4. Perspectivas e Soluções para o superendividamento.
O consumidor superendividado brasileiro, ao contrário do francês que desde 1989 tem uma regulamentação específica não é tratado legalmente de forma direta. Todavia, o Código do Consumidor, se bem compreendido e aplicado é hábil a tratar do problema.
4.1 Legislação.
4.1.1 O Código de Proteção e Defesa do Consumidor.
O Código Brasileiro de Proteção e Defesa do Consumidor – CDC visa o equilíbrio para a relação de consumo e deixa isto muito claro principalmente no seu artigo 1 e artigo 4, caput e III. Entretanto o nosso código do consumidor embora tenha por principio "o estudo constante das modificações do mercado de consumo" e tenha um artigo (o 52) exclusivamente para contratos de crédito bem como garanta a modificação e revisão de cláusulas contratuais, não trata explicitamente do superendividamento. Tem, todavia, como princípio, o equilíbrio e a boa fé das relações de consumo.
Situações de mau uso do instituto têm comprometido a sua credibilidade: é preciso muita responsabilidade no exercício da tese do superendividamento para que não se confunda o resgate do equilíbrio de uma relação com a proteção demasiada do inadimplente, com estímulo ao endividamento.
O inciso II do art. 6º do CDC tem grande importância para a prevenção do superendividamento, pois é a educação e divulgação sobre o consumo adequado, com edição de cartilhas, pesquisas de mercado e debates para alertar os consumidores com relação a produtos mais baratos, que garante a liberdade de escolha e a igualdade nas contratações, para que o consumidor não assuma o contrato de crédito sem antes, refletir a sua possibilidade financeira e as condições contratuais. A responsabilização (civil, penal e administrativa) do mau fornecedor de crédito é imprescindível.
O tratamento do superendividamento no Brasil é possível e necessário para que o consumidor – devedor volte a ter dignidade e não seja condenado pelo resto da sua vida como um mau pagador, porque se os consumidores agiram de boa-fé e estão com acúmulos de dívidas são merecedores de uma chance para poder se refazer financeiramente.
4.1.2. O sistema francês de proteção ao superendividado.
O Code de la Consommation em seu Título III, intitulado endividamento define a situação de superendividamento como sendo a "caracterizada pela impossibilidade manifesta pelo devedor de boa-fé de fazer face ao conjunto de suas dívidas não profissionais exigíveis e não pagas". Assim, encontra-se regulamentado na própria lei francesa a prevenção e o tratamento do superendividamento para o consumidor – devedor de boa-fé.
A França reconhece a falência civil do consumidor endividado dando um tratamento eficaz com a liquidação dos bens da pessoa - física para o pagamento total das dívidas, quando possível, ou parte dela, tendo a participação judicial durante o processo ou a realização com os credores de acordo, supervisionados pelo juiz para diminuição dos juros, parcelamento da dívida.
A proteção do consumidor na França, para aqueles que são vítimas de eventos independente da sua vontade, como a doença, o desemprego ou o divórcio, concede um "prazo de graça" a todo consumidor-devedor que ficou incapacitado de cumprir seus pagamentos. Ainda pode o juiz suspender a execução das obrigações, e determinar a não incidência de juros sobre as somas das dívidas durante a vigência do benefício que não poderá exceder a dois anos.
Segundo a jurisprudência francesa, dispõe o art. 1.152 do Code Civil que "o juiz pode, mesmo de ofício, moderar a pena que tiver sido convencionada se ela for manifestamente excessiva". Em razão do consumidor está superendividado, pode o juiz moderar as sanções estipuladas contra o devedor inadimplente.
O Code de la Consommation para proteger o consentimento do consumidor no contrato de crédito, impõe ao credor / fornecedor obrigações com um rigoroso formalismo no momento de prestar as informações sobre o crédito ao consumo na fase pré-contratual, que requer um tempo até concluir o contrato, e assim, o consumidor pode refletir acerca do contrato. O art. L. 311-4 do Code de la Consommation de acordo com Geraldo de Farias da Costa (2006, p. 63):
Obriga o anunciante de todo negócio que envolva uma operação de crédito a inserir na sua publicidade informações sobre a identidade do credor, a natureza, o objeto, a duração da operação proposta, o custo total do crédito, a taxa efetiva global e as percepções financeiras, o montante dos pagamentos por prestações.
Sem dúvida, o consumidor Francês está protegido da publicidade do crédito ao consumo e a jurisprudência francesa se mostra vigilante às ofertas publicitárias agressivas de crédito, tendo em vista que o consumidor do crédito tenha consciência e reflita antes da formação do contrato para que não suporte depois uma situação de superendividamento.
O mesmo doutrinador (2006, p. 89) continua a mencionar que no Direito Francês:
A formação do contrato de crédito se submete a um processo que favorece o equilíbrio entre os direito e obrigações das partes. A técnica dos prazos de reflexão é utilizada. O fiador é protegido por disposições especiais. A força do sentimento de solidariedade social na França é bem exemplificada pelo procedimento humanitário de tratamento das pessoas superendividadas.
Pode-se assim notar que o consumidor francês está bem amparado legalmente para evitar que ocorra o superendividamento e caso essa situação aconteça ele terá um tratamento bem eficaz e digno para poder voltar ao mercado de consumo depois do superendividamento.
4.2 Jurisprudência.
A jurisprudencia, como bem lembra João Alves Silva "siempre fue un camino importante para investigar el estado de situación correspondiente entre los modelos normativo y doctrinario expuestos al cotejo de las decisiones judiciales. Sin intención de establecer ninguna jerarquía entre estas fuentes, importa decir que la jurisprudencia es la expresión viva del derecho, constituyéndose en una parte fundamental de la realidad jurídica de la sociedad."
Alguns Tribunais têm decidido de modo eficiente a questão do superendividamento, como exemplo:
APELAÇÃO CÍVEL - AÇÃO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS - SUPERENDIVIDAMENTO - PRINCÍPIO DA DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA - CÓDIGO DE DEFESA DO CONSUMIDOR- (...) O OFERECIMENTO DE CRÉDITO PELAS INSTITUIÇÕES FINANCEIRAS DEVE SER FEITO DE FORMA RESPONSÁVEL, DESESTIMULANDO O SUPERENDIVIDAMENTO DOS CONSUMIDORES. – (....) - Razoável que os descontos sejam fixados no limite de 30% do valor do salário da autora, conforme a jurisprudência deste E. Tribunal. - Apelo da autora - Danos morais corretamente fixados. - Observância dos princípios da razoabilidade e da proporcionalidade, bem como ao postulado da vedação ao enriquecimento sem causa. - Acerto da sentença. - Aplicabilidade do disposto no art. 557, caput do CPC. - NEGADO SEGUIMENTO AOS RECURSOS. (2009.001.51393 – APELACAO, DES. SIDNEY HARTUNG - Julgamento: 01/10/2009 - QUARTA CAMARA CIVEL).
AGRAVO DE INSTRUMENTO. SERVIDOR PÚBLICO ESTADUAL. DESCONTO EM FOLHA DE PAGAMENTO. LIMITAÇÃO. SUPERENDIVIDAMENTO. PRESERVAÇÃO DO MÍNIMO EXISTENCIAL. Pedido formulado por servidor estadual de cancelamento dos descontos em folha de pagamento das parcelas relativas a empréstimos intermediados por associação de classe. Revisão da posição do relator, diante do novo entendimento jurisprudencial majoritário do 2º Grupo Cível, reconhecendo a validade da cláusula de autorização dos descontos direto em folha de pagamento, mas limitando a sua eficácia ao percentual máximo de 30% sobre os vencimentos brutos do servidor, aplicando analogicamente a legislação estadual acerca do tema. Preservação do mínimo existencial, evitando que o superendividamento coloque em risco a subsistência do servidor e de sua família, ferindo o princípio da dignidade da pessoa humana. Doutrina e jurisprudência. PROVERAM PARCIALMENTE O RECURSO POR MAIORIA. DECISÃO MODIFICADA." (Agravo de Instrumento Nº 70019038611, Terceira Câmara Cível, Tribunal de Justiça do RS, Relator: Paulo de Tarso Vieira Sanseverino, Julgado em 31/05/2007).
Nos julgados em que o superendividamento é apreciado tem prevalecido o exame, no caso concreto da boa-fé do consumidor, e a limitação dos juros cobrados de modo excessivamente oneroso para a parte mais fraca desta relação de consumo.
A jurisprudência brasileira tem construído uma proteção para o consumidor superendividado, através da interpretação do Código de Defesa do Consumidor, se utilizando dos princípios da boa-fé, da dignidade da pessoa humana, da transparência, da informação e do equilíbrio contratual. Os casos que causam maior comoção e que encontraram segurança jurídica nas decisões dos Tribunais são os empréstimos concedidos de forma inadequada com desconto automático mensal do salário, aposentadoria, benefício que extrapolam o limite permitido de 30% do valor que o consumidor tem como sua renda mensal. Mas não é demais lembrar que "O Código de Defesa do Consumidor ampara o hipossuficiente em defesa dos seus direitos, mas não é escudo para inadimplentes". [22]
5. Conclusão.
A questão do superendividamento não é e nem pode ser entendida como proteção da inadimplência. Muito ao contrário, reconhecer e enfrentar esta realidade é providência indispensável a reposicionar o debate e trazer os fornecedores de crédito à sua responsabilidade de fornecer adequada e previamente informação ao consumidor, garantindo-lhe o real direito à liberdade de escolha e preservando a sua dignidade.
Se o fornecedor de crédito cumprisse o CDC - principalmente no tocante à oferta e publicidade, demonstrando todos os riscos e consequências do recebimento do crédito bem como avaliando a capacidade de endividamento do consumidor e a ausência de poder de negociação deste, possivelmente a situação de endividamento não estaria tão séria [23] (ou o contrato objeto não teria sido firmado ou o teria sido em outros termos e condições).
É preciso, pois dar cumprimento a uma das conclusões da "Carta de Porto Alegre" no sentido do fortalecimento do dever de cumprimento voluntário das normas, pois é o primeiro dever (primeira obrigação) imposto pela norma, sendo uma forma de tentar evitar o superendividamento e tentar, também, defender os interesses dos vulneráveis, para quem a tutela jurídica não funciona plenamente, pois suas necessidades são prementes e de que o fornecedor deverá aconselhar o consumidor, observadas as especificidades da contratação, sobre a viabilidade da satisfação do crédito tendo em vista sua renda.
Repita-se, por verdadeiro, que o reconhecimento do fenômeno do superendividamento e a busca de soluções não visa, por nenhuma hipótese, ao "estelionato por via judicial" ou qualquer meio protelatório de pagamento de dívida. Pretende-se, de um lado, encontrar uma solução digna para a situação dos cidadãos e cidadãs que já estão nesta situação e de outro propiciar a mudança de atitude do fornecedor de crédito, adequando-a ao que determina o nosso Código Brasileiro de Proteção e Defesa do Consumidor.
Revela-se igualmente urgente e necessário o reconhecimento do serviço de concessão de crédito como nocivo e perigoso e a consequente adequação da publicidade e oferta de tais serviços às como já acontece com as de cigarro e bebida alcoólica.
Imprescindível, ainda, o cumprimento do artigo 5o do CDC no sentido de se instituírem Defensoria, Promotoria e Magistratura especializadas em direito do consumidor e o estimulo a soluções extrajudiciais, como o que está sendo protagonizado pelo Fórum de Defensores Públicos do Consumidor. Lembre-se que, como demonstrado, as decisões judiciais especificas sobre superendividamento são oriundas de Estados onde há Defensoria Pública especializada.
É de se ressaltar ainda que a ausência de proteção específica ao cidadão superendividado pode excluí-lo do mercado de consumo e, por consequência, contribuir para o aumento da insegurança pública em face do seu afastamento das mínimas condições de vida digna, caso o Estado exista continue se omitindo de enfrentar sistemática e institucionalmente o problema. É preciso que se priorize a articulação de forças para que se tenha um desenvolvimento econômico e social justo, equilibrado e sustentável
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