Contextualização
É inegável o firme passo dado no desenvolvimento das políticas de gênero, com a edição da Lei n.º 11.340/2006, nacionalmente conhecida por Lei Maria da Penha.
Acontece que os efeitos da sua inserção no sistema processual penal brasileiro não se restringiram à área de incidência proposta pelo seu artigo 5.º [01], mas tiveram reflexos em toda a aplicação do processo penal brasileiro, precisamente no poder geral cautelar, com a fixação de novos paradigmas aplicativos, materializados pela previsão legal de medidas protetivas:
"Art. 22. Constatada a prática de violência doméstica e familiar contra a mulher, nos termos desta Lei, o juiz poderá aplicar, de imediato, ao agressor, em conjunto ou separadamente, as seguintes medidas protetivas de urgência, entre outras:
I - suspensão da posse ou restrição do porte de armas, com comunicação ao órgão competente, nos termos da Lei n.º 10.826, de 22 de dezembro de 2003;
II - afastamento do lar, domicílio ou local de convivência com a ofendida;
III - proibição de determinadas condutas, entre as quais:
a) aproximação da ofendida, de seus familiares e das testemunhas, fixando o limite mínimo de distância entre estes e o agressor;
b) contato com a ofendida, seus familiares e testemunhas por qualquer meio de comunicação;
c) freqüentação de determinados lugares a fim de preservar a integridade física e psicológica da ofendida;
IV - restrição ou suspensão de visitas aos dependentes menores, ouvida a equipe de atendimento multidisciplinar ou serviço similar;
V - prestação de alimentos provisionais ou provisórios.
§ 1º As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público".
O provocativo título atribuído ao presente texto objetiva exatamente chamar a atenção para que se perceba que o advento da Lei Maria da Penha não só estabeleceu um novo rumo nas políticas de gênero, mas forneceu novos contornos para o desenvolvimento do processo penal brasileiro, por meio da utilização de ferramentas cautelares, expressa e generalizadamente previstas em lei, para a tutela dos direitos fundamentais envolvidos no ambiente de atuação da matéria penal.
Os fundamentos constitucionais e legais do caminho trilhado pelo poder geral cautelar no processo penal brasileiro, além de fornecerem os necessários elementos para a compreensão do assunto, tornam induvidoso o surgimento de uma nova fase com as medidas protetivas disciplinadas pelo artigo 22 da Lei Maria da Penha.
Premissas constitucionais: direitos fundamentais, processo penal e o poder geral cautelar
O reconhecimento da importância constitucional dos direitos fundamentais é condição para a própria existência do processo penal, uma vez que constitui verdadeira garantia, seja negativa ou positiva, de seus conteúdos, direcionados ao fortalecimento da dignidade da pessoa humana.
A dinâmica social, apoiada no registro histórico dos acontecimentos da humanidade, tem demonstrado que a abertura na utilização de mecanismos de proteção é a chave para a maximização dos direitos fundamentais, o que é atestado pela doutrina portuguesa de Cristina Queiroz:
Os direitos fundamentais surgem no Estado constitucional como reacção às ameaças fundamentais que circundam o homem (direitos do homem) e o cidadão (direitos civis).
As funções específicas de perigo mudam historicamente, tornando-se necessário novos instrumentos de combate, que devem ser desenvolvidos, sempre de novo, em nome do homem e do cidadão. Isso significa uma abertura de conteúdos, de funções, e de formas de proteção, de modo a que todos esses direitos possam ser defendidos contra os novos perigos que possam surgir no decorrer do tempo.
Este carácter aberto do catálogo e da garantia dos direitos fundamentais, seja no seu aspecto pessoal, seja ainda no aspecto institucional ou colectivo, vem expresso numa multiplicidade de formas de protecção jurídica. Essas diferentes formas de protecção jurídica vêm exercidas pelos tribunais comuns, pelos tribunais de justiça constitucional e pelos tribunais internacionais (protecção internacional dos direitos do homem). [02]
A proteção dos direitos fundamentais está diretamente relacionada às necessidades práticas que despertem o exercício de suas múltiplas funções, adequando-as diante das violações concretamente identificadas, o que repele qualquer tentativa de definir, de maneira esgotável, os mecanismos de tutela necessitados.
Diante dessa constatação, o legislador constituinte deixou evidente a necessidade de tutela preventiva, característica de indiscutível natureza cautelar, exigindo a pronta atuação do Poder Judiciário nos casos de lesão ou ameaça a direitos, com o art. 5.º, inciso XXXV, da CF:
"a lei não excluirá da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito"
Essa percepção normativa de estatura constitucional sublinhou que a atividade cautelar é essencial para a tutela de direitos fundamentais, pois o emprego de instrumentos de garantia que evitem, suspendam e removam as condutas que os contradigam constitui componente essencial da sua proteção, sobretudo quando a tutela cautelar é aplicada na matéria processual penal, área associada a relevantes direitos fundamentais, como, por exemplo, a integridade física, a liberdade e a vida, integrantes da identidade humana e de difícil reversibilidade ou recomposição tardia.
O foco firmado clarifica e ressalta o pressuposto de que a atividade geral cautelar é parte elementar e indissociável da função jurisdicional, além do que recomenda a abertura do seu exercício, exatamente para que a tutela estatal não fique refém do moroso e não-onisciente juízo de previsibilidade do legislador, o que amplia o alcance de todas as funções e conteúdos dos direitos fundamentais, conclusão que também se percebe do estudo de ROGÉRIO PACHECO ALVES:
"Entra pelos olhos, assim, que a razão que leva o legislador a conceber o processo cautelar não se coaduna, essencialmente, com a idéia de tipicidade, sob pena de esvaziamento do corolário de acesso à justiça acima referido. Aliás, não é demais lembrar que o processo cautelar nasceu justamente por intermédio da adoção de cautelas atípicas, vindo o legislador, ao depois, tratar de seu disciplinamento na lei, sempre ressalvando a possibilidade de decretação de cautelas inominadas.
Realmente, diante da impossibilidade prática de a lei prever todas as hipóteses de risco, não faria sentido que o juiz, identificando concretamente um dano à ordem jurídica não prevista pelo legislador, se visse impossibilitado de adotar outras soluções de garantia. Tal postura que, inclusive, ignoraria o conceito de jurisdição como poder, resultaria para o autor numa "vitória de Pirro", na qual se conferem "ao vencedor as batatas". [03]
É possível afirmar a existência de um dever de proteção do Estado, no referente aos direitos fundamentais, decorrente das múltiplas funções desempenhadas por seus conteúdos, surgidos e desenvolvidos a partir das necessidades impostas pelas violações concretamente detectadas.
Uma conformação legislativa da esfera processual penal não pode reduzir a função de um magistrado criminal ao juízo bipolar prisão/liberdade, o que configura, em muitos casos, a tentativa de resolver colisões de direitos fundamentais mediante a aplicação de medidas extremas, em verdadeira diretriz do tudo ou nada, negando a relatividade dos direitos fundamentais e sua estrutura principiológica.
A variabilidade das exigências práticas fulmina qualquer tentativa de se estruturar, de forma abstrata e predeterminada, todo o amplo espaço de atuação da proteção cautelar, já que sua abertura garantidora reside na própria necessidade de conferir eficácia direta e imediata aos direitos fundamentais. [04]
É esse contexto que leva à percepção que direitos fundamentais, processo penal e poder geral cautelar são conceitos que se implicam direta e mutuamente, fornecendo um dos instrumentos válidos para a superação dos impasses decorrentes da concorrência de direitos fundamentais da mais alta importância para o regime democrático, de aplicação imediata e que não admitem o estabelecimento de preferências absolutas. O poder geral cautelar exerce, portanto, uma função primacial para inserir o princípio da proporcionalidade no processo penal.
Por não ignorar essa relevante constatação, foi que o Supremo Tribunal Federal, quando do julgamento da Ação Declaratória de Constitucionalidade n.º 4/DF, deixou averbado, embora não existisse previsão expressa para o caso, que o poder de acautelar do Poder Judiciário é imanente ao ato de julgar:
"Em ação dessa natureza, pode a Corte conceder medida cautelar que assegure, temporariamente, tal força e eficácia à futura decisão de mérito. E assim é, mesmo sem expressa previsão constitucional de medida cautelar na A.D.C., pois o poder de acautelar é imanente ao de julgar. Precedente do S.T.F.: RTJ-76/342". (ADC n.º 4/DF, Plenário, Rel. Min. Sydney Sanches, j. 11/2/1998, DJU de 21/5/1999, p. 2)
A exposição de um dos aspectos da teoria dos direitos fundamentais, endossada por um expressa opção do constituinte de 1988, bem como diante do reconhecimento indiscutível do Supremo Tribunal Federal, está a demonstrar que o poder geral cautelar no processo penal possui fundamento constitucional, decorrente do regime de coexistência dos direitos fundamentais [05], dele extraindo a sua aplicação e efeitos, ressalvando-se, no entanto, que o juízo de adequação a ser empregado, não pode ultrapassar a gravidade das medidas cautelares já previstas legalmente.
Os fundamentos legais do poder geral cautelar no processo penal brasileiro. Novos paradigmas estabelecidos pela lei 11.340/2006 (Lei Maria da Penha)
O acerto da conclusão voltada para a afirmação de que o poder geral cautelar no processo penal brasileiro está firmado em bases constitucionais, não impede que também se busquem justificativas legais no sistema para a sua utilização, não só como reforço argumentativo, mas para auxiliar na sua aplicabilidade.
Esse novo passo aponta contornos que acentuam a diretiva constitucional, exatamente para demonstrar que o Código de Processo Penal também recebe o influxo do poder geral cautelar, o que se colhe logo das suas disposições preliminares, em verdadeira demonstração de que a matéria é referencial obrigatório para o intérprete:
"Art. 3º A lei processual penal admitirá interpretação extensiva e aplicação analógica, bem como o suplemento dos princípios gerais de direito".
A interpretação extensiva e a aplicação analógica deixam claro que o processo penal pode buscar reforço no processo civil, sobretudo quando dispõe de fonte legal consagrada no artigo 798 do CPC [06], já que são produtos gerados do mesmo ente legislativo, que detém o monopólio na produção de leis em matéria processual.
Na Questão de Ordem levantada no AI n.º 664.567/RS [07], o plenário do Supremo Tribunal Federal, cujo relator do assunto foi o Ministro Sepúlveda Pertence, realizou histórico da aplicação analógica do processo civil no ambiente do processo penal, ressaltando que não há impedimento jurídico para o intercâmbio proposto nos casos de omissão, principalmente quando a integração legislativa destina-se a efetivar preceitos constitucionais.
A orientação jurisprudencial daquele Tribunal revela ainda que a analogia que se faz uso nesses casos está a cumprir obediência a um das principais diretivas na interpretação constitucional, precisamente o princípio da máxima efetividade. [08]
Cumpre esclarecer que, para aqueles que defendem a deliberada omissão do legislador processual penal [09], no atinente ao poder geral cautelar, constitui este argumento a porta de entrada para a utilização do artigo 798 do CPC.
Ora, se o processo civil – em regra – não envolve direitos fundamentais da magnitude daqueles comprimidos no processo penal, nada justifica o porquê de não dispor dos seus mesmos mecanismos processuais de proteção, no que já demonstrou a tutela cautelar ser vital para o regime dos direitos fundamentais.
O exercício prático do processo penal pelo Superior Tribunal de Justiça e pelo Supremo Tribunal Federal comprovou a correção do cabimento dessa compreensão analógica, conforme se pode verificar de dois recentes habeas corpus impetrados pelo mesmo paciente, respectivamente:
RECURSO ORDINÁRIO EM HABEAS CORPUS. ARTIGOS 4º, 16, E 22, PARÁGRAFO ÚNICO, C/C ART. 1º, I, DA LEI Nº 7.492/98. PRISÃO PREVENTIVA. REVOGAÇÃO. IMPOSIÇÃO DE CONDIÇÕES. POSSIBILIDADE."PROCESSUAL PENAL.
I - Ainda que reconhecida a ausência de fundamentos concretos para a manutenção da custódia cautelar, é possível ao magistrado, com base no poder geral de cautela disposto no art. 798 do CPC c/c art. 3º do CPP, condicionar a revogação do decreto de prisão preventiva a exigências concretamente pertinentes (Precedentes).
II - Dessa forma, o condicionamento da revogação da custódia cautelar ao comparecimento quinzenal do acusado ao juízo para assinatura de termo, ao acautelamento do passaporte e à proibição de viagens ao exterior não constituem, no presente caso, constrangimento ilegal.
III - Cumpre destacar que em recente decisão liminar o e. Min. Marco Aurélio, do Pretório Excelso, determinou revogação de prisão preventiva com as ressalvas de que "o paciente deverá permanecer no distrito da culpa, atendendo aos chamamentos judiciais, e proceder ao depósito do passaporte. Viagem ao exterior ficará na dependência de autorização judicial".(HC 92308/RS, DJ de 13.10.07) Recurso ordinário desprovido".
"PROCESSUAL PENAL. IMPOSIÇÃO DE CONDIÇÕES JUDICIAIS (ALTERNATIVAS À PRISÃO PROCESSUAL). POSSIBILIDADE. PODER GERAL DE CAUTELA. PONDERAÇÃO DE INTERESSES. ART. 798, CPC; ART. 3°, CPC. 1. A questão jurídica debatida neste habeas corpus consiste na possibilidade (ou não) da imposição de condições ao paciente com a revogação da decisão que decretou sua prisão preventiva 2. Houve a observância dos princípios e regras constitucionais aplicáveis à matéria na decisão que condicionou a revogação do decreto prisional ao cumprimento de certas condições judicias. 3. Não há direito absoluto à liberdade de ir e vir (CF, art. 5°, XV) e, portanto, existem situações em que se faz necessária a ponderação dos interesses em conflito na apreciação do caso concreto. 4. A medida adotada na decisão impugnada tem clara natureza acautelatória, inserindo-se no poder geral de cautela (CPC, art. 798; CPP, art. 3°). 5. As condições impostas não maculam o princípio constitucional da não-culpabilidade, como também não o fazem as prisões cautelares (ou processuais). 6. Cuida-se de medida adotada com base no poder geral de cautela, perfeitamente inserido no Direito brasileiro, não havendo violação ao princípio da independência dos poderes (CF, art. 2°), tampouco malferimento à regra de competência privativa da União para legislar sobre direito processual (CF, art. 22, I). 7. Ordem denegada". (HC n.º 94.147/RJ, 2.ªT, Rel. Min. Ellen Grace, j. 27/5/2008, DJU de 12/6/2008, p. 921)
As conclusões judiciais acima transcritas sintetizam os fundamentos constitucionais e legais para a utilização do poder geral cautelar no processo penal brasileiro: os primeiros localizados na teoria dos direitos fundamentais; os segundos na conjugação do artigo 3.º do CPP com o artigo 798 do CPC.
No entanto, o advento da Lei n.º 11.340/2006 (Lei Maria da Penha) estabeleceu novos paradigmas para o assunto, justamente porque o poder geral cautelar no processo penal obteve – embora não seja a idéia do texto, mas para aqueles que assim defendiam – uma "paternidade legítima", oriunda de dispositivo que disciplina matéria processual penal.
Além de preconizar específicas medidas cautelares, que passam também a integrar o regime processual penal comum, o seu artigo 22, §1.º, colocou expressamente e definitivamente na rota do processo penal o poder geral cautelar:
"As medidas referidas neste artigo não impedem a aplicação de outras previstas na legislação em vigor, sempre que a segurança da ofendida ou as circunstâncias o exigirem, devendo a providência ser comunicada ao Ministério Público".
Desse modo, ao referendar a expressão "outras previstas na legislação em vigor" conjugada com a consagração de norma de abertura cautelar, permitiu indiscutivelmente a utilização do Código de Processo Civil, sempre que as circunstâncias o exigirem, o que vai ao encontro da teoria dos direitos fundamentais.
Avisa-se – de logo – não ser possível argumentar que essa disciplina é limitada ao âmbito da Lei n.º 11.340/2006, pois não há explicação isonômica para a distinção, quando está a se tratar de tutela de direitos fundamentais que independem da condição particular da mulher, precisamente a liberdade em um dos pólos de tensão ou, no outro extremo do conflito, a necessidade de garantir a proteção de um direito próprio da condição humana e que foi atingido em face da conduta penalmente relevante. A propósito, nunca demais lembrar as clássicas lições do professor Celso Antônio Bandeira de Mello no sentido de que viola a isonomia a tentativa de estabelecer fator diferenciador sem pertinência lógica com a inclusão ou exclusão do benefício deferido, necessitando o estabelecimento de adequação racional entre o tratamento diferenciado realizado e os motivos erigidos para fundamentá-lo. [10]
Caso análogo ocorreu com a instituição dos Juizados Especiais Federais, por meio da Lei n.º 10.259/2001, em que o parágrafo único, do seu artigo 2.º, ampliou o conceito de crimes de menor potencial ofensivo, o que foi estendido para o âmbito dos Juizados Especiais Estaduais, exatamente porque foi considerada artificial a distinção entre situações que envolviam direitos processuais penais idênticos, conflitando com o princípio da isonomia e com a abrangente competência processual da União. [11]
DENILSON FEITOZA, autor de reconhecida profundidade teórica, defende também a utilização das medidas protetivas disciplinadas na Lei Maria da Penha, como referencial para o poder geral cautelar no processo penal, oportunidade em que realiza as seguintes considerações:
"Admitindo-se esse poder geral de cautela, o juiz criminal pode adotar uma solução que compõe o interesse instrumental punitivo e o interesse instrumental garantista, com o que também satisfaz o subprincípio da proporcionalidade em sentido estrito. Portanto, não cogitamos medidas cautelares atípicas no processo penal para satisfazer poder punitivo do Estado, mas para beneficiar os direitos fundamentais das pessoas sujeitas ao processo penal lato sensu". [12]
Medidas cautelares que já vinham sendo adotadas pela jurisprudência dos Tribunais Superiores, como, por exemplo, a estipulação de condições para a concessão de liberdade provisória [13], a apreensão de passaportes [14], o afastamento de servidores públicos de suas funções [15] e a suspensão cautelar de regime de execução penal [16] encontram agora no artigo 22, § 1.º da Lei Maria de Penha o respaldo legal que alguns entediam necessário, superando, portanto, as discussões até então existentes.
Estabeleceram-se, portanto, novos paradigmas no processo penal brasileiro.