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Parecer:caso quilombola de São Francisco do Paraguaçu

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11/02/2016 às 13:48
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Analisamos a questão do conflito de direitos de natureza possessória, com foco na terra localizada na Vila São Francisco do Paraguaçu, no município de Cachoeira, do Estado da Bahia.

"[...]

Na primeira noite eles se aproximam

e roubam uma flor 

do nosso jardim.

E não dizemos nada.

Na segunda noite, já não se escondem;

pisam as flores,

matam nosso cão,

e não dizemos nada.

Até que um dia,

o mais frágil deles

entra sozinho em nossa casa,

rouba-nos a luz, e,

conhecendo nosso medo,

arranca-nos a voz da garganta.

E já não podemos dizer nada.

[...]"

No caminho com Maiakóvski - Eduardo Alves da Costa.

Versa a questão sobre conflito de direitos de natureza possessória, com foco na terra localizada na Vila São Francisco do Paraguaçu, no município de Cachoeira, do Estado da Bahia; com medição total alegada na petição inicial de uma tarefa e meia, intitulada também “Fazenda Alto do Boqueirão”.

Em sua peça de ingresso litigiosa, aduz o Autor, em epítome, ter firmado negócio contratual com a genitora do Réu para que esta utilizasse a referida área para implantação de culturas, entre o período de 10 de janeiro de 1993 à mesma data em 1994. Todavia, uma vez findo o prazo contratual, mesmo notificado, diz o Autor que o Réu se recusou a desocupar o imóvel. Em seu escorço de fundamentação jurídica, articula o Autor não se tratar de caso de posse pelo réu, mas de simples detenção. Por fim, assevera ser cabível o deferimento da medida liminar a qual pleiteia, inaudita altera pars, com fito de propiciar a locação e auferir sua renda.

Carreiam-se aos autos dois contratos de arrendamento mercantil e demais documentos identitários do Autor.

Em pronunciamento do Incra, refere-se ao parecer emitido pelo vistor judicial, este, que diagnosticara ter havido má-fé pelo Réu à negociação celebrada com o Autor; porém reconhecendo como favorável a manutenção daquele e de sua família no respectivo terreno enquanto não findo o processo administrativo de reconhecimento da comunidade vivente na região como sendo Quilombola. Sugere-se, dada as circunstâncias, o apoio profissional de peritos nos estudos de antropologia. Ao final, entende o expert federal agrário haver no Laudo pericial judicial “flagrante falta de convicção”.

Por fim, interpõe o Autor petição na qual evidencia seu descontento com o ingresso da Fundação Palmares à demanda e argumenta não se tratar de coletivo quilombola nem ser necessária a declinação de competência do Juízo Estadual.

A Associação dos Remanescentes do Quilombo de São Francisco do Paraguaçu, diante dos fatos narrados, procura apoio jurídico deste grupo especializado acadêmico de Direito do qual faz parte este parecerista, com objetivo de caracterizar juridicamente a situação de litígio, analisá-lo e encontrar soluções para assegurar possíveis direitos violados ou ameaçados em favor da comunidade, além de subsidiar a defesa dos mesmos perante o Poder Judiciário, onde tramita uma ação de reintegração de posse.

É o que importa relatar. Passo ao pronunciamento da fundamentação.

Trazidas as questões preliminares, calha-se analisá-las fora da ordem que foi apresentada, tendo em vista que uma nova ordem linear será mais didática à apresentação das respostas e para acompanhar o encadeamento de raciocínio da tessitura geral até seu desfecho.

Pois bem. Iniciando a responder ao segundo questionamento que nos foi feito, verifica-se que os argumentos utilizados pelo Autor da ação se baseiam num tripé: 1) o Réu não teve boa-fé ao término do contrato, pois deveria ter devolvido a terra arrendada; 2) a propriedade pertence à Parte Autoral e 3) o caso do Réu é de detenção e não posse. Contudo, subsidiariamente, alega que, se não restar configurada a detenção, a posse precária estará evidente. Em suma, os conceitos legais utilizados no pórtico inicial são o de detenção – deter sob as ordens de alguém, coisa - e, subsidiariamente, posse precária – deixar de devolver coisa alheia colocada justa e anteriormente sob sua posse[1].

A verdade é que a razão não tende ao Autor nem para uma nem para outra tese jurídica esposada.

A uma, porque, para haver detenção, é necessário que haja “situação de dependência de uma pessoa em relação a outra, agindo aquela não em seu próprio nome e atendendo obedientemente às determinações da que depende[2]”. No caso em tela, o uso da terra não se dava sob as ordens de uma parte para outra, e isso é incontroverso. Se certo estiver o Autor, no máximo, concebe-se uma permissão, mas nunca um mando ao Réu do que ele tivesse que fazer na terra. Essa intelecção é extraída dos próprios instrumentos contratuais acostados pela peça vestibular, na cláusula 2ª de ambos, que registra que era dado ao arrendatário “plantar e cultivar o que lhe aprouver”, ficando evidente que a Parte Ré não usufruía a terra obedecendo ordens, mas, quiçá, resultante de permissão.

A duas, porque o Réu e o grupo com ele convivente – cuja natureza quilombola, ou não, deixaremos para ingressar na discussão posteriormente – já vivia no território antes mesmo da data registrada no instrumento de contrato, o que corrobora que suas plantações de cultivo e a expressão de vida que ali comungavam no plano há muito existiam.

A três, porque posse precária não existe no caso em tela; se nenhuma vez houve o ânimo de um imenso coletivo, vivente por anos em determinado território, pela extração, plantio e desenvolvimento sustentável, de devolver uma posse, já com eles antes mesmo da suposta tomada de propriedade pelo Autor, como alega.

E esse reconhecimento de um contingente de indivíduos no local sobre o qual repousa o prélio jurídico é o que nos leva ao deslinde do quarto ponto abordado: o de que existe, sim, composse no local. O artigo 1.119 do Código Civil dispõe: “se duas ou mais pessoas possuírem coisa indivisa, poderá cada uma exercer sobre ela atos possessórios, contanto que não excluam os dos outros compossuidores”. Entretanto, talvez o termo “composse” não seja de melhor alvitre ao teor normativo, se aplicado neste caso sub examine, sendo-lhe de melhor tom a coloração de “posse agroecológica”. Como ensina Benatti a diferença:

Em nenhum momento podemos confundir a posse agroecológica com posse comunal, composse ou condomínio. (...) Embora na composse cada um dos compossuidores possa exercer o poder de fato sobre a coisa, desde que não exclua dos demais o direito de dar a mesma utilização, não é possível, no entanto, que concomitantemente ocorra o uso coletivo com a presença de apossamento individual. Na composse, nenhum compossuidor pode ter posse exclusiva sobre qualquer parte da coisa comum, pois se trata de posse em comum do mesmo bem. A posse agroecológica tem como característica a simultaneidade da forma coletiva de apossamento e o poder de fato individual sobre a coisa.[3]

De fato, na região disputada, vivem mais de uma pessoa, usufruindo da terra para sobrevivência própria e de seus dependentes familiares, na mesma medida de seus pares ali presentes, sem exclusão de qualquer um. Há harmônica fruição dos bens naturais dispostos na região, sendo ela pro indiviso, não se vislumbrando marcos distintivos e usufruindo todos, ao mesmo tempo, sobre a totalidade territorial. Tecida essa conclusão, parece certa a legitimação passiva dada no pórtico vestibular somente ao Réu Anderson Oliveira Marinho?

Logicamente, não. Existe, seja qual for o nome que se dê – se “composse” ou “posse agroecológica” -, consequentemente, um interesse pluripessoal em se saber o desfecho da decisão judicial; há um interesse multiversal sobre cada cadinho de terra utilizado por todos em comum, seja para plantar, morar ou coletar os frutos dela oriundos; há, enfim, um caráter que ultrapassa a singularidade de quem firmou o pacto arrendatário, transpondo as necessidades desse para lograr a defesa de uma coletividade, sobre a qual incidirá o provimento jurisdicional, seja ele qual for. É mister a representação desse coletivo e sua chamada para o litisconsórcio passivo. A esse respeito, afirma Nelson Nery Jr. que, “toda a vez que se vislumbrar a possibilidade de a sentença atingir, diretamente, a esfera jurídica de outrem, a menos que a lei estabeleça a facultatividade litisconsorcial, deve ser este citado como litisconsorte necessário, a fim de que possa se defender em juízo[4]”.

Estremadas essas primeiras considerações, subsídios já existem para chegar à ilação da primeira questão preliminar que nos foi trazida: de que o conflito em comento se trata de lide possessória entre um pretenso proprietário e os defensivos possuidores. À luz dos aspectos doutrinários contemporâneos acerca da função social da posse e da propriedade, duas vertentes doutrinárias se embatem. A saber:

A primeira, autoral, lastreia-se na força intransponível da propriedade, do título da terra adquirido mediante registro formal e público, dotado da fé da Administração. Guarda aquele direito que alguém “efetivamente exerce numa coisa determinada em regra perpetuamente, de modo normalmente absoluto, sempre exclusivo, e que todas as outras pessoas são obrigadas a respeitar”[5]. Portanto, é direito que não se abala, ainda que sobre uma avalanche de argumentos possessórios, do decorrer do tempo e sua força ou da função eminentemente social. É de alguém e ponto. Partindo daí, a estratégia ofensiva é a de demonstrar o caráter proprietário do terreno discutido, somada à intenção de aclarar que o uso do Réu pelo tempo discorrido se deu por liberalidade pactuada em contrato, de cuja boa fé se esperava o total cumprimento da devolução.

Nessa linha de raciocínio, a terra nunca fora do Réu, mas se lhe emprestou para uso gratuito e por tempo determinado. Apenas isso. E exatamente por isso, seria para o Autor uma posse precária a do Réu, devendo este lhe devolver o que ficou acordado.

Doutra banda, os demandados partem de uma vertente escorreita à função social da posse, com espeque na tríade conjuntiva da mata, casa e roça, fatores essenciais à sustentação digna de vida do coletivo. Dessa feita, retira-se o caráter absoluto do direito à propriedade e oferta-o uma finalidade ao seu exercício, pelo novo ordenamento jurídico brasileiro. “Ao tutelar a posse, o legislador busca valorizar, ainda, o sujeito que de fato exerce os poderes inerentes ao domínio, protegendo aquele que explora economicamente a coisa, seja trabalhando, seja residindo no bem possuído.”[6].

Com essa vocação constitucional imputada à posse, a atividade exercida sobre determinada coisa ganha contornos de relevância consideráveis em cotejo aos títulos de propriedade, afastando uma visão simplista sobre a formalidade do poder exercido sobre algo em valor, também, aos meios utilizados sobre a coisa para consecução de fins de interesse à sociedade. Dá-se fôlego, assim, à cultura, aos costumes dos povos, às atividades de subsistência, às relações sociais, econômicas e familiares com raízes criadas sob os auspícios da conduta possessória. É a primazia da realidade de manifestação de vidas em detrimento da existência formalística do documento[7]. São os interesses sociais em contraponto aos particulares.

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E, se diante dessa restruturação do sistema normativo sobre a propriedade e a posse, ganha revigorada força a função social, quais os vícios que podem constituir empeço ao êxito dessa demanda em relação aos Réus e dar a vitória ao Autor? Segundo esse último, existem vícios consideráveis na posse exercida pela Parte Ré. É o que questiona a quinta questão preliminar que nos é suscitada à apreciação.

De acordo com a petição deflagradora, o Autor “detinha o imóvel para o demandante” (fl. 06). Esse vício é inexistente, pois como já discorremos alhures, não existia ordem dada pelo Autor para tanto, i.e., para que o Réu mantivesse sob sua detenção o imóvel. Havia um contrato possibilitando o uso gratuito e ao talante do Réu. Aliás, a confusão feita pelo Autor entre detenção, posse e propriedade é demonstrada na mesma página, no parágrafo numerado “2.8”, quando o Acionante, para consubstanciar sua tese de detenção pelo Réu, afirma que “a melhor posse é do Autor que é o legítimo proprietário do imóvel”. Vislumbra-se a flagrante e desprovida ligação entre propriedade e posse, considerando que é o próprio demandante quem diz ter estado o Réu com o imóvel por determinado tempo. E quem estava com a posse? O Autor, por ser o proprietário? Data venia, não existe sentido lógico nisso.

Outro vício alegado inicialmente é a precariedade da posse do Demandado, caso não seja reconhecida a detenção. O vício aqui estaria pela retenção da coisa reclamada, indevidamente, quando se deveria tê-la devolvido. O argumento cai por terra sob a seguinte ótica: a posse agroecológica sustentada pela Associação dos Remanescentes do Quilombo de São Francisco do Paraguaçu.

Perscrutando a situação de vida histórica da região, bem se vê que o povo da Fazenda Alto do Boqueirão constituiu um ciclo de vida na região, até muito antes da firmação contratual de arrendamento com o Autor. Ali, esse povo enterrou seus idosos, criou suas crianças, viu-as nascerem. Ali, construíram laços socioafetivos, reforçaram os familiares. Plantaram seus cultivos, pescaram caranguejos dos manguezais, tudo para comer – gize-se, não para enriquecer-se com os lucros. Existe um alto grau de solidariedade e coesão social nos moradores da fazenda do Alto do Boqueirão, o que não torna cada um “dono” de uma parte em particular para seu sustento, mas perfaz um apossamento de uso comum. Ninguém é dono de alguma coisa – com referência à frase do Sr. Altino, membro do Quilombo, ao dizer que ali “ninguém é dono de nada”. Nem mesmo a coletividade é “dona”. Pois, ali, natureza e homem coexistem em sinfônica harmonia, com paridade de atividades em prol à existência sustentável de ambas as partes, orquestrada pelos conjuntos de a) casa; b) mata e c) roça[8], os quais confluem ao apossamento coletivo de um bem natural, exercido sempre em favor do coletivo.

E não há melhor homenagem prestada dessa tessitura à função social. Por isso, inexiste vício de precariedade, pois o terreno não foi “dado para ser devolvido depois.”. Já estava com eles, na posse deles. A estabilidade da vida, surgida e ressurgida durante todo o ínterim de permanência do grupo no terreno, elimina a precariedade e ajuda a firmar quem, realmente, estava com a posse. Por lógico, não há como restituir aquilo que já era de sua posse. Inexiste dever de devolver o que já se tem. Isso desconstrói os argumentos do Autor.

Mas não é só isso. Até o final desse pronunciamento, ver-se-á que os argumentos sustentados pelo Demandante se desmoronam, com realce, ao chegarmos aos direitos fundamentais os quais escudam a Parte Demandada. Com efeito, das premissas alinhavadas, responde-se ao sexto quesito preliminar levantado: o de que o deferimento da liminar apontada na inicial só é possível mediante o assassinato da Justiça, à canetada do magistrado.

Primus, porque a medida inaudita altera parte, para remover alguém com todos os seus pertences e seus dependentes de um local onde vive, de maneira tão abrupta, vai de encontro ao devido processo insculpido no inciso LIV do artigo 5º da Constituição Federal, de que “ninguém será privado de seus bens sem o devido processo legal”. Ora, se o Autor passou tanto tempo sem usar do terreno que pleiteia, não é agora que lhe será lícito despejar, sem a oitiva da parte contrária, alguém de um bem construído nessa terra, sob pena de se efetivar irreparável dano à integridade do Réu.

Secundus, porque, além de malferir direitos individuais do Réu, a remoção do espaço desejado não apenas afetaria um sujeito, mas um contingente de famílias, atirando-as no limbo da indignidade de serem despidas de suas residências para lugar nenhum. Isso tudo, sem oportunizar, ainda, o ingresso da Fundação Palmares ao feito como parte legitimamente interessada que é, nulificando o processo e vituperando o contraditório e a ampla defesa. Afinal, tantas famílias não podem ser destituídas de seus lares mediante uma medida preliminar, em sede de cognição sumária, com característica precária e duvidosa de substância verídica, haja vista ser pautada em argumentos unilaterais do Autor, uma vez considerando que o segundo sujeito processual da lide ainda não fora chamado a triangularizar a relação. Cumpre lembrar o disposto no artigo 226 da Carta Cidadã, cuja dicção estabelece que “a família, base da sociedade, tem especial proteção do Estado”. Que proteção especial seria essa, se o Estado perpetrasse a remoção liminar da inicial?

Tertius, porque recaindo tal medida sobre as famílias, violados estarão, além do direito à moradia, os direitos fundamentais das crianças desses lares. Infantes estes que o Estado tem o dever de zelar pela segurança e preservação da integridade física, mental e moral, conforme a Lei nº 8.069/1990. Uma ruptura de vínculos sociais e educacionais dos menores seria irremissivelmente traumática e contraditória aos deveres do Estado. A Carta Magna, em seu artigo 227, estabelece ser também obrigação do Estado zelar pela criança e pelo adolescente, colocando-os “a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão”. Atirar menores ao vazio por comezinha razão de suposta propriedade, decerto, é um paradoxo odioso.

In fine, pelo expendido, não é pequena a violência assacada contra os direitos constitucionais do coletivo da Associação dos Remanescentes do Quilombo de São Francisco do Paraguaçu, e do Réu aí incluído, que serão avassalados com o deferimento da liminar. Seria como rasgar a Constituição ou desprezar as normas nela inseridas, que asseguram tantos direitos imprescindíveis à vida humana numa qualidade decente. Tal desrespeito por causa de uma eventual decisão de um Juízo singular poria abaixo a efetividade da proteção constitucional. Ocorre que a Constituição não é um ideário, não se resume a um museu de princípios tampouco se presta a um ideário; exige, pois, efetividade[9]. Assim, mera liminar não é apta a remover famílias inteiras de seu locus vivendi.

Destarte, nessa linha de raciocínio final, parece adequada a bem-vinda chegada do questionamento oitavo: é a comunidade em tela quilombola? Respondemos com outra pergunta: quem possuiria a melhor posição para afirmar? Quem teria essa pretensão expert? Seriam os operadores do Direito, para quem, cujo pedantismo por conhecer as leis, é dado saber a identidade de um grupo? Seria o Autor, que afirma veementemente e de modo deselegante ser a Fundação Palmares um “arremedo”? É possível creditar ao profissional antropólogo uma ajuda primaz em levar sua expertise à lide e aclará-la frente ao julgador, garantindo sua querida segurança jurídica buscada para julgar.

Certo foi o pronunciamento do INCRA nesse sentido. Ainda assim, não podemos fazer a confusão de conceber ao antropólogo a tarefa de nomear o grupo como “Quilombo”. Muito menos poderia os subscritores desse parecer fazê-lo.

A melhor resposta para esse quesito jaz num elemento de autodefinição do próprio grupo. Ou seja, é o grupo que deve dizer e se definir como quilombola, com base na formação étnica de suas raízes culturais[10]. Ora, se a identidade particular de alguém é criada a partir do olhar para o outro – ideia oriunda da Teoria da Casa dos Espelhos, onde a imagem alheia gera nossa própria imagem – é a vontade de pertencer a um grupo que constituirá a resposta para ser ou não quilombola, visto que o quilombola se une ao seu quilombo pela vontade comum de ser o que é e resistir, buscando sua autonomia e preservando sua raiz.

 Dessa maneira, muito bem se expressa “Sumiu”, membro do Quilombo, ao dizer que ali “é terra de quilombo!”. Dessa forma, só o quilombola, por entender a questão social em que se insere, pode afirmar sua luta, a original subjetividade de seu cerne. E esse fator de autodeterminação é a melhor forma de salvaguardar a memória de um povo historicamente oprimido, que não pertence ao passado, tampouco é peça para museu. É questão social presente.

 O reconhecimento da identidade quilombola do grupo repercute em efeitos para a posse e à propriedade. À posse, porquanto trazer uma visão do território litigado como espaço de preservação histórica da coletividade, onde tradição e memória constituem marcos estruturais da vida desse grupo e de cada sujeito a ele pertencente[11].

Para a propriedade, o reconhecimento quilombola repercute na condição imanente desse coletivo em existir pela terra. A propriedade aqui é mais do que adstrita à territorialidade, mas também inerente a conceitos mais abstratos e igualmente de valores estimados pela força da preservação, tais como as manifestações culturais do grupo – o samba, a língua, os ditados, os conhecimentos medicinais, os costumes.

Destarte, extrapola a esfera da utilização da propriedade meramente para multiplicar finanças – como quer o Autor, ao dizer que precisa da terra para obter renda. O Réu carece da propriedade e dela vem se utilizando para viver, para manter sua história preservada no tempo e na memória do seu povo[12].

A propriedade tal como na forma utilizada pelo autor, voltada para a proliferação do seu capital, viola a dignidade pessoal de milhões de despossuídos, e revela descumprimento visível das funções sociais do espaço físico[13] - diferente do Réu, que, com o seu povo quilombola, reduz a fome de um grupo e satisfaz a necessidade de moradia dos seus membros. Muito bem pontuada é a explanação do Sr. Altino, novamente, ao perceber que na terra do Autor tem postes, saneamento e tudo mais. Isso se dá pela política estatal, a qual tende a dificultar a sedimentação dos grupos os quais considera marginalizados, a fim de força-los a sair ou não auxiliar seu enraizamento no local, contrário aos projetos das classes elitistas[14].

Diante das razões suso escandidas, estão presentes muitos direitos fundamentais que podem ser utilizados para a defesa do coletivo quilombola com fito de embasar eventual garantia de manutenção da posse, como perguntado pelo terceiro quesito nos trazido – e muito importante dentre todos, razão pela qual deixamos para agora abordá-lo.

Prima-se pelos dispositivos constitucionais retromencionados, garantidores do direito à moradia, da assistência familiar, do contraditório e do devido processo legal a impedir a concessão da liminar, da função social e da dignidade da pessoa humana.

Destaque-se, ainda, a proteção aos valores artísticos e culturais do povo quilombola, protegidos pelo parágrafo primeiro do artigo 215 da CRFB, que imputa ao Estado a responsabilidade de proteger “as manifestações das culturas populares, indígenas e afro-brasileiras, e das de outros grupos participantes do processo civilizatório nacional.” Com base nisso, conquanto entendimento engessado que se possa ter da lei, entendemos que a cultura, bem abstrato da identidade popular, é sim elemento a ser resguardado pelos institutos possessórios, uma vez que é bem jurídico indispensável à vida humana e passível de proteção jurídica – impossível não lembrar da sabedoria popular de D. Arlinda, ao ensinar preces de melhora à saúde.

Os direitos humanos e constitucionais que se verificam na realidade do coletivo quilombola são instrumento de defesa aos quais merece ser dada a legítima efetividade. O artigo 68 dos Atos das Disposições Constitucionais Transitórias é preceito que precisa ser lembrado nessa lide para que se faça valer sua intemerata dicção, afastando oportunos proprietários de terra que se valem de títulos para usurpar terrenos de quem já os possui, mas não registrados. O que nem por isso lhes tira o direito garantido escudado pelo artigo 68 dos ADCT. Meros papéis em confronto com uma realidade de uma ocupação social de vidas, é pouco demais para se sobrepor. Essa história de se apropriar de terras alheias, pouco a pouco, tomando o território de povos historicamente oprimidos e se utilizando do aparato judicial para formalizar essa conduta, como faz o Autor, é antiga.

O poema presente no preâmbulo desse pronunciamento não é à toa. Traz em sua estrutura o mesmo sentido visto pela lógica capitalista do lucro fácil pelo intento exploratório sobre terras das minorias. Uma atividade a qual é feita minuciosamente a passos pequenos para não chamar atenção, e que, ao final, desfecha uma devastação no modo de vida de povos marginalizados. O eu-poético deixou-se abater pela sua inércia. O povo quilombola de São Francisco do Paraguaçu não. É um povo que reage e tem razão de agir. Tem idôneo motivo amparado pelo Direito e Justiça de se negar a desocupar a terra em que vive há muito tempo e utiliza cumprindo como manda a Carta Régia, na medida em que alimenta pessoas, cuida de suas moradias, oferta o acesso à terra e mantém acesa a chama fulgurante da cultura, da negritude e da beleza artística de uma manifestação remanescente dos afrodescendentes, arquitetos da identidade nacional; pais de todos nós.

Em arremate à fundamentação, trago à baila memorável trecho do saudoso José Saramago, sobre as peculiaridades dos conflitos da terra frente aos desmandos das elites:

Estavam os habitantes nas suas casas ou a trabalhar nos cultivos, entregue cada um aos seus afazeres e cuidados, quando de súbito se ouviu soar o sino da igreja. Naqueles piedosos tempos (estamos a falar de algo sucedido no século XVI) os sinos tocavam várias vezes ao longo do dia, e por esse lado não deveria haver motivo de estranheza, porém aquele sino dobrava melancolicamente a finados, e isso, sim, era surpreendente, uma vez que não constava que alguém da aldeia se encontrasse em vias de passamento. Saíram portanto as mulheres à rua, juntaram-se as crianças, deixaram os homens as lavouras e os mesteres, e em pouco tempo estavam todos reunidos no adro da igreja, à espera de que lhes dissessem a quem deveriam chorar. O sino ainda tocou por alguns minutos mais, finalmente calou-se. Instantes depois a porta abria-se e um camponês aparecia no limiar. Ora, não sendo este o homem encarregado de tocar habitualmente o sino, compreende-se que os vizinhos lhe tenham perguntado onde se encontrava o sineiro e quem era o morto.

"O sineiro não está aqui, eu é que toquei o sino", foi a resposta do camponês.

"Mas então não morreu ninguém?", tornaram os vizinhos, e o camponês respondeu:

"Ninguém que tivesse nome e figura de gente, toquei a finados pela Justiça porque a Justiça está morta."

Que acontecera? Acontecera que o ganancioso senhor do lugar (algum conde ou marquês sem escrúpulos) andava desde há tempos a mudar de sítio os marcos das estremas das suas terras, metendo-os para dentro da pequena parcela do camponês, mais e mais reduzida a cada avançada. O lesado tinha começado por protestar e reclamar, depois implorou compaixão, e finalmente resolveu queixar-se às autoridades e acolher-se à proteção da justiça. Tudo sem resultado, a espoliação continuou. Então, desesperado, decidiu anunciar urbi et orbi (uma aldeia tem o exato tamanho do mundo para quem sempre nela viveu) a morte da Justiça. Talvez pensasse que o seu gesto de exaltada indignação lograria comover e pôr a tocar todos os sinos do universo, sem diferença de raças, credos e costumes, que todos eles, sem excepção, o acompanhariam no dobre a finados pela morte da Justiça, e não se calariam até que ela fosse ressuscitada. Um clamor tal, voando de casa em casa, de aldeia em aldeia, de cidade em cidade, saltando por cima das fronteiras, lançando pontes sonoras sobre os rios e os mares, por força haveria de acordar o mundo adormecido... Não sei o que sucedeu depois, não sei se o braço popular foi ajudar o camponês a repor as estremas nos seus sítios, ou se os vizinhos, uma vez que a Justiça havia sido declarada defunta, regressaram resignados, de cabeça baixa e alma sucumbida, à triste vida de todos os dias. É bem certo que a História nunca nos conta tudo... (SARAMAGO, José. Palestra proferida pelo autor no Fórum Mundial Social – Porto Alegre, 2002.)

E que Justiça será essa se o povo quilombola de São Francisco do Paraguaçu for expulso de seu território? Que tipo de profissionais surgem de nossa sociedade que dizem, tal como fez o vistor judicial, ao alegar estar o Réu com má-fé ao contratar? Logo o Réu, pessoa vulneravelmente desprovida da astúcia para o engodo legal da má-fé! Ao caso em comento, assim como na parábola brilhante de Saramago, falta às minorias a presença de uma tutela jurisdicional desarmada para ouvi-los; que não aponte preconceituosamente seus ditames contra a face dos leigos induzida por questões da formalidade.

Para isso servem também os direitos humanos: para nos mostrar que, ao lidarmos com o outro, lidamos com humanos, sujeitos de direito. E o povo Quilombola de São Francisco do Paraguaçu detém, possui e é proprietário de todos eles.

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Sobre o autor
Lucas Correia de Lima

Possui graduação em Direito pela Universidade Estadual de Feira de Santana (2015). Pós-Graduado em Direito Processual Civil pela Faculdade Damásio (2017). Mestre pelo Instituto de humanidades, Artes e Ciências Professor Milton Santos, da Universidade Federal da Bahia (2019). Doutorando em Direito pela UFBA. Foi advogado do Município de Ipirá no ano de 2015, aprovado em primeiro lugar na seleção, saindo das atividades para exercer a função de Conciliador do Tribunal de Justiça do Estado da Bahia (2015-2016), também aprovado em primeiro lugar. Articulista com obras publicadas em variados boletins informativos e revistas jurídicas, em meio físico e eletrônico. Membro associado do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais (IBCCRIM). Membro da Associação Brasileira de Direito Educacional (ABRADE). Membro colaborador do Instituto Brasileiro de Administração do Sistema Judiciário (IBRAJUS). Professor da Uninassau, na disciplina de Direito das Obrigações e Tópicos Integradores II. Integra atualmente o Tribunal de Justiça. Conferencista, pesquisador e palestrante. Tem experiência na área de Direito, atuando principalmente nos seguintes temas: sociedade, universidade, políticas afirmativas, negro, mulher, educação, crime, lei e violência.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

LIMA, Lucas Correia. Parecer:caso quilombola de São Francisco do Paraguaçu. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 21, n. 4607, 11 fev. 2016. Disponível em: https://jus.com.br/pareceres/45377. Acesso em: 2 nov. 2024.

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