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Réquiem para gestores públicos e empresas contratadas em tempos de pandemia

O artigo é uma crítica ao rigor excessivo com que certos tribunais de contas vêm ensaiando julgar gestores públicos e empresas contratadas em tempos de pandemia.

 

O período de pandemia da Covid-19 revelou-se de notória tristeza e efeitos devastadores para a população de todo o globo. Quando chegou ao Brasil, pouco se sabia a respeito do vírus. Diversas medidas tiveram de ser tomadas para o enfretamento da emergência de saúde pública que se instaurou. O tempo era o valor de maior grandeza a ser considerado. Corria-se contra ele.

 

Em que pese a maioria das grandes cidades haver decretado, já em março de 2020, situação de calamidade pública e tentado organizar planos de combate à pandemia, os casos não paravam de aumentar. Era muita gente sucumbindo.

De par com isto, em meio ao horror da mortandade cada dia mais crescente, a incerteza sobre a competência dos entes federativos para a iniciativa de medidas de alto impacto cuidava de agravar o caos, o desencontro de informações, a confusão.

A cada dia novas diretrizes vinham sendo fornecidas por agências internacionais acerca dos procedimentos, equipamentos e protocolos que deveriam ser usados na luta contra o vírus.

Equipamentos de proteção individual, como máscaras e luvas, passaram a ser materiais essenciais e indispensáveis, principalmente na rede pública de saúde. Os conselhos de medicina e de enfermagem pressionavam a Administração para a tomada de medidas protetivas dos servidores da linha de frente do combate.

Não restou outra opção aos gestores públicos a não ser efetuarem compras rápidas de insumos para proteção dos servidores alocados nesta guerra. Ações Judiciais aumentavam a pressão por soluções relâmpagos. A vantajosidade das compras neste quadro desesperador traduzia-se em duas palavras: rapidez e eficiência.

Burocracias de suma importância em contextos de outrora, normais, como licitações, foram dispensadas. Para tanto, foi editada a Medida Provisória 966/2020 e publicada a Lei 13.919/20. Em específico, o art. 4º desta última roborou a dispensa de licitação para a aquisição de insumos destinados ao enfrentamento de tal emergência, considerada de importância internacional. Na sua esteira, por exemplo, adveio no âmbito do Município do Rio de Janeiro o Decreto Rio nº 47.246/20.

A própria Constituição Federal, em seu art. 37, já dispunha de antemão princípios que, no período em questão, ganharam um status mais elevado em comparação com outros ali também previstos. O já dito princípio da Eficiência foi um dos que despontaram, impondo ao gestor a realização de suas atribuições com maior presteza funcional, exigindo resultados mais rápidos ante as necessidades coletivas.

Nesse contexto, a dispensa de licitação, se por um lado afrouxou na questão da disputa de preços, por outro permitiu que a eficiência fosse de fato e de direito realizada e, assim sendo, que os Gestores e demais Administradores públicos responsáveis pelas compras governamentais desempenhassem seu mister primando por maior agilidade em busca da proposta mais vantajosa em termos não apenas financeiros, como, principalmente, de logística e agilidade na entrega.

Diferenças de valores de outrora, que talvez justificassem acusações de sobrepreço em tempos de normalidade, passaram a demandar ponderações mais criteriosas, mitigadas pela ótica da eficiência, rapidez e proporcionalidade.

Foi neste cenário de dispensa de licitação que muitas Secretarias Municipais de Saúde fizeram convites, via e-mail, a um universo de empresas do ramo, para que oferecessem suas propostas, por exemplo, de máscaras, luvas, óculos de proteção e por aí vai.

Cada Gestor público competente analisou as propostas que se apresentaram e, visando o melhor benefício para a sociedade, aprovou a mais vantajosa, repise-se, não necessariamente a mais barata, observada sempre a razoabilidade enquanto fator de desautorização de preços aberrantemente altos.

O cenário de calamidade de saúde pública vivenciado nesse contexto, de par com a possibilidade de outro ente federativo comprar todo o estoque disponível na praça, fez do tempo curto uma tônica, bem assim da quantidade disponibilizada para a entrega um atrativo inolvidável. Hesitar poderia significar a contaminação ou mesmo morte de uma infinidade de pessoas a mais. Isso sem dizer da correspondente responsabilidade civil, administrativa e até mesmo penal do Administrador hesitante.

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Não obstante todas essas nuances que, conforme até aqui ilustradas, coloriram de tonalidades especiais uma plêiade de contratações públicas havidas no período em questão, tem-se contudo visto, já então abrandado o flagelo do coronavírus, muitos Gestores e empresas contratadas durante o auge desse triste hiato, agora responderem acusações de sobrepreço perante certas Cortes de Contas país afora, por diferenças a maior verificadas nos contratos encetados à época da pandemia - por exemplo, de R$ 4,00 no preço de cada máscara N95.

Trata-se de um perigoso juízo modular, tomado de empréstimo de tempos de normalidade, e que, abstraído das vicissitudes do período da pandemia, enseja erro grave que pode macular o julgamento de inúmeras Tomadas de Contas Especiais.

É fácil julgar voltando-se o farol para trás. Contudo, é perigoso. A demonização indiscriminada de Gestores e empresas fornecedoras contratadas pela Administração no período em questão é um atentado à racionalidade. Como diziam as fontes clássicas do direito: summum jus, summa injuria. É preciso equilíbrio e ponderação.

Pelo prisma dos gestores públicos, viu-se a pressão que sofreram por eficiência na corrida contra o tempo, a coação sofrida de sindicatos e conselhos de categoria pela proteção dos seus médicos e enfermeiros, bem assim a ameaça nem sempre expressa, mas de fácil percepção - de responsabilizações de toda ordem, inclusive penal, ainda que ninguém no mundo tivesse à época uma fórmula segura para lidar com o Coronavírus.

Outrossim, pelo prisma das empresas que foram contratadas durante esses dois anos de luta contra a mortandade, repise-se, a evidente atipicidade do período de pandemia obstava que preços de medicamentos, insumos e equipamentos hospitalares fossem os mesmos dos tempos de normalidade. O empresário precificou o seu produto de acordo com sua realidade, uma liberdade sagrada que lhe outorga o art. 170 da CF pelo princípio da Livre Iniciativa.

Dar o preço do produto com o qual trabalha é ato privativo da empresa, não cabendo ao Estado - tido o termo no sentido amplo, de Poder Público - ingerir, intervir em coisas do tipo. E para além do respaldo constitucional, essa liberdade do empresário encontra ainda fincas na Lei n. 13.784/19, conhecida como Lei de liberdade econômica, abarcando a autorregulação do mercado e vergastando perigos da intervenção estatal.

Parênteses para lembrar que mesmo em tempos de normalidade preços de mercado já distam naturalmente dos praticados no âmbito da Administração Pública, estes últimos intrinsecamente superiores, dada a desigualdade de tratamento a que o contrato administrativo, com cláusulas exorbitantes, sujeição à morosidade das notas de empenho, etc. relega as empresas particulares contratadas.

Preços de mercado são auferidos de um universo que engloba inclusive a economia informal, construtora de parâmetros bem abaixo da precificação praticada no âmbito da Administração Pública. À margem da legalidade, com efeito, os praticantes da economia informal não pagam impostos, não são onerados pela Previdência, enfim, não computam na formação de seu preço inúmeros encargos devidos. Sobre o tema, vale aqui lembrar a lição do inolvidável mestre Ulisses JACOBY:

"O preço praticado no mercado comum não é efetivamente referência válida para a Administração Pública porque essa, para preservar a isonomia exige que os licitantes estejam em dia com todos os tributos que incidem na atividade contratada, além da regularidade com o sistema de seguridade social e aceitem condições próprias de pagamento como nota de empenho. Com isso afasta-se da economia informal, muitas vezes a condutora da economia e indicadora de preços mais baixos." (José Ulisses Jacoby Fernandes; In TOMADA DE CONTAS ESPECIAL Processo e Procedimento na Administração Pública e nos Tribunais de Contas; Belo Horizonte; ano 2009; Editora Fórum; vol. 4; p. 199)

Por isso tudo, devem os Tribunais de Contas redobrar a atenção ao julgar Gestores e empresas contratadas durante o período de pandemia. Para uma aquisição ser caracterizada com sobrepreço, precisa estar cabalmente demonstrado que o preço contratado foi muito acima do que estava sendo praticado na própria época e, mais, que o proponente aumentou sua margem de lucro dolosa e desproporcionalmente ao ofertar e contratar com a Administração Pública.

Lockdowns, fábricas paradas, portos e aeroportos sem funcionar durante a pandemia. Tudo isso contribuiu para dificultar a oferta e logística da entrega dos materiais e, obviamente, elevar os preços, que têm de abranger os custos operacionais e outras despesas do empresário.

A volatilidade dos preços durante a crise pode ser demonstrada pelas inúmeras manchetes e reportagens da imprensa nacional e internacional.

A alta no dólar, que, aliás, bateu recorde no ano de 2020, foi outro fator que impulsionou o preço de insumos de uma maneira geral, e, em especial, os médico-hospitalares.

O TCU, a propósito, frisou a importância e necessidade de justa ponderação, nos termos em que tais, diante de cada contrato administrativo a ser analisado. Veja-se:

"Na aplicação de sanções, o TCU deve considerar os obstáculos e as dificuldades reais enfrentadas pelo gestor, bem como ponderar se as circunstâncias do caso concreto limitaram ou condicionaram a ação do agente (art. 22 do Decreto-lei 4.657/1942 LINDB).

Responsabilidade. Multa. Dosimetria. Circunstância atenuante. Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro. Sanção. Boletim de Jurisprudência 295/2020."

Com efeito, a Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro, recentemente alterada, passou a reclamar em casos assim maior inflexão à lógica do razoável, mais ponderação e equilíbrio. Seu art. 22 expõe a importância de observar-se o caso concreto, as circunstâncias que lhe deram os contornos, antes de se decidir sobre a conduta dos envolvidos no caso, Gestores e empresas fornecedoras ou sobre a validade do ato analisado. Veja-se:

DECRETO-LEI Nº 4.657, DE 4 DE SETEMBRO DE 1942.

"Art. 22.  Na interpretação de normas sobre gestão pública, serão considerados os obstáculos e as dificuldades reais do gestor e as exigências das políticas públicas a seu cargo, sem prejuízo dos direitos dos administrados.     (Regulamento)

§ 1º  Em decisão sobre regularidade de conduta ou validade de ato, contrato, ajuste, processo ou norma administrativa, serão consideradas as circunstâncias práticas que houverem imposto, limitado ou condicionado a ação do agente.                    (Incluído pela Lei nº 13.655, de 2018) 

(...)"

Vale dizer, pois, que os Tribunais de Contas não podem agora simplesmente estipular, rigidamente, partindo de meras abstrações e velhas molduras de outrora, a forma com que o mercado deveria ter se comportado no período de pandemia para, daí, aplicar sanções a Gestores e empresas contratadas pela Administração Pública durante a crise.

A propósito, o art. 4º-E, §1º, VI da Lei 13.979/20 estabeleceu parâmetros de formação dos preços nos casos de aquisição de materiais para o enfrentamento da calamidade de saúde pública decorrente do coronavírus. Veja-se:

"Art. 4º-E.  Nas aquisições ou contratações de bens, serviços e insumos necessários ao enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, será admitida a apresentação de termo de referência simplificado ou de projeto básico simplificado. (Incluído pela Lei nº 14.035, de 2020)

§ 1º  O termo de referência simplificado ou o projeto básico simplificado referidos no caput deste artigo conterá: (Incluído pela Lei nº 14.035, de 2020)

(...)

VI estimativa de preços obtida por meio de, no mínimo, 1 (um) dos seguintes parâmetros: (Incluído pela Lei nº 14.035, de 2020)

a) Portal de Compras do Governo Federal; (Incluído pela Lei nº 14.035, de 2020)

b) pesquisa publicada em mídia especializada; (Incluído pela Lei nº 14.035, de 2020)

c) sites especializados ou de domínio amplo; (Incluído pela Lei nº 14.035, de 2020)

d) contratações similares de outros entes públicos; ou (Incluído pela Lei nº 14.035, de 2020)

e) pesquisa realizada com os potenciais fornecedores(Incluído pela Lei nº 14.035, de 2020)"

(grifamos).

Percebe-se nesse contexto que a norma supracitada, ao permitir a ocorrência de apenas uma das hipóteses dos incisos que relaciona para legitimar o preço referencial da compra, enaltece a importância da celeridade e da eficiência em satisfazer o interesse público no caso concreto.

Outro importante norteador contra imputações descabidas nesta seara é Nota Técnica nº 21/2020/CGEMM/DPDC/SENACON/MJ, emitida pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública:

"Acerca do caso concreto, é esperado que momentos de crise como guerras ou uma pandemia, como o Covid-19, tenham como efeitos i) um aumento abrupto da demanda, em função de insegurança dos consumidores acerca da continuidade do abastecimento de produtos e serviços e ii) uma diminuição da oferta de produtos, causada pelas paradas nas linhas produtivas, como as noticiadas na China e posteriormente na Europa, no caso em análise. Esses efeitos somados (aumento abrupto de demanda e diminuição da oferta) terão impacto no aumento de preço de produtos considerados essenciais no momento de crise."

Enfim, por mais que haja critérios a serem observados para acusar, muitas vezes ocorre o atropelamento do bom senso e mesmo de critérios normativos, seja por motivos políticos, pelo desconhecimento da Lei ou por sanha de justiçamento contra Gestores públicos e empresas privadas contratadas pela Administração.

Equilíbrio é preciso.

Sobre os autores
Leonardo Pinto

Advogado, inscrito atualmente na OAB/RJ com o número 155.828, com mais de 20 anos de experiência em direito público e privado. Com escritório próprio na cidade do Rio de Janeiro e atuação em todo o país perante Tribunais de Justiça comum, Justiça do Trabalho, Justiça Federal, Tribunais Superiores, Supremo Tribunal Federal e Tribunais de Contas.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PINTO, Leonardo; ALMEIDA, Victor Feres Lima. Réquiem para gestores públicos e empresas contratadas em tempos de pandemia. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 27, n. 6985, 16 ago. 2022. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/99500. Acesso em: 24 nov. 2024.

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