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Sobre a justiça na imposição de sanções tributárias.

Análise à luz da lei do ICMS do Estado de São Paulo

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01/03/2023 às 13:40
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12. Da responsabilidade do sujeito passivo por infrações tributárias

Pelo texto da norma do art. 136 do CTN, parece que o legislador federal adotou a regra da responsabilidade objetiva. Com base nessa interpretação, o legislador paulista não previu a possibilidade de o contribuinte ter cometido o fato descrito no antecedente da norma geral e abstrata sancionadora sem culpa. Com efeito, na Lei 6.374, há infrações em que o dolo é ínsito (vide exemplos no item 9) e, em razão do dolo, a base de cálculo da multa é o valor da operação ou da prestação, o que torna a multa mais gravosa. Nas demais infrações, por apreço ao “princípio da praticidade”, mas com prejuízo para a realização da “justiça fiscal”, o legislador não se preocupou em prever:

  • multa mais gravosa para a conduta dolosa do que para a culposa;

  • não-aplicação de multa no caso de o sujeito passivo demonstrar que agiu sem culpa.53

Retomemos o exemplo dado no item 9, de o contribuinte ter sido acusado de creditar-se de imposto decorrente de entrada de mercadoria no estabelecimento, acompanhada de documento que não atende às condições previstas no item 3 do § 1º do artigo 36 (conduta descrita no antecedente da norma geral e abstrata sancionadora que está na alínea “c” do inc. II do art. 85 da Lei 6.374/1989). Ainda que o contribuinte demonstre que não agiu com culpa – ou seja, que tomou todas as cautelas para se certificar da existência e da idoneidade da empresa vendedora –, não há possibilidade de, na lavratura de Auto de Infração e Imposição de Multa, o Auditor Fiscal da Receita Estadual exigir apenas o imposto, ou no caso de o lançamento ser impugnado, o órgão julgador, monocrático ou colegiado, cancelar a multa, mas manter o imposto. Ou o lançamento é julgado procedente, com a mantença de multa e imposto, ou improcedente, com o cancelamento de ambos.

A Lei 6.374 apresenta grande variedade de condutas infracionais típicas que implicam falta de pagamento do imposto. Na Lei Federal 9.430, as condutas infracionais típicas são mais genéricas e, portanto, em menor número. Nem por isso a lei estadual é mais justa do que a federal, pois, salvo nos casos em que o dolo é ínsito à conduta do sujeito passivo, a lei estadual pune infrações dolosas ou culposas com o mesmo rigor. Ademais, em razão do maior detalhamento das condutas infracionais típicas, maior é a probabilidade de o agente fiscal aplicar norma geral e abstrata sancionadora incorreta, o que causa geralmente o cancelamento da multa e do imposto exigidos. Isso não ocorre, porém, com a lei federal, em que:

  1. não demonstrada a ocorrência de sonegação, fraude ou conluio, o auditor fiscal admite que o sujeito passivo se houve com culpa e a ele impõe multa com percentagem de 75% (setenta e cinco por cento);

  2. o órgão julgador, convencendo-se de que o dolo do sujeito passivo não restou demonstrado, reduz de 150% (cento e cinquenta por cento) para 75% (setenta e cinco por cento) a percentagem de multa imposta pelo auditor fiscal, sem que haja necessidade de lavratura de novo auto de infração.


13. Da aplicação de princípios e normas do Direito Penal ao Direito Tributário Sancionador

De acordo com Paulo Roberto Coimbra Silva (2009), “’princípios gerais da repressão’ são o resultado da somatização (sic) normativa dos valores e princípios oriundos, em sua grande maioria, do Direito Penal, Direito de Processo Penal, que pairam sobre toda a ordem jurídica, que não restringem as suas influências apenas àqueles ramos onde surgiram, mas irradiam tais influências onde quer que se manifeste alguma potestade punitiva do Estado, seja em âmbito judicial, seja em âmbito administrativo”.

O Autor denomina de Direito Tributário Sancionador o capítulo específico do Direito Tributário dedicado ao estudo das sanções impostas aos ilícitos estritamente fiscais, ou seja, não delituosos. Ressalta a importância da necessidade de demarcação da “natureza jurídica” da norma violada, pois é ela que determina o regime jurídico aplicável a determinada sanção. Assim, se a norma tiver natureza jurídica penal, ela estará jungida a todos os limites e princípios do Direito Penal; se tiver natureza jurídica tributária, estará sujeita a todos os limites e princípios do “jus tributandi”. Observa que “natureza jurídica” e “função” da norma sancionadora não se confundem. “Função” não é decisiva para a identificação da natureza jurídica, uma vez que toda norma sancionadora tem funções preventiva, repressiva, didática, indenizatória.

Segundo Silva, há três correntes para a identificação da natureza jurídica da norma sancionadora. Pela primeira, as sanções tributárias têm natureza jurídica administrativa. São normas de autoproteção postas à disposição da Administração Pública, inclusive a Fazendária. Porque impostas pela própria Administração Pública, essas normas são chamadas de administrativas, daí o nome Direito Administrativo Sancionador. Trata-se de corrente superada, sobretudo na Europa, porque se as sanções tributárias tivessem natureza administrativa, elas não estariam sujeitas aos princípios e normas gerais da repressão e às limitações impostas ao poder de tributar.

Pela segunda corrente, prevalecente na Europa, as sanções tributárias têm natureza jurídica do Direito Penal. Principais fundamentos dessa corrente são a unicidade do poder punitivo do Estado e a identidade ontológica do ilícito e sanção tributários com o ilícito e sanção penais. Há óbices, porém, para adoção dessa corrente no Brasil. De fato, se as normas tributárias sancionadoras tivessem natureza penal:

  1. elas estariam restritas à competência legislativa da União, mas a competência para definição das infrações estritamente fiscais acompanha a repartição da competência tributária;

  2. elas estariam jungidas ao princípio da reserva jurisdicional;

  3. haveria prevalência da intransmissibilidade da sanção, que não ocorre no direito tributário quando há sucessão de empresa;

  4. estariam sendo desprezados os limites quantitativos e qualitativos, que são específicos e distintos entre as sanções de natureza penal e as de natureza tributária.

Em razão de tais dificuldades, a corrente adotada no Brasil é que as sanções tributárias têm natureza jurídica de Direito Tributário. Assim, a natureza jurídica do ato ilícito, pressuposto da aplicação da sanção, é que determina a natureza jurídica da sanção. Se a infração for de natureza tributária, estará sujeita às limitações ou princípios do poder de tributar, como, por exemplo, a vedação ao confisco; no Direito Penal, porém, o confisco é efeito da aplicação da pena. Por isso, é que se fala em Direito Tributário Sancionador. Essa corrente:

  1. permite o reconhecimento de regime jurídico próprio, aplicando-se ao Direito Tributário Sancionador princípios constitucionais tributários, como o da vedação ao confisco, o da isonomia, o da capacidade contributiva;

  2. não impede o entrelaçamento com os princípios e as normas gerais da repressão, tais como a identidade substancial e estrutural, a unicidade do Direito e do ilícito; há fatores de aproximação entre as sanções tributárias e as sanções penais: a unicidade do Direito (o ilícito é sempre a violação de uma norma); o caráter tutelar (há um bem jurídico tutelado); a responsabilidade subjetiva; e a identidade funcional e teleológica.

Conclui o Autor:

a) as sanções mais adequadas para reprimir as infrações tributárias são as pecuniárias;

b) princípios do Direito Penal foram incorporados ao Direito Tributário:

  • de forma expressa: princípio da legalidade, retroatividade benéfica, interpretação mais favorável ao acusado, denúncia espontânea – tem requisitos do arrependimento posterior com os efeitos do arrependimento eficaz;
  • de forma implícita: princípio da irretroatividade da lei mais gravosa, princípio da verdade material; princípio da insignificância ou da bagatela; princípio da proporcionalidade, a regra do concurso de infrações ou das infrações continuadas;
  • com conformações para sua adaptação: retroatividade benigna – atinge a coisa julgada no Direito Penal, mas não no Direito Tributário –, denúncia espontânea, a culpabilidade – não há responsabilidade objetiva no Direito Tributário, mas sim presunção relativa de culpa do acusado –, intransmissibilidade da sanção;

c) a potestade punitiva da Administração Pública no Brasil, malgrado os protestos de que estaria sendo usurpada competência própria do Poder Judiciário, constitui uma realidade irreversível.

Com base nessas considerações, passaremos a examinar a possibilidade e a conveniência de se utilizar princípios e normas gerais da repressão na interpretação e na elaboração de normas sancionadoras da lei do ICMS paulista.


14. Da necessidade de uniformização de normas gerais e abstratas sancionadoras entre os entes tributantes

A multiplicidade de entes tributantes de mesma competência constitucional (26 Estados e o Distrito Federal; e mais de 5.500 Municípios e o Distrito Federal) torna imprescindível maior uniformização e coerência na edição, pelo respectivo parlamento (Assembleia Legislativa e Câmara Municipal), de normas gerais e abstratas sancionadoras aplicáveis aos tributos de competência desses entes tributantes. É possível afirmar: quanto maior o número de entes tributantes de mesmo nível, mais díspares serão os critérios adotados na aplicação de sanções tributárias, ainda que normas de lei mais bem estruturada posta por determinado ente tributante sirvam de inspiração para demais entes tributantes de mesmo nível.

Por tais razões, endossamos a posição adotada por Paulo Roberto Coimbra Silva (2011, p. 172):

“A ausência de limites quantitativos precisos, em sede constitucional, para previsão de sanções imputáveis às infrações tributárias, aliadas à alta dose de subjetividade e às possíveis divergências eventualmente identificáveis entre os diversos legisladores ordinários – federal, distrital, estaduais e municipais – reforça a tese daqueles que sustentam, com sobra de razões, a conveniência da edição de uma norma geral disciplinadora da potestade tributária sancionadora dos entes federados. No Brasil, essa norma geral, uma lex legum de observância cogente, evitaria que os mais de 5.000 (cinco mil) entes tributantes disciplinem o assunto de forma discrepante, pouco sistemática e, não raro, sem a observância dos diversos balizadores aplicáveis à espécie”.


15. O Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS) que está na Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 110/2019

Tema atual muito discutido no Parlamento e no meio empresarial é a “reforma tributária”. Mediante:

  1. diminuição do número de tributos sobre o consumo de bens ou prestação de serviços;

  2. redução da quantidade e da complexidade de regras postas para escrituração, apuração e recolhimento desses tributos, em especial o ICMS;

  3. redução da sonegação fiscal com a transferência, do ente tributante para o adquirente do bem ou tomador de serviços, do ônus de arcar com o “crédito espúrio” do IBS (o “calcanhar de Aquiles” dos impostos não-cumulativos);54

pretende-se reduzir o “custo Brasil”, atrair mais investimentos de multinacionais, gerar mais empregos e tornar o país mais competitivo no cenário internacional.

Apesar da resistência inicial de Estados e Municípios, temerosos de perder arrecadação, o eficiente trabalho do Relator da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 110, Senador Roberto Rocha, aumentou consideravelmente as chances de ela ser aprovada, não em 2022 porque é ano de eleições.

Como a previsão é do Imposto sobre Operações com Bens e Serviços (IBS) ser instituído por lei complementar, vislumbramos ótima oportunidade de se uniformizar regras jurídicas entre os diversos entes tributantes, tanto para as que prescrevam deveres instrumentais quanto para as que prescrevam multas por descumprimento desses deveres.


16. Da importância do desígnio do sujeito passivo

Algumas vezes, para praticar infração a que corresponde determinado resultado, o sujeito passivo deve antes praticar outra infração. A infração que atinge o resultado é a “infração fim”; a praticada antes, a “infração meio“. Quando isso ocorre em infrações penais, há a “consunção”.

De acordo com Damásio Evangelista de Jesus (2014, p. 155),

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“Ocorre a relação consuntiva, ou de absorção, quando um fato definido por uma norma incriminadora é meio necessário ou normal fase de preparação ou execução de outro crime, bem como quando constitui conduta anterior ou posterior do agente, cometida com a mesma finalidade prática atinente àquele crime. Nesses casos, a norma incriminadora que descreve o meio necessário, a normal fase de preparação ou execução de outro crime, ou a conduta anterior ou posterior, é excluída pela norma a este relativa. ‘Lex consumens derogat legi consumptae’.

O comportamento descrito pela norma consuntiva constitui a fase mais avançada na concretização da lesão ao bem jurídico, aplicando-se, então, o princípio de que ‘major absorbet minorem’. Os fatos não se apresentam em relação de espécie e gênero, mas de ‘minus’ a ‘plus’, de conteúdo a continente, de parte a todo, de meio a fim, de fração a inteiro”.

Segundo Asúa, apud Damásio E. de Jesus (2014, p. 155),

“a consunção pode produzir-se:

  1. quando as disposições se relacionam de imperfeição a perfeição (atos preparatórios puníveis, tentativa –consumação);

  2. de auxílio a conduta direta (partícipe – autor);

  3. de ‘minus’ a ‘plus’ (crimes progressivos);

  4. de meio a fim (crimes complexos);

  5. de parte a todo (consunção de fatos anteriores e posteriores)”.55

Nos exemplos seguintes, há consunção de infração tributária que se produz “de meio a fim” e “de parte a todo” (consunção de fatos posteriores):

a) ao constatar crédito de ICMS decorrente de entrada de mercadoria no estabelecimento, fundado em documento que não atende às condições previstas no item 3 do § 1º do art. 36 da Lei 6.374/1989 (documento inidôneo), o fisco acusa o contribuinte de "ter se creditado de imposto, decorrente de entrada de mercadoria no estabelecimento, fundado em documento que não atende às condições previstas no item 3 do § 1º do art. 36 da Lei 6.374/1989";

em geral, a infração não é cumulada com as de:

a.1) “ter recebido mercadoria desacompanhada de documentação fiscal”, infração anterior que se infere da constatação da inidoneidade do documento (a teor do disposto no inc. I do art. 184 do RICMS/2000),56 “infração meio” que é absorvida pela “infração fim”, que é escriturar crédito indevido do imposto;

a.2) “ter entregado GIA com soma de créditos do ICMS superior à correta”, “fato posterior” que decorre logicamente da escrituração de crédito indevido do imposto, restando aquela infração absorvida por esta;

em Autos de Infração e Imposição de Multa, o fisco geralmente exige apenas a multa por escrituração de crédito indevido do imposto.

b) ao constatar emissão, em determinado período, de documentos fiscais relativos a saídas tributadas mas que não foram escriturados regularmente no livro Registro de Saídas, o fisco acusa o contribuinte de "ter deixado de pagar o ICMS no período de ... a ..., por emissão de documentos fiscais relativos a saídas tributadas, mas que não foram escriturados regularmente no livro Registro de Saídas";

a infração não é cumulada com a de “ter entregado GIAs com soma de débitos inferior à correta”, “fatos posteriores” que decorrem logicamente da infração de falta de pagamento do imposto, por escrituração não regular de documentos fiscais no livro Registro de Saídas, restando a infração de entrega de GIAs com informação econômico-fiscal incorreta absorvida pela infração de falta de pagamento do imposto;57

em autos de infração e imposição de multa, o fisco exige apenas a multa por falta de pagamento do imposto, por escrituração não regular de documentos fiscais no livro Registro de Saídas.

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Sobre o autor
Wagner Pechi

Agente Fiscal de Rendas do Estado de São Paulo aposentado. Ex-Delegado Tributário de Julgamento de São Paulo. Ex-integrante do Tribunal de Impostos e Taxas. Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo.

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

PECHI, Wagner. Sobre a justiça na imposição de sanções tributárias.: Análise à luz da lei do ICMS do Estado de São Paulo. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 28, n. 7182, 1 mar. 2023. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/101433. Acesso em: 18 nov. 2024.

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