho de costas com outro espelho à frente e se masturbava! Na época respondeu apenas pelos furtos continuados e pela contravenção penal de “Perturbação da Tranquilidade” (artigo 65, LCP), então vigente e hoje revogada. Não havia ainda sido criado o crime de “Perseguição” (artigo 147 – A, CP) pela Lei 14.132/21.
Parece que os crimes patrimoniais devem ser imputados em concurso material ao infrator, tendo em vista a tutela de bens jurídicos diversos (liberdade individual e patrimônio).
12.11. VIOLAÇÃO DE CORRESPONDÊNCIA, INTERCEPTAÇÃO TELEFÔNICA, E VIOLAÇÃO DE DOMICÍLIO
Embora o crime de “Perseguição” já proteja os bens jurídicos da intimidade e da vida privada, não parece que violações como as de correspondência epistolar, telefônica e de domicílio possam ser absorvidas. Um aspecto é a perturbação causada pelo “stalker”, objeto por excelência do crime de “Perseguição”, outra são as violações especialmente incriminadas que não podem restar impunes, devendo haver concurso formal ou material conforme o caso concreto. Porém, pode haver pensamento que pugne pela consunção do crime maior pelo crime menor nesses casos, somente admitindo o concurso material em havendo atos de perseguição autônomos às violações, embora não pareça ser o mais certo.
12.12. PICHAÇÃO
Uma das formas de importunar uma pessoa pode ser a realização de pichações em sua propriedade, com impropérios, ameaças ou mesmo símbolos ou manifestações de suposto afeto.
Não se vislumbra motivo para que não haja o concurso formal impróprio de infrações entre o artigo 147 – A, CP e o artigo 65 da Lei 9.605/98, mesmo porque há novamente diversidade de bens jurídicos (liberdade individual e meio ambiente).
12.13. CRIMES DE PERIGO COMUM E INDIVIDUAL
Não será impossível que em meio a uma conduta de “Perseguição” o infrator acabe praticando crimes como incêndio ou explosão. Novamente a solução somente pode ser o concurso formal impróprio, pois há bens jurídicos diversos em jogo, inobstante sejam os crimes de perigo comum subsidiários (liberdade individual e incolumidade pública). O mesmo se pode afirmar com relação a crimes de perigo individual como, por exemplo, perigo para a vida ou a saúde de outrem, perigo de contágio venéreo, perigo de contágio de moléstia grave etc. Tendo em vista a alteridade de bens jurídicos, não parece que a subsidiariedade dos crimes de perigo seja suficiente para elidir sua aplicação. Malgrado isso, admite-se que pode surgir entendimento quanto ao afastamento dos crimes de perigo exatamente devido à sua característica subsidiária.