CONCLUSIVAMENTE
Do cotejo dos elementos analisados e carreados aos autos, é possível concluir que não há vícios para a posse da Comunidade Quilombola de São Francisco do Paraguaçu, e os argumentos do Autor não procedem.
A regularidade processual manda que se chame ao feito, ao polo passivo, a Fundação Palmares – a qual não é arremedo, como diz o Autor, mas fundação representativa dos quilombolas.
Outrossim, é inviável qualquer deferimento liminar pelo risco que oferece e pela ausência de direito a ser assegurado.
Por fim, sendo a comunidade quilombola, como se identificam, possuem direito a usucapir o imóvel, com supedâneo no artigo 68 dos ADCT, devendo ser usado, se for o caso, analogicamente, a usucapião indígena, conjuminada ao Decreto nº 4887/2003 e, em particular, as disposições de seu artigo 13 – se provar o Autor ter título de propriedade, o que não faz, pois se limita a alegar, em sua petição inicial, apenas a existência de um contrato de arrendamento.
Orienta-se a comunidade, também, a procurar órgãos jurídicos de assistência gratuita para elaboração de sua defesa técnica contestatória, com lastro nas considerações aqui discorridas, e em outras que também convenham.
É o parecer.
Notas
[1] GONÇALVES, Carlos Roberto. Curso de Direito Civil. São Paulo: Saraiva, 2008, p. 68.
[2] ALVIM, Arruda. Algumas notas sobre a distinção entre posse e detenção, p. 81.
[3] BENATTI, José. Posse coletiva da terra: um estudo jurídico sobre o apossamento de seringueiros e quilombolas. [s.d;s.i].
[4] NERY JR., Nelson. Código de Processo Civil Comentado. 7ª ed., São Paulo, Revista dos Tribunais, p. 415, nota 15 ao artigo 47.
[5] CUNHA GONÇALVES apud GONÇALVES, Op. Cit.
[6] DIDIER JR., Fredie. A função social da propriedade e a tutela processual da posse, p. 11.
[7] Em sua maioria, as comunidades negras no meio rural não dispõem de documento comprobatório de seu direito e o "outro" toma o fato como meio de expor-lhe a negatividade de seu espaço, expondo-lhe a condição intersticial e temporária de sua relação com a terra. Diz-lhe assim, o que ele não é - dono da terra sua -, o que não tem ou não pode ter, a terra comum. A terra torna-se o elemento central desse processo posto que não é mais sua terra, o que faz com que a vida que até então lhe pertencia, passe a pertencer a outra esfera até então distanciada. Seu mundo, mundo dos pretos, passa a correr o risco de ser o mundo do "outro". Isto tudo porque o "outro" representa um mundo contido pelo universo da escrita, ou seja, pela ordem da palavra controlada e controladora. A palavra escrita é dotada, não da força vital própria da oralidade, mas de um poder nela investido e que o homem negro não tem. Sem a palavra sua e sem acesso a palavra do "outro", o negro camponês encontra-se despido de qualquer força que permita reagir. A destituição de seu universo e a negação da oralidade enquanto comunicação fazem com que deixe de ser gn'ot de si mesmo e se veja amordaçado pela condição de pobre, camponês e negro. Tríade com que a sociedade da escrita o discrimina e estigmatiza. (GUSMÃO, Neusa Maria Mendes de. Terra de uso comum: oralidade e escrita em confronto. [s.i; s.d], 2012?).
[8] Tríade diagnosticada por BENATTI, José. Op. Cit.
[9] Explanação originada do REsp 771.616/RJ, Rel. Min. LUIZ FUX, primeira turma, DJ 01.08.2006
[10] Nesse sentido é o artigo 2º do Decreto 4887/2003: Consideram-se remanescentes das comunidades dos quilombos, para os fins deste Decreto, os grupos étnico-raciais, segundo critérios de auto-atribuição, com trajetória histórica própria, dotados de relações territoriais específicas, com presunção de ancestralidade negra relacionada com a resistência à opressão histórica sofrida. – grifos nossos.
Em idêntico entendimento: A relação de identidade é ínsita à vida cultural. Quando a Constituição prestigia o modo de viver, fazer e sentir desses grupos e as suas formas de expressão está dando em absoluto a esses grupos a capacidade de autodefinição, de dizerem o que são. Cabe certamente ao Judiciário verificar – e se houver tempo falarei mais detalhadamente sobre o papel do Judiciário – se há, a partir dessa auto-identificação, pertinência ou não com o direito que é deferido, mas jamais cabe ao Judiciário, ao administrador ou a qualquer um de grupo étnico diverso dizer o que aquele grupo é. (PEREIRA, Débora Duprat de Britto. Seminário Internacional – As Minorias e o Direito. Série Cadernos do CEJ, 24, p. 240 a 249). – grifos nossos.
[11] Evidencia-se aqui a importância de um espaço físico onde a vida social encontra-se organizada. [...]. Por esta razão, o espaço físico da vivência coletiva não é apenas um pedaço de terra delimitado, demarcado por esta ou aquela regra, este ou aquele aspecto de lei. A terra é antes de mais nada, um território e como tal: "A terra é um ente vivo que reage ante a conduta dos homens; por isso, a relação com ela não é puramente mecânica senão que se estabelece simbolicamente através de inumeráveis ritos e se expressa em mitos e lendas" (BATALLA apud GUSMÃO, Neusa Maria Mendes de. Terra de uso comum: oralidade e escrita em confronto. [s.i; s.d], 2012?).
[12] A questão dos remanescentes de quilombos não difere em nada da questão indígena. A propriedade, as terras conferidas a esses grupos são dadas efetivamente na perspectiva de um território cultural, onde se faça possível exatamente a existência desse grupo nessa perspectiva de vida de acordo com os padrões culturais próprios de uma vida plasmada, gestada e definida pelo próprio grupo. Trata-se, na verdade, de uma propriedade, de uma terra que se revela como condição de existência desse grupo na sua singularidade e não no aspecto patrimonial; tanto que a nota que se dá, geralmente, é de indisponibilidade, sob uma forma ou outra, porque é um território que não se destina ao comércio; mais uma vez tiramos esse bem da mercancia, que se destina não só às gerações atuais, mas também às gerações futuras, exatamente pela possibilidade de transmissão desses valores que orientam o grupo, na atualidade, e que vão sendo reformulados. (PEREIRA, Débora Duprat de Britto. Seminário Internacional – As Minorias e o Direito. Série Cadernos do CEJ, 24, p. 240 a 249). – grifos aditados.
[13] ALFONSIN, Jacques T. Função social da posse. In Revista de Direito Agrário, MDA|Incra|Nead|ABDA, Ano 19, n° 18, 2006, p. 178.
[14] [...] aqueles que se esforçam para ter uma moradia, mesmo por vias irregulares, não são brindados com infra-estrutura mínima para seu cotidiano, como iluminação regular, saneamento, creche, posto de saúde, ponto de ônibus ou correio. Por estarem em situação irregular, o Poder Público reluta em ofertar tais equipamentos com receio de consolidar a ilegalidade por força de sua conivência. Assim, parece mais conveniente deixá-los à própria sorte. (DI SARNO, Daniela Campos Libório. Elementos de direito urbanístico. São Paulo: Manole, 2004, p. 20-21).