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A ilegalidade da cláusula de reajuste de sinistralidade dos contratos coletivos de planos e de seguros de saúde

09/08/2010 às 08:43
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Apoiadas em normas administrativas editadas pela Agência Nacional de Saúde Suplementar, as seguradoras costumam incluir, em seus contratos de planos de saúde empresariais (ou coletivos), o chamado reajuste por sinistralidade. Porém, perceba-se que as cláusulas que preveem indigitada regra não são de fácil compreensão, vez que não conceituam "sinistralidade" e sequer esclarecem seu alcance prático. Essa situação causa confusão e incerteza jurídica, suscitando muitas dúvidas e perguntas sem respostas quando da contratação de seguro de saúde coletivo. Claro que tudo isso torna o tema assaz tormentoso e induz à ocorrência de numerosas divergências pretorianas.

Por outro ângulo, cabe a pergunta: pode a prática ser considerada legal?

Pensamos, decididamente, que não. E isso porque esse procedimento evidencia-se inquinado de clara e irreversível ilegalidade. Reitere-se que as companhias que atuam na área da saúde suplementar não esclarecem o que é reajuste por sinistralidade, ou, quando muito, a ele se referem de forma confusa e até mesmo ininteligível. Os contratantes só têm a noção da ratio dessa disposição contratual quando inopinadamente vêm a ser surpreendidos com avisos de reajustes de prêmios que, não raramente, atingem índices que podem variar de 100% a (pasme-se!) até 500%. Por isso, são comuns cláusulas nos contratos (via de regra "de adesão") nos seguintes termos: "haverá revisão dos prêmios sempre que a sinistralidade ultrapassar o limite de 70%."

Afinal, o que isso significa?

Numa rápida abordagem, sinistralidade pode ser definida como a diferença resultante, isto é, o resultado financeiro extraído da relação entre os prêmios pagos pelo segurado e o custo dos sinistros suportados pela seguradora num determinado período. Portanto, se determinado contrato (tal como ocorre na grande maioria) fixa o limite de sinistralidade em 70% (é oportuno lembrar que, em alguns casos, raros, é fixado em 75%), significa que os custos da utilização dos serviços médicos (sinistros) podem atingir até 70% das receitas (prêmios). Sempre que esse limite for superado, automaticamente incidem os chamados reajustes dos prêmios por excesso de sinistralidade.

As companhias de seguro afirmam que essa equação é baseada no princípio do mutualismo, indispensável à manutenção do equilíbrio financeiro do contrato e, mutatis mutandis, à preservação do nível de serviços prestados pela rede de atendimento. Defendem que esse mecanismo é previsto em norma da ANS, o que o torna legítimo.

Nada mais inconsistente, porém.

Prima facie quaestionis, trata-se o reajuste de sinistralidade, como facilmente se pode intuir, de hábil e mal disfarçada fórmula aritmética engendrada pelas companhias do ramo com o fim de estatuir e sacramentar em regra contratual cláusula assecuratória da eliminação do fator risco da atividade securitária. Ora, isso é de gritante e notória ilegalidade, na medida em que fulmina aaleatoriedade, elemento indissociável do risco, a seu turno elemento jurídico próprio, inseparável, característico e imanente ao ramo de seguros. Previsto no art. 757 do Código Civil, o contrato de seguro, na abalizada definição de CÉSAR FIUZA, vem a ser "... o contrato pelo qual uma das partes, o segurador, se obriga para a com a outra, o segurado, mediante recebimento de prêmio, a indenizá-la, ou a terceiros, de prejuízos resultantes de riscos futuros e incertos, mas previsíveis." [01]

Como se observa, deflui da própria definição legal que a aleatoriedade é elemento ínsito ao pacto securatício, tornando-o característica própria e indissociável, por meio de que o risco (álea) é conferido integralmente à seguradora. Isso nos leva à conclusão de que o montante dos pagamentos ou contraprestações do segurado, denominados prêmios, oportunamente pode ensejar à seguradora rédito ou resultado positivo (lucro) no caso de ausência de sinistro ou de indenizações em montante menor que o total de pagamentos do segurado no período considerado. Ou rédito ou resultado negativo (prejuízo), na hipótese de superveniência do evento indenizável (sinistro) cujo montante exceda o total de pagamentos do segurado no mesmo período.

Da simples análise da natureza do seguro e do seu conceito legal, conclui-se que atribuir ao segurado o ônus pelo "excesso de sinistralidade" significa permitir que ele, além de arcar integralmente com o custo da contratação do seguro (prêmio), venha a assumir também o ônus ensejado pela álea ou risco. Isso é fazer tábula rasa da interpretação do conceito ou razão histórica do contrato de seguro. Afinal, a que se presta o seguro saúde, se no final vem a ser arcado pelo próprio segurado o risco?

A cláusula em comento malfere, portanto, o espírito do art. 757 do Código Civil e, mais que isso, fere de morte a própria essência do negócio jurídico. Tal considerado, sugerimos às seguradoras que, em vez de se valerem de tal artifício ou subterfúgio, de duvidosa juridicidade, deveriam, isso sim, por meio de avaliação criteriosa dos riscos de suas carteiras, viabilizar cálculos atuariais adequados para a precificação correta dos prêmios. Essa, parece-nos, a conduta adequada e suficiente à preservação do mutualismo e do equilíbrio contratual no ramo em que atuam indigitadas empresas.

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Após tudo o que se viu, podemos concluir que o excesso de sinistralidade resulta do próprio risco do negócio ou da incorreta valoração dos prêmios. Por essa razão, é encargo que não pode ser repassado ao segurado, sob pena de enriquecimento sem causa da seguradora. Tal, aliás, como observou magistralmente o Desembargador do E. Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo Dr. JOÃO CARLOS SALETTI, ao relatar o acórdão do Agravo de Instrumento nº. 482.621-4/5-00, julgamento de 13/3/2007.

Para além disso, hoje estão pacificadas tanto a doutrina quanto a jurisprudência quando definem e caracterizam o contrato de prestação de serviços de assistência à saúde como de consumo. Nas precisas e judiciosas palavras do Dr. DEMÓCRITO REINALDO FILHO, Juiz de Direito do Estado de Pernambuco, "A circunstância de os contratos privados de assistência à saúde gozarem de uma regulamentação específica na Lei nº. 9.656, de 03 de junho de 1998, bem como através das resoluções da Agência Nacional de Saúde Suplementar – ANS, não afasta a conclusão de que fazem parte efetivamente da categoria dos contratos de consumo. O Código de Defesa do Consumidor (Lei nº. 9.078/90) permanece como uma lei básica, de caráter geral. É o mesmo fenômeno que acontece em relação a outras subespécies de contratos de consumo, a exemplo dos contratos bancários, de seguro e os que regulam as relações com os concessionários de serviços públicos. Não importa que cada um tenha uma regulamentação específica; o CDC continua como a lei de caráter geral aplicável a todos eles." [02]

Ao esteio, frisemos que o art. 51, inciso X, da Lei nº. 8078/90 — lei stricto sensu, portanto hierarquicamente superior ao regulamento da ANS que supostamente autoriza o reajuste por sinistralidade —, proíbe (fulminando de nulidade, portanto) as cláusulas que objetivam facultar ao fornecedor variar o preço de forma unilateral. Ora, ao majorar os prêmios com base em dados coletados e manipulados exclusivamente por uma das partes (a seguradora) — uma vez que ao segurado não é oferecida a oportunidade de participar da pesquisa e coleta dos dados necessários (e a experiência mostra que isso é sempre o que ocorre) —, as empresas de seguro-saúde nada mais fazem que variar o preço de forma simplista e unilateral, o que contraria a lei consumerista. Nesse sentido, o v. acórdão proferido na Ap. Cível nº. 368.859-4/9-00, relatado pelo Dr. MATHIAS COLTRO, Desembargador do E. TJSP, julgamento de 24/8/2005.

Simplesmente apresentar cálculos à parte segurada e exigir a majoração dos prêmios, a nosso ver não basta. Torna-se indispensável que se comprove a materialização dos sinistros (i. é, dos custos com a prestação dos serviços de assistência). Como saber se as contas apresentadas pelas seguradoras são reais e, portanto, confiáveis, na medida em que não são devidamente comprovados os gastos com médicos, clínicas, laboratórios e hospitais? Afinal, por que não são minimamente apresentados ao maior interessado os detalhes mais importantes dos cálculos, com a devida participação dele, segurado? Aqui, cabe a máxima Allegatio et non probatio, quasi non allegatio (mais uma vez, citemo-lo a jurisprudência do E. TJSP, vide o v. acórdão relatado pelo Des. MAURÍCIO VIDIGAL no Agravo de Instrumento nº. 376.908-4/7-00, julgamento em 15/3/2005).

Não se pretende aqui afirmar, é útil que se frise, que não podem as seguradoras inserir nas apólices previsões de reajustes periódicos de prêmios, com vistas a preservar, claro, o equilíbrio contratual. Desde que o não façam unilateralmente, podem e devem fazê-lo. Basta, no caso, que invoquem a cláusula rebus sic stantibus em juízo e provem as circunstâncias que tornaram o contrato insustentável, como, v.g., o aumento dos custos atinentes ao avanço da tecnologia da medicina. De todo modo, os parâmetros mínimos de clareza devem ser respeitados, proporcionando ao segurado o conhecimento preciso e prévio das majorações que, em respeito ao dever de informação constante do CDC (art. 6º., III), eventualmente venham a se tornar imperativas.

Em conclusão, a cláusula de "reajuste por sinistralidade" é ilegítima, na medida em que ofende o conceito básico e comezinho do contrato de seguro e contraria frontalmente os preceitos do art. 757 do Código Civil e, dentre outros, dos arts. 51, X e 6º, do Código de Defesa do Consumidor.


Notas

  1. Direito Civil: curso completo, 14ª. ed., Belo Horizonte: Del Rey, 2010.
  2. Artigo publicado na rede mundial de computadores: "A natureza jurídica do plano de saúde coletivo." Disponível em: http://jus.com.br/artigos/5424
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Sobre o autor
Márcio Britto Costa

Advogado Licenciado da OABSP para ocupar cargo em comissão no Tribunal de Justiça do Estado de São Paulo - Assistente Jurídico de Gabinete de Desembargador

Como citar este texto (NBR 6023:2018 ABNT)

COSTA, Márcio Britto. A ilegalidade da cláusula de reajuste de sinistralidade dos contratos coletivos de planos e de seguros de saúde. Revista Jus Navigandi, ISSN 1518-4862, Teresina, ano 15, n. 2595, 9 ago. 2010. Disponível em: https://jus.com.br/artigos/17137. Acesso em: 23 nov. 2024.

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