Capa da publicação IDPJ na execução fiscal: impasse no STJ
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Uma análise do incidente de desconsideração de personalidade jurídica na execução fiscal

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16/11/2025 às 21:55
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A controvérsia sobre o IDPJ na execução fiscal expõe tensão entre normas tributárias e processuais. Como compatibilizar o CPC com o CTN diante do abuso da personalidade jurídica?

Resumo: Por vezes, a complexidade dos casos concretos cria desafios formais para a aplicação da norma, promovendo reflexões sobre a interpretação dos Princípios Processuais e a devida aplicação dos Diplomas Legais. Um debate recente é sobre a compatibilidade do Incidente de Desconsideração de Personalidade Jurídica (IDPJ) em Execuções Fiscais de matéria tributária. O IDPJ é um instituto valioso, principalmente para credores, em Ações de Conhecimento e Execução, por regulamentar os casos de mitigação da personalidade jurídica em hipóteses de abuso de personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade e/ou confusão patrimonial. Sua fundamentação legal encontra-se no artigo 50 do Código Civil e artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil, Diplomas Legais classificados como Leis Ordinárias de Direito Privado. Contudo, as Ações de Execução podem ter natureza fiscal e versar sobre matéria tributária, escopo que extrapola a legislação do Direito Privado e é regulamentado por outros Diplomas Legais. É nesse contexto que surge o dilema central, pois, nos termos do artigo 146 da Constituição Federal de 1988, matérias de natureza tributária devem ser regulamentadas por Leis Complementares. Em que pese a vasta literatura sobre o tema, a jurisprudência atual não firmou entendimento definitivo sobre a compatibilidade do IDPJ com o Rito de Execução Fiscal em matéria tributária. Até então, o caso aguarda o julgamento do Tema Repetitivo 1209 no Superior Tribunal de Justiça. Se, em um primeiro momento, o cerne da questão é a dissonância formal, a análise do tema revelou que o debate possui plano de fundo igualmente intricado. O presente trabalho se propôs a analisar as hipóteses de compatibilidade do IDPJ em Ações de Execução Fiscal de matéria tributária, levando em consideração, não apenas os aspectos formais, mas também a interpretação sistêmica da legislação, os desafios de aplicação das normas tributárias e o entendimento jurisprudencial, a fim de compreender não apenas se há compatibilidade entre o IDPJ e as execuções fiscais, mas o que esse impasse traduz e quais os eventuais efeitos do reconhecimento (ou não) do cabimento de IDPJ em Ações de Execução Fiscal de matéria tributária.

Palavras-chave: Desconsideração de Personalidade Jurídica; Execução Fiscal; Elisão Fiscal; Evasão Fiscal; Superior Tribunal de Justiça

Sumário: Introdução; 1.1. O conceito de Personalidade Jurídica; 1.2. Hipóteses de Desconsideração de Personalidade Jurídica; 2. Desconsideração da Personalidade Jurídica no Direito Tributário; 2.1. Distinção entre Evasão e Elisão; 2.2. Hipóteses de Desconsideração de Personalidade Jurídica: questões formais; 2.3. Análise Jurisprudencial; Considerações Finais


Introdução

O ordenamento jurídico vigente dispõe sobre a criação da Pessoa Jurídica, passando pela aquisição da Personalidade Jurídica e até, eventualmente, a dissolução e extinção da Pessoa Jurídica. Partindo desse entendimento, é fundamental que se compreenda que uma pessoa jurídica não é dotada de personalidade jurídica de forma compulsória. A criação de uma Pessoa Jurídica de Direito Privado e a aquisição de Personalidade Jurídica são dois movimentos distintos, balizados por disposições normativas diferentes.

Nesse contexto, era de se esperar que a mitigação da Personalidade Jurídica fosse observada em previsão normativa, sem que para isso fosse necessária a extinção da Pessoa Jurídica.

Exposto no artigo 50 do Código Civil, a chamada Desconsideração da Personalidade Jurídica, permite que os limites e Direitos que protegem a pessoa jurídica dotada de personalidade jurídica sejam desconsiderados em casos de confusão patrimonial e desvio de finalidade, conforme determina o referido dispositivo de lei.

Conforme disposto no artigo 50 do Código Civil, considera-se confusão patrimonial, por exemplo, o pagamento de contas particulares do sócios por meio do cartão corporativo da Pessoa Jurídica; enquanto desvio de finalidade ocorre quando um sócio, para evitar tributação de um de seus imóveis próprios, simula a adição desse bem ao patrimônio da empresa, para integralização do capital da pessoa jurídica, não ocorrendo a transferência na prática. Nota-se que, em ambos os casos, há um denominador comum: a separação entre os bens e responsabilidades da pessoa jurídica e de seus sócios é ignorada. Uma vez que os sócios e administradores não respeitam os limites da pessoa jurídica, o ordenamento jurídico autoriza que esse limite seja mitigado em favor dos credores, por exemplo. É o que chamamos Desconsideração da Personalidade Jurídica.

Esses exemplos, bem como qualquer forma de transgressão dos sócios que configure abuso de poder, podem dar ensejo ao chamado Incidente de Desconsideração de Personalidade Jurídica (IDPJ), que, para além do artigo 50 do Código Civil, também se encontra previsto nos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil (CPC), que determina a sua instauração processual de forma incidental, devendo ser instaurado a pedido da parte ou do Ministério Público, quando lhe couber intervir no processo, conforme determina o artigo 133 do CPC.

Uma vez reconhecida a materialidade das condutas que dão ensejo ao Incidente de Desconsideração da Personalidade Jurídica, através de Decisão Interlocutória nos termos do artigo 136 do CPC, as barreiras e limites que protegem o patrimônio de empresa com Personalidade Jurídica cessam, podendo ser utilizado os bens e receitas da Pessoa Jurídica para pagamento de dívidas dos sócios e vice versa.

Em linhas gerais, o Incidente de Desconsideração de Personalidade Jurídica atribui aos sócios e administradores a responsabilidade pelos atos arbitrários, realizados no uso de seus poderes, fazendo com que eles respondam com seu patrimônio pessoal.

Nota-se, portanto, que se trata de instituto valioso para garantia do Direito de credores, principalmente em processos executórios.

Contudo, os processos executórios não são exclusividade do Direito Privado, a exemplo das Ações de Execução Fiscal, regulamentadas em diploma próprio, qual seja a Lei n° 6.830, de 22 de setembro de 1980, conhecida como Lei de Execução Fiscal (LEF).

Ocorre que, no bojo da LEF, assim como no Código Tributário Nacional não há previsão de Incidente de Desconsideração de Personalidade Jurídica, apresentando o primeiro impasse para que se reconheça a compatibilidade do IDPJ em Execuções Fiscais.

Não obstante a isso, um vácuo legislativo reforça as inseguranças sobre a desconsideração de negócio jurídico, no âmbito tributário, uma vez que há uma série de questionamentos sobre o texto do artigo 116 do Código Tributário Nacional (CTN), que, em seu parágrafo único, incluído pela Lei Complementar nº 104, de 10 de janeiro de 2001, prevê o seguinte:

Parágrafo único. A autoridade administrativa poderá desconsiderar atos ou negócios jurídicos praticados com a finalidade de dissimular a ocorrência do fato gerador do tributo ou a natureza dos elementos constitutivos da obrigação tributária, observados os procedimentos a serem estabelecidos em lei ordinária. (Incluído pela Lcp nº 104, de 2001) (BRASIL, 1966)

A norma em questão foi objeto da Ação de Inconstitucionalidade 2446, e, embora tenha sido reconhecida a constitucionalidade da norma, ressaltou-se a necessidade de regulamentação devida por lei específica. Ou seja, ainda que se reconheça a desconsideração de negócios dissimulados no âmbito tributário, ainda não há uma legislação própria capaz de regulamentar quais procedimentos deverão ser adotados.

Diante desse cenário, surgem dúvidas sobre qual é efetivamente o limite da aplicação do artigo 116 do Código Tributário Nacional, e como a desconsideração do negócio jurídico deverá ser tratada no âmbito do Direito Tributário. O vácuo legislativo, assim como outras questões apontadas no bojo da ADI 2446, compõe o plano de fundo para o debate sobre o uso do Incidente da Desconsideração de Personalidade Jurídica no âmbito das Execuções Fiscais.

Da análise propriamente dita da compatibilidade do IDPJ com o rito da execução fiscal, ainda aguarda julgamento o Tema Repetitivo 1209 no Superior Tribunal de Justiça.

Ciente de que se trata de uma questão ainda não pacificada, o presente trabalho, de forma modesta e breve, investigou os casos de aplicação do Incidente de Desconsideração de Personalidade Jurídica em matéria tributária. Para tanto, foi necessário considerar elementos indispensáveis para a contextualização da questão abordada: 1) a compreensão do que é o instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica, sua origem e suas atualizações; 2) o estudo (e os desafios) da interpretação e aplicação da norma tributária em casos de desconsideração do negócio jurídico 3) a reflexão sobre os parâmetros que diferem elisão de evasão fiscal, a fim de compreender a validade do negócio jurídico e os limites do planejamento tributário; 4) o estudo da literatura especializada capaz de superar as divergências formais entre a compatibilidade do IPDJ e o rito de execução fiscal de matéria tributária; 5) a investigação da jurisprudência propriamente dita, a fim de identificar quais as hipóteses nas quais o IDPJ já foi admitida.

A proposta do presente artigo não é esgotar o tema, ou mesmo trazer uma resposta definitiva sobre a compatibilidade do IDPJ com o rito da execução fiscal em matéria tributária. O que se propõe é um entendimento do cenário no qual esse debate é feito, as principais questões levantadas e os caminhos a serem percorridos em caso de reconhecimento (ou não) da compatibilidade de um instituto de Direito Privado em Ações de Execução Fiscal.

1.1. O conceito de Personalidade Jurídica

Para que se compreenda o que é a Desconsideração de Personalidade Jurídica, essencial entender qual é o conceito de Personalidade Jurídica.

Em um primeiro momento, é importante observar a diferença entre Pessoa Jurídica e Personalidade Jurídica, pois são conceitos distintos.

A Pessoa Jurídica pode ser entendida como “a unidade de pessoas naturais ou de patrimônios, que visa à consecução de certos fins, reconhecida pela ordem jurídica como sujeito de direitos e obrigações” (DINIZ, 2012, p. 264), podendo existir Pessoas Jurídicas de Direito Privado e Pessoas Jurídicas de Direito Público.

Já a Personalidade Jurídica, advém do registro da Pessoa Jurídica em órgão devido. Conforme os termos do artigo 1150 do Código Civil, as sociedades empresariais vinculam-se ao Registro Público de Empresas Mercantis a cargo das Juntas Comerciais, enquanto no caso de uma sociedade simples, o registro é feito em Cartório do Registro Civil das Pessoas Jurídicas.

Em linhas gerais, compreende-se que a Pessoa Jurídica nasce de um ato de vontade pactuado entre as partes, enquanto a Personalidade Jurídica decorre do registro dessa Pessoa Jurídica em órgão responsável.

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Ao se realizar o registro, a Pessoa Jurídica passa a ter autonomia e patrimônio próprio, apartado do patrimônio particular dos sócios.

Para melhor ilustrar os efeitos da personalidade jurídica, ensina Maria Helena Diniz:

A pessoa jurídica é uma realidade autônoma, capaz de direitos e obrigações, independentemente dos membros que a compõe, com os quais não tem nenhum vínculo, agindo por si só, comprovando, vendendo, alugando etc, sem qualquer ligação com a vontade individual das pessoas físicas que dela fazem parte. Realmente, seus componentes somente responderão por seus débitos dentro dos limites do capital social, ficando a salvo o patrimônio individual. Essa limitação da responsabilidade ao patrimônio da pessoa jurídica é uma consequência lógica de sua personalidade jurídica, constituindo uma de suas maiores vantagens.

(DINIZ, 2012, p. 340)

É comum, dentro da literatura do Direito Civil, se evocar a ideia de um véu para simbolizar a Personalidade Jurídica. Porém, esse véu pode ser levantado, permitindo a comunicação de bens dos sócios e da sociedade. Esse fato ocorre nos chamados casos de Desconsideração de Personalidade Jurídica, como veremos a seguir.

1.2. Hipóteses de Desconsideração de Personalidade Jurídica

A desconsideração da Personalidade Jurídica é o instituto jurídico utilizado em momentos nos quais a independência de uma Personalidade Jurídica é relativizada em decorrência de condutas inadequadas promovidas por seus sócios e administradores.

Podemos também ilustrar esse fato como a derrubada dos limites entre o patrimônio de sócios (Pessoas Naturais) e o patrimônio da sociedade (Pessoa Jurídica).

Antes de mais nada, é importante destacar que não é uma medida corriqueira. É exigido robusto conjunto probatório que ateste o preenchimento dos requisitos necessários para seu reconhecimento. Vejamos:

1. A aplicação da desconsideração da personalidade jurídica deve ser excepcional, sendo a regra a preservação da autonomia patrimonial, devendo ser deferida quando presentes os requisitos do Art. 50. do Código Civil. 2. O ordenamento jurídico adotou a teoria maior da desconsideração da personalidade jurídica a qual exige prova do desvio de finalidade da sociedade ou a confusão patrimonial entre o patrimônio dos sócios e o da sociedade empresária.

(Acórdão 1369154, 07090171820218070000, Relator: ROBERTO FREITAS, Terceira Turma Cível, data de julgamento: 31/8/2021, publicado no DJE: 17/9/2021 - Disponível no site do Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios. Em Desconsideração da personalidade jurídica – teoria maior. https://www.tjdft.jus.br/consultas/jurisprudencia/jurisprudencia-em-temas/jurisprudencia-em-detalhes/personalidade-juridica/desconsideracao-da-personalidade-juridica-2013-abuso-de-personalidade-2013-desvio-de-finalidade-ou-confusao-patrimonial-2013-teoria-maior. Acesso em 10 de outubro de 2024)

Conforme julgado supra, é possível observar que há necessidade de preenchimento de requisitos basilares, sem os quais não se configura a Desconsideração de Personalidade Jurídica, quais sejam “desvio de finalidade da sociedade ou a confusão patrimonial entre o patrimônio dos sócios e o da sociedade empresária” (Acórdão 1369154, 07090171820218070000, Relator: ROBERTO FREITAS, Terceira Turma Cível, data de julgamento: 31/8/2021, publicado no DJE: 17/9/2021), porém é necessário uma compreensão mais elaborada das duas hipóteses, e, portanto, indispensável consultar o disposto no artigo 50 do Código Civil:

Art. 50. – [...]

§ 1º Para os fins do disposto neste artigo, desvio de finalidade é a utilização da pessoa jurídica com o propósito de lesar credores e para a prática de atos ilícitos de qualquer natureza. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 2º Entende-se por confusão patrimonial a ausência de separação de fato entre os patrimônios, caracterizada por: (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

I - cumprimento repetitivo pela sociedade de obrigações do sócio ou do administrador ou vice-versa; (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

II - transferência de ativos ou de passivos sem efetivas contraprestações, exceto os de valor proporcionalmente insignificante; e (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

III - outros atos de descumprimento da autonomia patrimonial. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 3º O disposto no caput e nos §§ 1º e 2º deste artigo também se aplica à extensão das obrigações de sócios ou de administradores à pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 4º A mera existência de grupo econômico sem a presença dos requisitos de que trata o caput deste artigo não autoriza a desconsideração da personalidade da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

§ 5º Não constitui desvio de finalidade a mera expansão ou a alteração da finalidade original da atividade econômica específica da pessoa jurídica. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)

(BRASIL, 2002)

Ao se analisar a redação do dispositivo de lei supramencionado, deve-se ter em mente as alterações em razão da Lei 13874/2019, também chamada de Lei de Liberdade Econômica, que visa estabelecer “garantias de livre mercado” (BRASIL, 2019).

Sobre o Diploma Legal em questões, é necessário ponderar o seguinte: trata-se de uma lei relativamente nova em comparação a outras legislações, possivelmente por essa razão, a literatura ainda é escassa, fato que dificulta auferir informações sobre seus efeitos. Sendo assim, será considerada, para fins de compreensão dos efeitos da referida lei, principalmente no que tange à Desconsideração de Personalidade Jurídica, bibliografia produzida até o momento.

Da referida lei, destacam-se as principais mudanças:

Dentre as alterações e inovações implantadas pela lei 13.874/19, podemos concluir que a nova redação do art. 50. é oportuna, o que fará com que se reduzam as interpretações a respeito da desconsideração da personalidade jurídica, ante o caráter objetivo das novas definições, sendo importante destacar, ainda, que é gratificante a mudança no que diz respeito a separação do patrimônio dos sócios, associados, instituidores e administradores do patrimônio da empresa, eis que estes responderão pelas dívidas apenas caso haja ocorrência de falência ou execuções trabalhistas que não sejam quitadas pelo devedor principal, ou seja, a pessoa jurídica.

Desta forma, das várias alterações trazidas pela nova lei em relação à desconsideração da personalidade jurídica, dentre as quais foram citadas acima, percebemos que privilegiou-se a autonomia dos patrimônios das empresas, sendo que as hipóteses de aplicação ficaram mais restritas e objetivas, o que pode-se dizer como um aspecto extremamente positivo, eis que o instituto da desconsideração da personalidade jurídica deve ser aplicado em situações excepcionais e da forma mais cautelosa possível, a fim de evitar- se o direcionamento indevido de execuções a terceiros

(SANTOS e LEAL, 2019)

Nesse sentido, a Lei de Liberdade Econômica teria estabelecido parâmetros mais objetivos para consolidar o reconhecimento da Desconsideração da Personalidade Jurídica. E, para compreeder quais seriam esses critérios objetivos, essencial observar o cerne do IDPJ.

Sobre o instituto da Desconsideração da Personalidade Jurídica, sua origem advém do “direito anglo-saxão, especialmente no estadunidense, quando foi denominada de disregard doctrine, sendo também conhecida como disregard of legal entity doctrine, lifting the veil doctrine ou piercing the veil doctrine (CERVÁSIO, 2016 Apud. BENITES, 2018, 151)

Na esteira desse entendimento, é necessário observar o papel das Cortes de Nova York que, mais recentemente estabeleceram “uma espécie de protocolo de requisitos necessários à superação da personalidade jurídica de sociedades, o qual é conhecido como “Teste dos Dez Fatores” (BENITES, 2018, p. 152), quais sejam:

1. ausência de formalidade corporativa sobre a sociedade dominada;

2. capitalização inadequada;

3. se os recursos financeiros são colocados e retirados da sociedade para fins não corporativos;

4. se existe uma superposição de patrimônio, direção e pessoal;

5. se as companhias envolvidas compartilham escritório e números de telefone;

6. quais os limites da discricionariedade da direção da companhia filial;

7. se as sociedades se relacionam de forma íntima;

8. se as sociedades são tratadas como centros de lucros independentes;

9. se o pagamento das dívidas da sociedade controlada é feito pelas controladoras;

10. se o patrimônio da controlada é usado pela controladora como se seu fosse.

(CERVÁSIO, 2016 Apud. BENITES, 2018, p. 152)

Do exposto supra, é possível traçar um paralelo com a aplicação do instituto da Desconsideração de Personalidade Jurídica no Brasil, tendo em vista que o cerne da questão em ambos os países é a administração irresponsável no sentido da utilização da pessoa jurídica para fins estranhos aos seus objetivos e responsabilidades e a confusão entre pessoas jurídicas distintas. Conforme afirma Benites, “no corporate law estadunidense, a desconsideração da personalidade jurídica tem como requisitos tradicionais a gestão com fraude ou com desvio de função da pessoa jurídica e a conjuntura de confusão patrimonial entre sociedade e sócios” (2018, p. 215), elementos que coadunam, inclusive, com a nova redação do artigo 50 do Código Civil.

Até o momento, foram analisados os requisitos sine qua non para constatação da materialidade da Desconsideração de Personalidade Jurídica, porém, há aspectos essenciais para sua aplicação, quais sejam os requisitos previstos pelo Código de Processo Civil para sua invocação nos autos processuais.

Presente nos artigos 133 a 137 do Código de Processo Civil, é chamado Incidente de Desconsideração de Personalidade Jurídica, cabível em todas as fases do processo de conhecimento, no cumprimento de sentença e na execução fundada em título executivo extrajudicial, nos termos do artigo 134 do Código de Processo Civil. A interposição do IDPJ só será dispensada em casos nos quais for requerido na Petição Inicial do Processo, conforme artigo 134, § 2º do CPC. Nesses casos, os sócios e administradores já irão figurar como réus e, portanto, já estará prevista sua citação. Porém, caso o IDPJ seja apresentado em fase processual distinta, será suspenso o processo, conforme artigo 134 § 3º do CPC e, nos autos incidentais nos quais tramita o IDPJ, deverá ocorrer a citação dos sócios e administradores que terão prazo de 15 (quinze) dias para se manifestar e requerer as provas cabíveis, conforme previsto no artigo 135 do CPC. De acordo com o artigo 136 do CPC, “o incidente será resolvido por decisão interlocutória”.

Também dentre os dispositivos de lei supra mencionados, deve-se destacar a figura da “Desconsideração Inversa da Personalidade Jurídica”, prevista no §2º Art. 133. do Código de Processo Civil, que pode ser compreendida da seguinte maneira:

Na desconsideração da personalidade jurídica clássica, expressamente prevista pelos arts. 50. do CC e 28 do CDC, a sociedade empresarial figura como devedora e os sócios como responsáveis patrimoniais secundários, ou seja, mesmo não sendo devedores, responderão com o seu patrimônio pela satisfação da dívida. A jurisprudência, entretanto, valendo-se da ratio das normas legais referidas, as vem interpretando de forma extensiva e criando novas modalidades de desconsideração de personalidade jurídica, não previstas expressamente em lei. Há a desconsideração da personalidade jurídica entre empresas do mesmo grupo econômico, bem como a desconsideração da personalidade jurídica inversa. Na hipótese de desconsideração da personalidade jurídica inversa, o sócio figura como devedor e a sociedade empresarial como responsável patrimonial secundária, quando se constata que o sócio transferiu seu patrimônio pessoal para a sociedade empresarial com o objetivo de frustrar a satisfação dos direitos de seus credores. O § 2.º do art. 133 do Novo CPC não consagra legislativamente essa espécie atípica de desconsideração, limitando- se a prever que o incidente criado também a ela será aplicado.

(NEVES, 2016, p. 565)

Em todos os casos de Desconsideração de Personalidade Jurídica supramencionados, é essencial a observância de que é garantido aos réus os Direitos Constitucionais da Ampla Defesa e do Contraditório, respeitados, inclusive em grau de recurso, nos termos do artigo 136, ú, do Código de Processo Civil, que prevê a possibilidade de Agravo Interno, quando a decisão for proferida pelo relator.

Os efeitos da Desconsideração de Personalidade Jurídica são previstos no artigo 137 do CPC, que determina que “acolhido o pedido de desconsideração, a alienação ou a oneração de bens, havida em fraude de execução, será ineficaz em relação ao requerente.” (BRASIL, 2015)

Ainda sobre o procedimento do IDPJ, convém elucidar:

Sempre houve intenso debate doutrinário a respeito da possibilidade da criação de uma nova situação jurídica de forma incidental no processo/fase de execução, ou se caberia ao interessado a propositura de uma ação incidental com esse propósito. Havia corrente doutrinária que defendia – e mesmo com o texto legal pode continuar a defender1, mas apenas num plano acadêmico – a existência de um processo de conhecimento com os pretensos responsáveis patrimoniais secundários compondo o polo passivo para se discutir os requisitos indispensáveis à desconsideração da personalidade jurídica2. Por outro lado, havia doutrina que afirmava que, estando presentes os pressupostos para a desconsideração da personalidade jurídica, e conseguindo o credor prová-los de forma incidental, seria desnecessário o processo autônomo, sendo esse entendimento prestigiado pelo Superior Tribunal de Justiça. É compreensível que o entendimento consagrado no Superior Tribunal de Justiça3 esteja fundado nos princípios da celeridade e da economia processual, até porque exigir um processo de conhecimento para se chegar à desconsideração da personalidade jurídica atrasaria de forma significativa a satisfação do direito, além de ser claramente um caminho mais complexo que um mero incidente processual na própria execução ou falência. E tais motivos certamente influenciaram o legislador a consagrar a natureza de incidente processual ao pedido de desconsideração da personalidade jurídica.

(NEVES, 2016, 565).

Portanto, o Incidente da Desconsideração de Personalidade Jurídica já tem sido pensado e amadurecido, tanto pelo entendimento doutrinário, quanto pelo Superior Tribunal de Justiça, observando os Princípios Processuais, para seu melhor desempenho dentro do arcabouço jurídico vigente e da realidade do sistema judiciário. Pode-se notar reflexões avançadas acerca do próprio procedimento do IDPJ, como também da delimitação dos requisitos indispensáveis para sua instauração, o que demonstra um instituto robusto e consolidado dentro do ordenamento jurídico vigente.

Uma vez que foram analisados os requisitos e os efeitos da desconsideração da Personalidade Jurídica, no âmbito do Direito Civil, cumpre observar como o tema é encarado em matéria tributária, levando em consideração as especificidades dos Diplomas Legais que versam sobre Direito Tributário. Embora o instituto do Incidente de Desconsideração de Personalidade Jurídica seja inerente ao Direito Privado, a previsão normativa tributária não exclui a desconsideração de negócios jurídicos realizados de maneira arbitrária e fraudulenta, como veremos a seguir.

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Sobre a autora
Amaranta Vasconcelos Silva

Advogada, Mestre em Direito pela Universidade Estadual Paulista "Júlio de Mesquita Filho" - Faculdade de Ciências Humanas e Sociais, Pós-Graduada em Direito e Processo Tributário pela Faculdade Legale, Bacharel em Direito pela Faculdade de Direito de Franca. Currículo lattes: http://lattes.cnpq.br/3289409790523793

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

SILVA, Amaranta Vasconcelos. Uma análise do incidente de desconsideração de personalidade jurídica na execução fiscal. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 30, n. 8173, 16 nov. 2025. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/116289. Acesso em: 5 dez. 2025.

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