Resumo: Trata-se do voto proferido pelo Ministro Luiz Fux na nona sessão extraordinária da primeira turma do Supremo Tribunal Federal, referente à Ação Penal 2668. O tema central é a análise aprofundada das preliminares processuais e do mérito das acusações de organização criminosa, tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito, golpe de Estado e dano qualificado, imputadas a oito réus, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro. O voto do ministro diverge dos relatores, focando na incompetência do STF, em nulidades processuais e em uma interpretação técnica e restritiva dos tipos penais.
1. A Missão do STF e a Responsabilidade do Magistrado Criminal
A missão precípua do Supremo Tribunal Federal (STF) é a guarda da Constituição, o fundamento inabalável do Estado Democrático de Direito. Dessa ordem constitucional irradia a promessa de igualdade entre todos os cidadãos perante a lei, sem distinções de identidade, origem social, condição econômica ou posição política. Cabe aos magistrados zelar pela integridade das normas constitucionais e legais na vida social, de modo que cada brasileiro reconheça na Constituição uma autoridade viva, respeitada e eficaz, que deve funcionar como ponto de partida, caminho e porto de chegada para todas as indagações nacionais.
A jurisdição, como atividade típica do STF, diferencia-se fundamentalmente das funções legislativa e executiva. Ao contrário dos poderes políticos, não compete ao Judiciário realizar um juízo sobre o que é bom ou ruim, conveniente ou inconveniente. A sua tarefa é afirmar o que é constitucional ou inconstitucional, legal ou ilegal, sempre sob a perspectiva da Carta de 1988 e das leis brasileiras. Trata-se de uma missão que exige objetividade, rigor técnico e minimalismo interpretativo, a fim de não confundir o papel do julgador com o do agente político. Como ensina o professor Daryl Levinson, a legitimidade da jurisdição repousa justamente na capacidade de seus juízes produzirem decisões qualitativamente distintas daquelas emanadas pelos demais poderes.
Essa mesma cautela e responsabilidade devem orientar a atuação do Poder Judiciário na esfera criminal. A Constituição delimita, de forma precisa e restrita, as hipóteses em que o STF atua originariamente no processo penal, tratando-se de uma competência excepcionalíssima. Ao exercê-la, a Corte se aproxima da nobre rotina dos juízes criminais de todo o país, conduzindo um processo que tem como finalidade maior assegurar a cada réu a plenitude do contraditório e da ampla defesa. Os princípios que regem o processo penal são os mesmos em todas as instâncias, encontrando sua razão de ser na dignidade humana e na busca pela verdade judicial.
Nesse contexto, a maior responsabilidade da magistratura se revela em uma dupla capacidade: ter a firmeza para condenar quando houver certeza e, mais importante, ter a humildade para absolver quando houver dúvida. Essa responsabilidade se alicerça na racionalidade, afastada do clamor social e político, e reafirma diante da sociedade que a Constituição vale para todos e protege a todos, sobretudo no campo sensível da jurisdição criminal.
Cada decisão do Supremo projeta-se para além das partes do processo, irradiando efeitos que orientarão casos futuros em mais de 90 tribunais do país. A Corte atua, portanto, como um paradigma de interpretação constitucional e um farol de coerência jurídica, sendo a bússola de legitimidade para uma sociedade plural que clama por justiça.
2. Preliminares
2.1. A Incompetência Absoluta do Supremo Tribunal Federal
Uma das questões processuais mais cruciais levantadas no julgamento foi a da competência do Supremo Tribunal Federal (STF) para processar e julgar a ação penal. O argumento central, sustentado de forma veemente, é que a Corte seria absolutamente incompetente, uma vez que, entre os denunciados, não há nenhuma autoridade com a prerrogativa de foro, um pressuposto indispensável para a atuação originária do Tribunal em matéria criminal.
O Artigo 102, inciso I, alínea 'b', da Constituição da República é taxativo ao definir o rol de autoridades que, em infrações penais comuns, devem ser processadas e julgadas pelo STF. Essa competência, estabelecida em razão da pessoa e da função que ela exerce (ratione personae), é, por sua natureza, absoluta e inderrogável pela vontade das partes. Conforme ensinam doutrinadores clássicos como Calamandrei e Chiovenda, a obediência às regras estritas de competência é um dos pilares do Estado de Direito, e a competência constitucional, por ser excepcionalíssima, não pode ser flexibilizada.
O núcleo do argumento reside na violação do princípio do juiz natural. Os fatos imputados aos réus ocorreram entre 2020 e 8 de janeiro de 2023. Durante esse período, a jurisprudência pacífica do STF, consolidada na Ação Penal 937, estabelecia que, uma vez cessado o cargo público, a prerrogativa de foro deixaria de existir. Os réus neste processo perderam seus cargos muito antes do surgimento do entendimento atual da Corte sobre o tema, que é considerado recentíssimo.
Aplicar uma tese jurisprudencial mais nova e expansiva para manter a competência do Tribunal, muito tempo após a prática dos supostos crimes, gera sérios questionamentos sobre a segurança jurídica e ofende diretamente a garantia do juiz natural. Esta garantia, fundamental em um ordenamento democrático, assegura a imparcialidade do julgador, evitando que sua designação ocorra por finalidades alheias ao processo.
A gravidade da questão é acentuada ao se recordar que o próprio STF já anulou processos complexos por mera incompetência relativa. No presente caso, trata-se de uma incompetência absoluta, um vício processual considerado insuperável, que impõe a declaração de nulidade de todos os atos decisórios praticados. Mantendo a coerência com o voto proferido na fase de recebimento da denúncia, a conclusão reafirma a interpretação restritiva da prerrogativa de foro, declarando a incompetência absoluta do Supremo Tribunal Federal para o julgamento deste processo.
2.2. A Competência Originária do Plenário
Superada a discussão sobre a competência do Supremo Tribunal Federal (STF), uma segunda preliminar de natureza igualmente absoluta foi levantada: a incompetência da Primeira Turma para julgar o caso, defendendo-se que tal atribuição caberia exclusivamente ao Plenário da Corte. O argumento parte de uma premissa lógica: se o processo se mantém no STF em razão da figura de um ex-presidente, então ele deve ser julgado pelo órgão máximo do Tribunal, que historicamente detém essa competência.
A lógica é clara: se a condição de ex-presidente não justifica a prerrogativa de foro, o caso deveria tramitar na primeira instância. Contudo, se a Corte decide julgar o réu como se presidente fosse, deve seguir as regras regimentais aplicáveis ao cargo. O Artigo 5º do Regimento Interno do STF, mesmo após sucessivas emendas, sempre manteve a competência do Plenário para processar e julgar, originariamente, o Presidente da República em crimes comuns.
Rebaixar essa competência para uma das Turmas significaria silenciar as vozes de ministros que compõem o colegiado completo, enfraquecendo a deliberação em um caso de máxima relevância institucional. A própria Constituição Federal, ao se referir à composição da Corte com seus onze membros, remete à ideia do Plenário como sua principal instância decisória.
Adicionalmente, invoca-se o princípio da perpetuatio jurisdictionis (perpetuação da jurisdição) por conexão. O primeiro processo relacionado aos mesmos fatos, a Ação Penal 1060, foi julgado no Plenário, mesmo envolvendo um réu sem prerrogativa de foro. A doutrina e a jurisprudência apontam que, se um processo se inicia em determinado órgão jurisdicional, os demais, a ele conectados, devem ali permanecer.
Portanto, a questão se resolve em duas alternativas: ou o processo é remetido à primeira instância por incompetência absoluta do STF, ou, caso a Corte se declare competente, o julgamento deve ser deslocado para o Plenário, sob pena de nulidade de todos os atos praticados pela Turma por, também neste caso, incompetência absoluta.
2.3. Cerceamento de Defesa e o Fenômeno do "Data Dump"
Uma das preliminares mais contundentes e modernas analisadas no voto diz respeito ao cerceamento de defesa, um pilar do devido processo legal. A garantia do contraditório e da ampla defesa, consagrada em todas as Constituições brasileiras e em tratados internacionais como o Pacto de São José da Costa Rica, assegura ao acusado o direito de conhecer plenamente as provas produzidas contra si e de dispor do "tempo e dos meios adequados para a preparação da sua defesa".
No caso em questão, essa garantia foi violada por um fenômeno contemporâneo conhecido no direito como "data dump" ou "document dumping". Trata-se da disponibilização tardia e desorganizada de um volume colossal de dados, um verdadeiro "tsunami de informações" que, na prática, inviabiliza uma análise minimamente razoável por parte da defesa.
Os números do processo são superlativos: a Polícia Federal apreendeu 1.200 equipamentos eletrônicos e extraiu 255 milhões de mensagens, gerando um acervo probatório de 70 terabytes (TB) — um volume equivalente a bilhões de páginas. Contudo, a decisão que deferiu o acesso da defesa à íntegra desse material só foi proferida mais de um mês após o recebimento da denúncia. Pior, os links para acesso ao repositório digital foram enviados apenas cinco dias antes do início da oitiva das testemunhas, um prazo manifestamente insuficiente.
Além do tempo exíguo, o material foi entregue sem qualquer organização, com pastas e arquivos sem nomenclatura adequada ou um índice que permitisse uma pesquisa efetiva. O próprio ministro relator do voto confessou a "extrema dificuldade" que teve para elaborar sua análise diante da imensidão desorganizada de dados, ressaltando o quão mais árdua seria a tarefa para as defesas. Essa prática, como aponta o professor Gustavo Badaró, configura uma clara violação à garantia da ampla defesa.
A jurisprudência, inclusive de instâncias inferiores, já reconheceu o cerceamento de defesa em situações semelhantes, como em um caso na Justiça Federal em que uma ação foi trancada devido a um "data dump" de 4 TB — volume quase 18 vezes menor que o do presente processo. O próprio STF, na Reclamação 80.133, já decidiu que a realização de audiências sem franquear à defesa o acesso integral ao material probatório e um prazo razoável para sua análise configura "manifesto cerceamento de defesa".
Como afirmou o filósofo Sêneca, "quem decide o que quer que seja, sem ouvir a outra parte, mesmo que decida com justiça, efetivamente não é justo". Com base nesse princípio milenar e nas garantias constitucionais, a conclusão foi pelo acolhimento da preliminar, declarando a nulidade do processo desde o recebimento da denúncia por violação frontal ao contraditório e à ampla defesa.
2.4. A Validade da Colaboração Premiada de Mauro Cid
Em meio às diversas nulidades processuais apontadas, a validade da colaboração premiada do réu Mauro Cid representou um ponto de convergência, onde o voto se alinhou à posição do relator e do Ministério Público. Apesar de um histórico de críticas ao instituto da delação premiada, a análise do caso concreto levou a uma conclusão pela sua manutenção, fundamentada na evolução do entendimento jurídico e na eficiência do sistema de justiça.
Inicialmente, o acordo de colaboração foi cercado de controvérsias, inclusive com um parecer do próprio Ministério Público que, em um primeiro momento, manifestou-se pelo seu arquivamento. Contudo, o entendimento sobre institutos jurídicos novos progride com o tempo. A mudança de perspectiva foi justificada como uma "manifestação de humildade judicial", um sinal de evolução, pois o Direito não é um museu de princípios, mas um instrumento vivo e dinâmico.
A decisão de validar o acordo foi baseada em uma análise de suas externalidades positivas. Argumentou-se que o colaborador foi confrontado com fatos novos trazidos pela investigação e, nesse processo, não apenas colaborou com a elucidação de tramas complexas, mas também se autoincriminou. A confissão de seus próprios atos, sempre acompanhado de sua defesa, confere um peso de veracidade ao seu depoimento, tornando desproporcional a anulação de todo o acordo por eventuais inconsistências ou hesitações.
Embora as "idas e vindas" de um colaborador possam gerar desconfiança, no caso específico, a colaboração se mostrou um instrumento eficiente para a busca da verdade. As advertências feitas pelo relator ao longo do processo, no sentido de que o descumprimento do pacto poderia levar à sua prisão, foram consideradas parte do procedimento padrão para garantir a seriedade do acordo.
Dessa forma, acolhendo a conclusão do relator e o parecer final do Ministério Público, o voto foi no sentido de validar a colaboração e aplicar ao réu Mauro Cid os benefícios propostos, como a restituição de bens e a garantia de segurança para ele e sua família.
2.5. A Extensão da Suspensão da Ação para Alexandre Ramagem
Uma questão processual específica foi analisada em relação ao réu Alexandre Ramagem, que, por ser deputado federal, goza de imunidade parlamentar. A Primeira Turma já havia suspendido a ação penal contra ele no que tange aos crimes praticados após sua diplomação, como o de dano, em conformidade com uma resolução da Câmara dos Deputados. A defesa, contudo, pleiteou que essa suspensão fosse estendida também para a acusação de organização criminosa.
O argumento central para o acolhimento do pedido reside na natureza jurídica do crime de organização criminosa: trata-se de um delito permanente. Diferente de um crime instantâneo, que se consuma em um único momento, o crime permanente tem sua execução prolongada no tempo. A organização criminosa continua a "ser praticada" a cada dia em que a estrutura delituosa se mantém ativa.
Dessa forma, mesmo que a suposta organização tenha se iniciado antes da diplomação de Ramagem como deputado, a sua conduta criminosa, por essência, se estendeu para dentro do período de seu mandato parlamentar. O crime é considerado único e contínuo, não podendo ser artificialmente dividido em um período anterior e outro posterior à posse no cargo. Como a conduta se prolongou no tempo, ela passou a ser abarcada pela imunidade parlamentar.
Com base nesse entendimento, consolidado na jurisprudência do STF, o voto foi no sentido de acolher a preliminar e estender os efeitos da suspensão da ação penal para abarcar também o crime de organização criminosa. Assim, tanto o processo quanto o respectivo prazo prescricional em relação a Alexandre Ramagem ficam suspensos para todos os delitos até o término de seu mandato.
3. Fundamentos Teóricos do Mérito
3.1. A Legalidade Estrita e a Precisão da Lei Penal
Antes de adentrar na análise de cada crime imputado, o voto estabelece uma robusta base teórica e filosófica que norteia todo o julgamento de mérito. O pilar central dessa fundamentação é o princípio da legalidade estrita, segundo o qual não há crime sem lei anterior que o defina de forma clara e precisa. A conduta do acusado, para ser considerada criminosa, deve se encaixar perfeitamente no tipo penal, na memorável analogia do jurista Evaristo de Moraes, "como uma luva se encaixa na mão".
Recorrendo aos ensinamentos do fundador da ciência penal, Cesare Beccaria, em sua obra clássica "Dos Delitos e das Penas", reforça-se que apenas as leis podem definir os crimes e suas respectivas punições. Ao magistrado, que é parte da sociedade, não é dado o poder de criar ou aumentar castigos, mesmo sob o pretexto do bem público. O juiz deve se ater a um "silogismo perfeito": a lei geral como premissa maior, a ação do acusado como premissa menor e a liberdade ou a pena como consequência lógica. Beccaria advertia sobre o perigo de se "consultar o espírito da lei", pois isso abriria as portas para a torrente de opiniões e para o arbítrio do julgador.
Essa visão é corroborada por juristas modernos como Luigi Ferraioli, que descreve o poder de punir como "o mais terrível e odioso dos poderes". Para limitar essa autoridade e proteger o cidadão contra a arbitrariedade, o direito penal se ancora em garantias fundamentais. A legalidade estrita, formulada no brocardo latino nullum crimen, nulla poena sine lege, produz dois efeitos essenciais:
Garante uma esfera de liberdade: Tudo o que a lei não proíbe é permitido.
-
Assegura a igualdade jurídica: A lei pune fatos, independentemente de quem os tenha cometido, consagrando o Direito Penal do Fato em oposição ao Direito Penal do Autor, que persegue pessoas por suas características ou ideologias.
A interpretação da lei penal, portanto, não pode ser ampliativa ou extensiva em prejuízo do réu. Como adverte o penalista alemão Klaus Roxin, esse tipo de interpretação conduz à "dissolução de limites", fazendo com que elementos essenciais do tipo penal desapareçam. Na lição do mestre brasileiro Nelson Hungria, a lei penal é um "sistema fechado":
Se esse fato escapou à previsão do legislador, isto é, se não corresponde precisamente à parte objetiva e subjetiva a uma das figuras delituosas anteriormente recortadas em abstrato pela lei, o agente não deve contas à justiça repressiva.
Embora o direito se construa sobre pilares morais, ele não se confunde com a moral. Comportamentos eticamente reprováveis ou socialmente repugnantes não justificam, por si sós, a aplicação da sanção penal. A metodologia de interpretação dos tipos penais não é um mero formalismo; sem ela, o que resta é o arbítrio. É a dogmática jurídica que estabelece limites e constrói conceitos, permitindo uma aplicação do direito penal segura, previsível e subtraída da irracionalidade e da improvisação.
4. Análise dos Crimes
4.1. Organização Criminosa Armada
A primeira imputação de mérito analisada foi a de organização criminosa armada, um dos delitos mais graves previstos na legislação brasileira. Aplicando rigorosamente os fundamentos da legalidade estrita, o voto desconstruiu o tipo penal para demonstrar que os fatos, tal como narrados pela própria acusação, não se amoldam às suas exigências técnicas.
A Lei 12.850/2013 define organização criminosa como a associação de quatro ou mais pessoas, estruturalmente ordenada e com divisão de tarefas, que visa obter vantagens mediante a prática de infrações penais cujas penas máximas sejam superiores a quatro anos. Contudo, a doutrina e a jurisprudência, incluindo precedentes do próprio STF, são unânimes em apontar dois elementos essenciais que a distinguem do mero concurso de agentes: estabilidade/permanência e, crucialmente, a finalidade de cometer uma série indeterminada de crimes.
No concurso de agentes, o acordo de vontades se esgota na prática de um ou mais delitos claramente individualizados. Na organização criminosa, o vínculo associativo persiste após a prática de um crime, pois o objetivo do grupo é a reiteração delitiva por tempo indeterminado. A Ação Penal 470, o caso do "Mensalão", é um precedente paradigmático: na ocasião, o STF absolveu os réus da acusação de formação de quadrilha (delito precursor da organização criminosa) por entender que, apesar da gravidade dos crimes de corrupção e lavagem de dinheiro, o plano era para crimes determinados, faltando o requisito da indeterminação.
Ao aplicar essa moldura teórica ao caso concreto, o voto conclui pela manifesta atipicidade da conduta. A própria denúncia narra que a suposta organização teria sido criada com um fim específico e delimitado no tempo e no espaço: cometer os crimes de abolição do Estado Democrático de Direito e golpe de Estado para assegurar a permanência do então presidente no poder. Essa descrição se encaixa na figura do concurso de agentes, mas não preenche o tipo penal de organização criminosa, pois carece do elemento essencial da indeterminação.
Ademais, a acusação de que a organização era armada também foi rechaçada. A lei exige o efetivo emprego de arma de fogo na atuação do grupo, não bastando o mero porte por um de seus membros. A denúncia não descreve em nenhum momento a utilização de armas pelos réus na suposta empreitada criminosa. A menção genérica à presença de CACs (Caçadores, Atiradores e Colecionadores) nos acampamentos, sem qualquer vínculo probatório com os acusados, foi considerada insuficiente para sustentar a aplicação da majorante.
Diante da ausência de correspondência entre a conduta narrada na denúncia e os elementos essenciais do tipo penal, a conclusão foi pela improcedência total da acusação no que tange ao crime de organização criminosa.
4.2. Dano Qualificado e Dano a Bem Tombado
A acusação de dano qualificado e dano a bem tombado, referente à depredação das sedes dos Três Poderes em 8 de janeiro de 2023, foi analisada sob a ótica de dois princípios fundamentais do direito penal: o da subsidiariedade e o da responsabilidade individual.
Primeiramente, o crime de dano é considerado um delito subsidiário. Isso significa que, quando a destruição de um bem não é um fim em si mesma, mas apenas um meio para a prática de um crime mais grave, ela é absorvida por este último. A própria denúncia do Ministério Público argumenta que a depredação do patrimônio público ocorreu "com o objetivo final de impor um regime de governo alternativo" e "provocando com violência a destruição do Estado democrático de direito". Seguindo essa linha de raciocínio, o crime de dano perde sua autonomia e é consumido pelos crimes-fim, ou seja, os atentados contra o Estado Democrático de Direito.
Em segundo lugar, e de forma ainda mais decisiva, o voto rechaça a possibilidade de uma condenação por responsabilidade penal objetiva ou solidária. Em eventos multitudinários, não se pode atribuir a autoria dos atos de vandalismo a todos os presentes ou a supostos líderes intelectuais sem a devida individualização da conduta. A acusação tem o ônus de provar, para além da dúvida razoável, como cada réu contribuiu especificamente para o resultado.
Nesse ponto, o precedente da Ação Penal 619, que julgou a invasão de uma sede do INCRA, foi fundamental. Naquele caso, o STF absolveu um réu acusado de liderar o grupo por ausência de provas de que ele tenha pessoalmente danificado algum bem ou proferido um "comando genérico para a destruição". O tribunal afirmou que:
Imputar a alguém uma conduta penal, tão somente pelo fato de ser líder de um grupo abstratamente considerado, significa na prática adotar a responsabilidade objetiva na esfera penal.
Aplicando essa mesma lógica, o voto concluiu que, ainda que os danos tenham sido de gravidade amazônica, não há nos autos prova de que os réus do núcleo central tenham ordenado ou participado diretamente da destruição. Responsabilizá-los pelos atos de terceiros, com os quais não foi demonstrado um vínculo de comando direto, seria violar o princípio da intranscendência da pena e da responsabilidade pessoal, pilares do direito penal democrático. Portanto, a acusação de dano também foi julgada improcedente em relação a eles.
4.3. Crimes Contra o Estado Democrático de Direito
A análise dos crimes de "abolição violenta do Estado Democrático de Direito" (Art. 359-L) e "golpe de Estado" (Art. 359-M) foi o ponto mais denso do voto, estabelecendo uma interpretação técnica e restritiva que se distancia de uma análise puramente política dos eventos. A argumentação se baseou em três eixos: a definição precisa dos verbos dos tipos penais, a teoria do iter criminis (o caminho do crime) e a cláusula que protege a manifestação política.
4.3.1. O Alto Sarrafo para "Abolir" a Democracia
O Estado Democrático de Direito não é um conceito monolítico, mas um ecossistema complexo que envolve eleições livres, separação de poderes, liberdades fundamentais e o império da lei. O verbo "abolir", presente no Art. 359-L, implica uma ação de supressão total e completa, e não um mero enfraquecimento ou ataque a uma de suas partes. Para que o crime se configure, a conduta deve ter a capacidade real e idônea de arruinar o conjunto de instituições que garantem o autogoverno, conduzindo a nação a um regime autoritário. Meras críticas, mesmo que severas, ou atos que não possuem essa potência destrutiva, não alcançam o patamar exigido pelo tipo penal.
4.3.2. O "Golpe de Estado" e a Impossibilidade do "Autogolpe"
Da mesma forma, o crime de golpe de Estado (Art. 359-M) possui um elemento verbal claro: "depor" um governo legitimamente constituído. A ação típica é a de remover do poder quem o ocupa. Por uma questão de lógica semântica, um presidente em exercício não pode "depor" a si mesmo ou o próprio governo que chefia. A tentativa de se perpetuar no poder por meios ilegais configura o que a ciência política chama de "autogolpe", uma figura que não está prevista no tipo penal. Punir um autogolpe sob a rubrica de "golpe de Estado" seria uma aplicação de analogia em prejuízo do réu (analogia in malam partem), o que é expressamente vedado no direito penal.
4.3.3. O Caminho do Crime: Da Cogitação Impunível à Execução
O direito penal brasileiro, como regra, só pune condutas a partir do momento em que se inicia a sua execução. O caminho do crime (iter criminis) possui fases distintas:
Cogitação: A fase puramente mental, das ideias e planos. É sempre impunível.
Atos Preparatórios: A busca por meios, o planejamento, a articulação com cúmplices e a elaboração de minutas de decretos. Também são, em regra, impuníveis, pois o agente ainda pode desistir do plano sem que o bem jurídico tenha sido efetivamente atacado.
Atos de Execução: O início do ataque direto e imediato ao bem protegido pela lei. Apenas nesta fase se pode falar em tentativa punível.
Aplicando essa teoria, o voto considera que reuniões para discutir planos, a redação de minutas de decretos e a articulação política para um eventual movimento de ruptura se enquadram no campo dos atos preparatórios, que, por não terem evoluído para uma execução concreta, não são passíveis de punição criminal.
Finalmente, ambos os crimes exigem o emprego de "violência ou grave ameaça", e a própria lei (Art. 359-T) exclui da criminalização "a manifestação crítica aos poderes constitucionais" e outras formas de manifestação política. Isso significa que discursos, bravatas e a expressão de descontentamento, ainda que em termos rudes ou reprováveis, estão protegidos e não podem ser tipificados como um atentado ao Estado Democrático de Direito.
5. Julgamento Individualizado dos Réus
Na etapa final de seu voto, o Ministro Luiz Fux aplicou as rigorosas premissas teóricas e a análise dos tipos penais à conduta individual de cada um dos oito réus. A distinção fundamental que guiou o julgamento foi a separação entre atos preparatórios e de cogitação — que são impuníveis — e os atos de execução, que configuram a tentativa criminosa. O resultado foi uma cisão no grupo de acusados, com duas condenações e seis absolvições.
5.1. Mauro Cid e Walter Braga Neto: Condenados por Atos de Execução
Os réus Mauro Cid e Walter Braga Neto foram os únicos condenados, e apenas pelo crime de tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito (Art. 359-L). A razão para a condenação foi a existência de provas de que ambos ultrapassaram a barreira dos atos preparatórios e praticaram atos de execução concretos, violentos e idôneos para atentar contra as instituições.
-
Walter Braga Neto: Foi considerado culpado por ter sediado em sua residência a reunião de planejamento da "Operação Copa 2022" e, crucialmente, por ter, segundo a colaboração de Mauro Cid, financiado a operação com R$ 100 mil. O plano, que visava atentar contra a vida de um Ministro do STF, foi considerado um ato executório claro de tentativa de abolir o Estado Democrático através da violência.
Mauro Cid: Sua condenação se baseou em sua participação ativa e central na articulação dos planos. Ele não apenas participou da reunião na casa de Braga Neto, mas também solicitou e intermediou o financiamento, monitorou a localização do Ministro-alvo e orientou manifestantes a direcionarem seus atos contra o Congresso e o Supremo. Sua própria colaboração premiada serviu como prova de autoincriminação.
Ambos foram absolvidos das demais acusações (organização criminosa, golpe de Estado e dano) pelos fundamentos teóricos já expostos: a ausência de indeterminação dos crimes, a impossibilidade de "autogolpe" e a falta de prova de comando direto nos atos de vandalismo.
5.2. Jair Bolsonaro, Almir Garnier e os Demais: Absolvidos por Ausência de Atos Executórios
Os outros seis réus, incluindo o ex-presidente Jair Bolsonaro, foram absolvidos de todas as imputações. O fio condutor das absolvições foi a constatação de que suas condutas, embora por vezes politicamente reprováveis, não configuraram atos de execução, permanecendo no campo da cogitação, dos atos preparatórios ou do discurso político protegido pela Constituição.
Jair Bolsonaro: O voto concluiu que não havia provas de sua participação em atos executórios. Suas falas contra o sistema eleitoral e outros poderes foram enquadradas como "manifestação crítica" (Art. 359-T) ou "bravatas", não como a "violência ou grave ameaça" exigida pelos tipos penais. A elaboração e discussão de minutas de decreto de exceção foram consideradas atos preparatórios impuníveis. Ressaltou-se que tais decretos sequer foram editados e que sua implementação dependeria de outros poderes, como o Congresso Nacional. Não foi encontrado nenhum nexo causal ou prova de comando que o vinculasse aos atos de vandalismo praticados por terceiros no dia 8 de janeiro de 2023.
Almir Garnier e Paulo Sérgio Nogueira: Foram absolvidos por falta de provas de que tenham aderido a qualquer plano de ruptura. A suposta declaração de Garnier de que "colocaria as tropas à disposição" foi considerada um ato preparatório vago e não um ato de execução. Já para Paulo Sérgio, testemunhas-chave afirmaram que ele atuou para demover o presidente de qualquer medida de exceção.
-
Augusto Heleno, Anderson Torres e Alexandre Ramagem: Foram absolvidos por "parcas e rarefeitas" provas. As acusações se basearam em anotações pessoais, discursos inflamados e supostos desvios de finalidade na gestão de seus órgãos (GSI, Ministério da Justiça e ABIN), condutas que não se encaixam nos tipos penais de abolição violenta ou golpe de Estado por lhes faltar o elemento da violência e do início de execução. No caso de Anderson Torres, ficou provado que ele estava em viagem de férias pré-agendada em 8 de janeiro e que tomou medidas para conter os atos à distância.